Cartão de Cidadão, Assinatura, Direito ao Nome
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Cartão de Cidadão, Assinatura, Direito ao Nome
Caros Confrades:
Deparei-me hoje com uma situação que, a meu ver, veio pôr termo a costumes com séculos de existência entre nós.
A Lei n.º 7/2007, de 5 de Fevereiro, que cria o cartão de cidadão e rege a sua emissão e utilização, no seu artigo 12.º, sob a epígrafe "Assinatura", estabelece o seguinte:
1—Por assinatura entende-se, para efeitos da presente lei, a reprodução digitalizada do nome civil, escrito pelo respectivo titular, completa ou abreviadamente, de modo habitual e característico e com liberdade de ortografia.
2—A assinatura não pode conter desenhos ou elementos gráficos.
3—Se o requerente não puder ou não souber assinar, deve fazer-se menção desse facto na área do cartão de cidadão destinada à reprodução digitalizada da assinatura e no campo reservado a indicações eventuais.
Isto é, à luz deste diploma, assinatura consiste apenas na reprodução fiel do nome civil, completa ou abreviada.
Isto significa que da assinatura não podem constar outros elementos além do nome civil da pessoa em questão, sejam eles títulos eclesiásticos como Padre (ou P.e na forma abreviada), Frei, etc., sejam nomes meramente religiosos (não sei se ainda é prática entre o clero regular), sejam títulos de nobreza ou outros elementos relacionados com os costumes nobiliárquicos portugueses.
Do meu ponto de vista, acho que esta alteração legislativa não faz muito sentido, até porque a assinatura não passa de um mero registo gráfico, um simples desenho. Creio também que o facto de constar da assinatura um qualquer elemento que não conste do nome civil da pessoa não será susceptível de criar problemas de identidade ou de qualquer outra ordem, já que a assinatura, com esse elemento, fica registada no cartão de cidadão. Ora, a assinatura é reconhecível e comprova-se, precisamente, pela exibição do cartão de cidadão.
Não vejo, por isso, qual a razão de ser desta imposição legal.
Contudo, gostaria de saber outras opiniões, que desde já agradeço.
Cumprimentos
CS
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Cartão de Cidadão, Assinatura, Direito ao Nome
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https://www.cartaodecidadao.pt/images/stories/09400948.pdf
Sc.
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Cartão de Cidadão, Assinatura, Direito ao Nome
Caro CS
Não sei o que entende por «costumes com séculos de existência entre nós», quando o texto que refere é exactamente o mesmo que tem estado em toda a legislação anterior a 2007 sobre identidade civil e sobre a assinatura inscrita em documentos de identificação.
Julgo que estará a confundir assinaturas para efeitos de identificação civil com outros tipos de assinatura. Também julgo que desde 1911 não consta da identificação civil a aposição de títulos, nobiliárquicos, honoríficos ou profissionais. Aliás, antes de 1911 não existia sequer o conceito de identificação civil na legislação portuguesa.
Cumprimentos,
Jorge Afonso
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Cartão de Cidadão, Assinatura, Direito ao Nome
Caro Jorge Afonso
Agradeço a sua resposta. Sobre a questão do uso de títulos nobiliárquicos no registo civil após 1911, deixo-lhe um texto da autoria do Prof. Menezes Cordeiro.
António Menezes Cordeiro: Títulos nobiliárquicos e registo civil - A insconstitucionalidade da reforma de 2007
TÍTULOS NOBILIÁRQUICOS E REGISTO CIVIL:
A INCONSTITUCIONALIDADE DA REFORMA
DE 2007 (*)
Pelo Prof. Doutor António Menezes Cordeiro
SUMÁRIO:
I – Introdução: 1. A reforma de 2007; 2. A revogação do artigo 40.º/2 a 4; 3. O interesse da matéria. II – Nota de História e de Direito comparado: 4. Noções básicas; 5. A experiência francesa; 6. A experiência italiana; 7. A experiência alemã. III – As leis republicanas sobre títulos nobiliárquicos; 8. A proclamação de 5 de Outubro de 1910; 9. As medidas revolucionárias; 10. Os códigos do registo civil; 11. As leis comerciais. IV – Os fundamentos da tutela: 12. Questão prévia: o princípio da igualdade; 13. Primeiro fundamento: o direito à honra; 14. Segundo fundamento: o direito ao nome; a) Evolução e natureza; 15. Segue; b) Conteúdo e alcance; 16. Segue; c) Os títulos como figura equiparada ao nome; 17. Terceiro fundamento: a defesa do património cultural. V – A inconstitucionalidade da revogação: 18. Inconstitucionalidade orgânica; 19. Inconstitucionalidade material; 20. Conclusão.
I—INTRODUÇÃO
1. A reforma de 2007
I. O registo civil português foi objecto de alargada reforma. O Decreto Lei n.° 324/2007, de 28 de Setembro(1), alterou, do Código do Registo Civil de 1995, 134 artigos, acrescentando lhe, ainda, mais 32(2). Em anexo, aquele Decreto-Lei republicou o Código, em versão consolidada. Medida sábia, uma vez que o Código do Registo Civil em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 131/95, de 6 de Junho, já havia sido alterado pelos Decretos-Leis n.° 224 A/96, de 26 de Novembro, n.° 36/97, de 31 de Janeiro, n.° 120/98, de 8 de Maio, n.° 375 A/99, de 20 de Setembro, n.° 228/2001, de 17 de Dezembro, n.° 113/2002, de 20 de Abril, n.° 194/2003, de 23 de Agosto e n.° 53/2004, de 18 de Março, bem como pela Lei n.° 29/2007, de 2 de Agosto, num total de 11 diplomas de alteração. Aliás, 13: depois da consolidação de 2007, o Código do Registo Civil já foi alterado pela Lei n.° 61/2008, de 31 de Outubro e pelo Decreto-Lei n.° 247-B/2008, de 30 de Dezembro. Temos, aqui, mais uma demonstração da imbatível prolificidade do nosso legislador, que deixa sem fôlego mesmo os especialistas nos ramos em jogo.
II. Segundo o preâmbulo e após as devidas referências aos Programas do XVII Governo e Simplex, a reforma de 2007 visou onze objectivos, que passamos a seriar:
1.° permitir que os actos e formalidades relacionados com a sucessão hereditária se possam efectuar num único balcão de atendimento, nas conservatórias do registo civil;
2.° simplificar as formalidades associadas ao processo de separação de pessoas e bens e de divórcio por mútuo consentimento, os quais passam a decorrer nas conservatórias;
3.° simplificar o processo de casamento;
4.° facultar a escolha de um regime de bens que não esteja tipificado na lei;
5.° simplificar o regime de casamento de estrangeiros;
6.° dispensar os cidadãos de apresentar certidões, quando os respectivos documentos já constem da base de dados da conservatória;
7.° eliminar a competência territorial das conservatórias do registo civil;
8.° permitir que os oficiais dos registos também possam praticar actos de registo civil;
9.° concretizar uma utilização alargada dos meios informáticos;
10.° simplificar “numerosos actos”;
11.° regulamentar os casamentos civis sob forma religiosa, em termos de liberdade de religião.
III. Independentemente de uma análise pormenorizada de toda esta matéria, a efectuar em sede própria, os objectivos anunciados pelo diploma são extensos e merecem aplauso. Na verdade, há que aproveitar as actuais possibilidades de recolha e de armazenagem de informações, para simplificar a vida das pessoas.
2. A revogação do artigo 40.°/2 a 4
I. O artigo 40.° do Código do Registo Civil de 1995, na sua versão original e sobrevivente a 11 alterações, dispunha(3)
Artigo 40.°
Identificação do declarante; referências honoríficas
ou nobiliárquicas
1. Os declarantes são identificados, no texto dos assentos em que intervierem, mediante a menção do seu nome completo e residência habitual.
2. São permitidas referências honoríficas ou nobiliárquicas, antecedidas do nome civil dos intervenientes nos actos de registo, desde que estes provem, por documento bastante, que deve ficar arquivado, o direito ao seu uso.
3. A referência a títulos nobiliárquicos portugueses só é permitida quando os interessados provem que têm direito à posse e uso de título existente antes de 5 de Outubro de 1910 e que as taxas devidas foram pagas.
4. São documento suficiente para prova das circunstâncias previstas no número anterior as certidões extraídas de documentos ou registos das Secretarias de Estado, do antigo Ministério do Reino, do Arquivo Nacional, de outros arquivos ou cartórios públicos ou a portaria a que se refere o Decreto n.° 10 537, de 12 de Fevereiro de 1925.
Como veremos, este preceito descende dos diplomas que, após 1910, aboliram a nobreza mas conservaram os títulos nobiliárquicos portugueses, como mera referência cultural.
II. Todavia, o Decreto-Lei n.° 324/2007, de 28 de Setembro, ad nutum e sem que nada o deixasse prever, revogou os números 2, 3 e 4 do transcrito artigo 40.°(4). Porquê? A matéria não constava de nenhum programa e não encontra, no preâmbulo, qualquer menção justificativa. Tentámos, junto dos meandros do aparelho de Estado, obter um suplemento de informação. Apenas lográmos saber que a revogação fora objecto de uma decisão de funcionários que prepararam a reforma. Os governantes que deram o seu nome ao diploma não se aperceberam de nada.
3. O interesse da matéria
I. Portugal é um regime republicano, desde 1910. Apesar de suscitar algumas simpatias, não existe, em nenhuma ordem do dia, qualquer programa de restauração monárquica. Não se perfila nenhuma questão política, social ou económica relacionada, de perto ou de longe, com ideias aristocráticas. Perante isso, cumpre perguntar, logo à cabeça, quais as vantagens da manutenção (ou da revogação) dos números 2, 3 e 4 do artigo 40.° do Código do Registo Civil e qual o interesse de introduzir a discussão, neste momento.
II. Tal interesse existe. Vamos referir três ordens de factores que justificam a afirmação.
Em primeiro lugar, temos um interesse histórico. Passa um século sobre o regicídio de 1908 e prepara se o primeiro centenário da República. Portugal não nasceu em 1910. Pois bem: inscreve se, no ciclo de estudos e de comemorações relativos à República, a sua inserção num fluxo contínuo que remonta à Fundação do século XII.
Em segundo lugar, deparamos com uma questão jurídica. Os títulos nobiliárquicos prendem se, tecnicamente, com o direito ao nome e com o direito à honra. Ambos são direitos de personalidade, dobrados por direitos fundamentais. Pode se mexer nesta matéria à socapa? O que manda a Constituição e que margem têm os direitos fundamentais perante o arbítrio do legislador?
Em terceiro lugar, defrontamos um tema político cultural. O nosso País está na Europa ou melhor: é Europa. Não se encontra em nenhum outro Continente, novo ou velho. Pode o Governo (qualquer governo!) alijar o nosso património cultural, precisamente no que tem de mais tradicionalmente europeu? Recebemos, dos nossos antecessores, certos valores; não deveríamos preservá los e passá los aos nossos sucessores?
III. A propósito de mais uma demonstração caricata de como, às vezes, se fazem as nossas leis, encontramos, neste episódio, um excelente pretexto para estudar:
— a essência histórico cultural do Direito civil português;
— a construção dos direitos de personalidade e a sua tutela;
— o papel do Estado na defesa da cultura portuguesa.
Sem humildade e sem estudo não há qualquer Ciência do Direito consistente. E em caso algum o Direito se esgota em técnicas burocráticas, más ou boas.
Finalmente: quais são as capacidades auto regeneradoras do Direito português, enquanto sistema coerente, perante as intervenções impensadas do legislador absoluto? Temos, aqui, pretexto para um bom exercício jurídico científico.
II—NOTA DE HISTÓRIA E DE DIREITO COMPARADO
4. Noções básicas
I. O título nobiliárquico é uma designação atribuída ou reconhecida a certas pessoas, com fins de distinção, de acordo com um corpo de regras jurídicas. O Direito português comporta os títulos de duque, marquês, conde, visconde e barão.
Historicamente, o título nobiliárquico traduzia uma função militar do agraciado. Como tal, comportava um acervo significativo de direitos e de deveres. Ao longo da História, a dimensão militar veio a ceder o lugar a funções civis. Após o liberalismo, o título nobiliárquico passou a ter um mero papel honorífico, como tal se mantendo, sob a República.
II. O título nobiliárquico não se confunde com a qualidade de nobre(5) ou membro da nobreza(6) (o segundo estado, na tradição francesa). Basta adiantar dois traços de distinção: o título é uma designação formal, que carece de um processo de atribuição ou de reconhecimento, enquanto a qualidade de nobre pressupõe, apenas, o acto de nascimento, sendo inerente a quem dela disfrute; o título compete ao agraciado ou, por morte deste e em certos casos, ao seu primogénito, enquanto a qualidade de nobre ocorre, automática e imediatamente, em toda a sua geração. Há titulares sem nobreza (tradicional) e nobres (tradicionais) sem títulos.
III. O título nobiliárquico tão pouco implica aristocracias ou aristocratas. Aristocracia(7) é, etimologicamente, o governo dos mais poderosos ou dos mais nobres. O termo caracterizava os regimes políticos modernos pré liberais, que assentavam num papel político privilegiado da nobreza de sangue. A titularidade nobiliárquica pode não ter qualquer alcance político. Assim sucede nos regimes democráticos, particularmente após a implantação do liberalismo. E assim sucede, hoje, na generalidade das repúblicas europeias, que foram monarquias.
IV. Ao longo da História, as três noções adiantadas (título nobiliárquico, nobreza e aristocracia) apresentaram múltiplas relações de implicação. Além disso, todas elas tiveram origem moderna nas sociedades ocidentais cristianizadas, após o Império Carolíngio (séc. IX)(8). Mau grado a cepa comum, as regras aplicáveis são diferentes, nos diversos espaços que constituiriam as várias nacionalidades. As diversidades do início complementaram se com evoluções distintas e com múltiplas situações de recepção(9). Em suma: não se pode falar, rigorosamente, em títulos, em nobreza ou em aristocracia, sem situar concretamente as questões, no espaço e no tempo.
5. A experiência francesa
I. A aristocracia, a nobreza e a própria atribuição de títulos nobiliárquicos foram abolidas por revoluções republicanas ocorridas nalguns países ocidentais, nos séculos XVIII, XIX e XX. Tais abolições tiveram uma eficácia limitada. Na verdade, enquanto designações honoríficas, os títulos nobiliárquicos são inóquos para os regimes republicanos. Em compensação, eles comportam uma dimensão histórico-cultural que as próprias repúblicas, passada a fase mais contundente da sua afirmação revolucionária, têm interesse em salvaguardar.
A primeira experiência a considerar neste domínio é a da Revolução Francesa. Trata-se de um evento que ficaria consagrado como o grande paradigma de todas as revoluções.
II. As medidas abolicionistas primeiro tomadas surgiram, em França, na sequência da Revolução de 1789. Na noite de 4 de Agosto de 1789, a nobreza francesa renunciou a todos os seus direitos efectivos, numa posição legalizada por Lei de 3 de Novembro do mesmo ano. No período revolucionário mais radical, os próprios títulos nobiliárquicos foram proscritos. Assim, segundo a Lei de 17 23 de Junho de 1790, ainda promulgada por Luís XVI(10),
La noblesse héréditaire est pour toujours abolie. Les titres de prince, duc, comte, marquis, vicomte, vidame, baron, chevalier, messire, écuyer, noble et tous autres semblables ne seront ni pris par qui que ce soit ni donnés à qui que soit.
A Constituição de 3 de Setembro de 1791, jurada por Luís XVI a 14 desse mês, dispunha no preâmbulo:
Il n’y a plus de noblesse, ni pairie, ni distinations héréditaires, ni régime féodal (...)
III. Esta orientação foi revista. A partir de 1806, Napoleão I daria início à concessão de novos títulos nobiliárquicos, embora sem reconhecer os antigos(11). Em termos técnico jurídicos, os títulos imperiais não nobilitavam os beneficiários e tinham meras consequências honoríficas: funcionavam como condecorações hereditárias(12).
A Carta Constitucional de 1814, outorgada por Luís XVIII, colocou o problema da nobreza em termos actuais. Segundo o seu artigo 71.°(13),
La noblesse ancienne reprend ses titres, la nouvelle conserve les siens, le roi fait des nobles à volonté, mais il ne leur accorde que des rangs et des honneurs, sans aucune exemption des charges et devoirs de la société.
Este preceito foi reproduzido no artigo 62.° da Carta de 1830(14). Na altura como posteriormente, tratou-se apenas de reconstituir o seu sentido honorífico e a tradição histórica. Nos termos da jurisprudência da época(15),
(...) les titres de noblesse n’ont été rétablis qu’à l’état de propriété honorifique: ils servent non à designer, mais à honorer ceux qui les possèdent.
IV. A regularidade do uso dos títulos — que não são mais conferidos, ex novo, a partir da III República — era sancionada pelo Conseil du sceau des titres, estabelecido pelo Decreto de 8 de Janeiro de 1859. Suprimido pelo Decreto de 10 de Janeiro de 1872, as suas atribuições são exercidas por um Conselho de Administração estabelecido no Ministério da Justiça(16).
A defesa, em tribunal, dos títulos nobiliárquicos franceses, faz se em três níveis: (1) tribunais administrativos; (2) tribunais civis; (3) juízos criminais(17).
Para os tribunais administrativos (Conseil d’État) recorre se das decisões relativas ao reconhecimento dos títulos nobiliárquicos, tomadas pelo Ministério da Justiça(18).
Os tribunais civis, após alguma hesitação(19), são reconhecidos competentes para dirimir litígios, entre particulares, quanto ao caso de títulos nobiliárquicos(20).
Finalmente, os juízos criminais operam para aplicação do (actual) artigo 433 19 do Código Penal, que incrimina o uso de um nome ou de um acessório ao nome de outrem, bem como a modificação dos próprios nome ou acessório.
V. A existência, a eficácia e a tutela estadual dos títulos nobiliárquicos franceses não levanta as mínimas dúvidas. Naturalmente: os Autores explicam que tais títulos são meros acessórios honoríficos do nome. Não mais podem ser criados e devem obedecer à dupla regularidade: de aquisição e de transmissão. Seguem as regras do Direito antigo sem que, aí — e dada a sua dimensão honorífica — se veja qualquer problema constitucional ou de ordem pública(21).
VI. A situação francesa é particularmente interessante. Ao longo dos séculos XVII e XVIII observou se, em França, uma forte reacção nobiliárquica, em relação ao terceiro estado. Contrariando as tradições ocidentais, que sempre viram, na nobreza, um corpo aberto ao qual se podia aceder pelas acções valorosas em prol da comunidade, o sistema francês fechou se: os títulos só podiam ser concedidos a nobres de sangue. Além disso, chegou se a um exclusivismo nobiliárquico: as funções militares, judiciais e funcionais, a partir dos graus médios, só eram acessíveis aos nobres. Os mais distintos burgueses, por vezes já com muitas gerações, não logravam essa ascensão(22).
O bloqueio social em França, inexplicável perante as luzes do século XVIII, e a incapacidade de Luís XVI de encabeçar, ele próprio, o movimento reformador requerido, têm sido apontados como uma das causas da Revolução Francesa e do radicalismo que ela assumiu. Justamente por isso: a sociedade francesa, conhecendo melhor do que as suas congéneres os inconvenientes de uma estratificação social contrária, de resto, à tradição ocidental e tendo esconjurado esse desvio está, hoje, tranquila. Pode, sem complexos nem preconceitos, conviver com as suas tradições culturais.
6. A experiência italiana
I. Em Itália, a nobreza tradicional articulava-se em função dos antigos Estados pré-unitários ou de suas regiões(23). Há, ainda, que ter em conta os títulos canónicos e eclesiásticos(24).
Já num ambiente de unificação, o artigo 79.° do Estatuto Albertino, claramente inspirado no artigo 71.° da Carta Constitucional francesa de 1830, dispunha:
I titoli di nobiltà sono mantenuti per coloro che vi hanno diritto. Il Re può conferirne dei nuovi.
A jurisprudência não teve dificuldades em conciliar este dispositivo com o princípio da igualdade, consagrado no art. 24.° do Statuto(25).
Assim, segundo a Cassação de Roma, em 22 de Dezembro de 1879,
O Estatuto, que proclamara no artigo 24.° a igualdade dos cidadãos perante a lei, não deixa de providenciar para que este altíssimo princípio de razão natural não seja, com danos público e privado, usado e exagerado ao ponto de justificar uma absurda paridade de riqueza e de bens e uma inútil abolição da nobreza pessoal ou da nobreza hereditária. E assim, no mesmo Estatuto se inscreveram outras declarações pelas quais se consignava que se os novos tempos não contemporizavam nem com a casta da antiguidade, nem com a escravatura do mundo pagão e nem tão-pouco com o feudalismo da Idade Média, a igualdade civil não podia existir senão proporcional e que, se bem que lhe repugnassem distinções pessoais, derivadas de privilégios e de isenções, isso não conduzia à abolição daqueles títulos e daqueles graus sem funções e sem prerrogativas, os quais, em substância, apenas implicavam um valor, como soi dizer-se, de simples opinião(26).
De resto, a mesma Cassação remetia a concessão dos títulos simplesmente para o poder do Rei(27).
O Statuto viu o seu âmbito de aplicação alargar-se progressivamente, à medida que avançava a unificação italiana.
II. A evolução processada em Itália foi paulatina. E assim, quando, no segundo pós-guerra, foi proclamada a República, a existência de títulos nobiliárquicos estava desdramatizada.
A Constituição da República Italiana de 1948 não veio abolir propriamente os títulos de nobreza nem, muito menos, proibi-los(28). Limitou se, tão-só, a afirmar que os mesmos não eram reconhecidos, nos seguintes termos(29):
I titoli nobilari non sono riconosciuti.
I predicati di quelli existenti prima del 28 ottobre 1922 valgono come parte del nome.
L’Ordine mauriziano è conservato come ente ospedaliero e funziona nei modi stabiliti dalla legge.
La legge regola la soppressione della Consulta araldica.
Note se que a monarquia sobreviveu em Itália até ao final da Guerra de 1939 1945. Todavia, após a “marcha sobre Roma” de 1922, estabeleceu se o regime fascista. Houve a preocupação de não reconhecer os títulos então atribuídos: apenas se admitiriam, com o sentido onomástico referido, os anteriores a essa data.
III. A disciplina e o reconhecimento dos títulos nobiliárquicos, em Itália, depois da Constituição de 1948, é assegurada por uma associação privada: o Corpo della Nobiltà italiana, que, nas palavras de Enrico Genta, reivindica uma continuidade ideal com a Consulta Heráldica(30), organismo anterior de disciplina dos títulos.
Os Autores italianos afirmam que o fenómeno do “abusivismo” quanto a títulos de nobreza é, em Itália, muito reduzido. A nobreza manteria, aí, um particular prestígio, em termos reforçados por estatísticas por eles apresentadas: em 1972, numa população de 50 milhões de pessoas, haveria 6.000 a 7.000 titulares; em França, antes da Revolução, em 22 milhões de pessoas, haveria 100.000 nobres(31).
Admite se, finalmente, o registo civil de títulos nobiliárquicos, tomados como parte do nome. Exige se, todavia, a demonstração da existência do título, no próprio ou no seu antecessor, antes de 1922(32).
7. A experiência alemã
I. Na Alemanha, a nobreza tinha largas tradições militares e culturais, assumindo um papel muito importante até, praticamente, 1918. A derrota na Grande Guerra de 1914-1918 — na qual pereceria, aliás, a mais fina flor da tradicional nobreza militar alemã — a queda do Império e os eventos revolucionários que se lhe seguiram pareceriam conduzir a posturas radicalmente contrárias aos títulos nobiliárquicos.
Na realidade, isso não sucedeu. O Direito republicano alemão, perante os títulos de nobreza, em vez de os abolir, os proibir ou, simplesmente, de não os reconhecer, optou antes por proceder à sua generalização. E fazendo-o, paradoxalmente, conseguiu, mais do que nas outras Repúblicas do Ocidente, reformular os fundamentos de uma ordem nobiliárquica coerente e actualizada.
II. O texto-base no estado actual da nobreza alemã é o artigo 109.°/3 da Constituição de Weimar:
São revogados os privilégios ou as desvantagens de Direito público ligadas ao nascimento ou ao estado. As designações nobiliárquicas valem apenas como parte do nome e não mais podem ser concedidas(33).
A Constituição de Weimar, enquanto Constituição, está hoje substituída pela Lei Fundamental de 1949. Não obstante, e visto o art. 123.° desta Constituição, o referido artigo 109.°/3 vale enquanto lei ordinária(34).
Os títulos nobiliárquicos foram, assim, transformados: de designações honoríficas, eles passaram a fazer parte do nome civil dos cidadãos.
III. Na sequência indicada, as designações nobiliárquicas desempenham, hoje, as funções de apelido ou de parte do apelido das pessoas(35).
A transmissão do título, agora transformado em nome, segue a via do Direito de família, beneficiando, inclusive, os filhos nascidos fora do casamento(36).
III—AS LEIS REPUBLICANAS SOBRE TÍTULOS NOBILIÁRQUICOS
8. A proclamação de 5 de Outubro de 1910
I. O regime monárquico constitucional ficou muito enfraquecido com o assassinato do Rei D. Carlos I e do Herdeiro, D. Afonso, em 1908. Esse acontecimento fora antecedido pela greve académica de 1907, na Universidade de Coimbra, importante por bulir com as concepções da inteligência nacional, e por uma intensa agitação republicana. Ao jovem Rei D. Manuel II foi dada pouca margem para reconstruir a credibilidade da monarquia constitucional. Esta, de resto, deveria ainda apoiar se nos partidos monárquicos que, muitas vezes, optaram por atacar a própria instituição monárquica.
II. Aquando da sublevação republicana de Outubro de 1910, o regime caiu porque, perante a grande determinação de uns poucos, não houve reacção nem da maioria, nem das instituições legítimas(37). Deve, de resto, dizer se que, até hoje, o regime republicano subsequente nunca foi referendado(38). Pela nossa parte, não temos qualquer dúvida em afirmar que, em 1910, foi derrubado, pela força e à margem de qualquer procedimento parlamentar legítimo, um regime constitucional e democrático. O colapso do regime constitucional de 1910 foi, de resto, o prelúdio do regime do Estado Novo, iniciado menos de 16 anos depois. Esperemos que, aquando do 1.° Centenário da República, haja, já, um distanciamento histórico suficiente para poder ser feita justiça ao constitucionalismo português do século XIX: permitiu, em oitenta anos de graves convulsões internas, que incluíram intervenções de forças estrangeiras, e mau grado dificuldades externas de toda a ordem, manter as nossas língua e cultura, preservar a independência nacional, defender a democracia liberal, iniciar a industrialização e salvaguardar um dos maiores impérios coloniais da época.
A legitimidade do regime republicano actual (que não contestamos) é histórica: como sucede com a de todas as monarquias e a de todas as repúblicas.
9. As medidas revolucionárias
I. Nos dias subsequentes ao levantamento republicano, o Governo Provisório dele resultante tomou diversas medidas contra símbolos e valores da Monarquia Portuguesa(39).
Nessa linha há que computar os dois Decretos de 15 de Outubro de 1910 que, respectivamente, declararam “proscripta a família de Bragança que constituia a dynastia deposta pela revolução e mantem a proscrição do ramo da mesma familia banido pelo extinto regime” e “... abolidos os titulos nobiliarchicos, distincções honorificas ou direitos de nobreza, e as antigas ordens nobiliarchicas, com excepção da Ordem Militar da Torre e Espada”.
II. O Decreto relativo aos títulos nobiliárquicos articulava:
Artigo 1.° A Republica Portuguesa tem por abolidos e não reconhece quaesquer titulos nobliarchicos, distincções honorificas ou direitos de nobreza.
Art. 2.° As antigas ordens nobliarchicas são declaradas extinctas para todos os efeitos.
Art. 3.° É mantida a Ordem Militar da Torre e Espada cujo quadro será revisto para a radiação pura e simples de todos os seus dignitarios que não houverem sido agraciados por actos de valor militar em defesa da patria.
Art. 4.° Os individuos que actualmente usam titulos que lhe foram conferidos, e de que pagaram os respectivos direitos, podem continuar a usá los, mas nos actos e contratos que tenham de produzir direitos ou obrigações será necessario o emprego do nome civil para que tenham validade(40).
Os títulos nobiliárquicos portugueses, com excepção do de Conde, que acompanhou a própria Fundação do País, foram surgindo ao longo dos tempos, especialmente no século XV(41). Eles documentam muitos episódios da nossa História. De todo o modo, no século XIX, já pouco mais eram do que distinções honoríficas, sem relevo político, jurídico ou económico. Assim se compreende a moderação da República.
III. Perante o citado artigo 4.° do Decreto de 15 de Outubro de 1910, os comentadores logo entenderam que, pelo menos nos títulos de juro e herdade, era facultada a sua transmissão: esse era o seu conteúdo(42). Tal interpretação veio, aliás, a ser facilitada por um Decreto de 2 de Dezembro de 1910, que deu nova redacção ao citado artigo 4.° do Decreto de 15 de Outubro, deixando-o nos seguintes termos:
Os individuos que actualmente usam titulos nobliarchicos, distincções honorificas ou direitos de nobreza, que lhe foram conferidos, e dos quaes tenham quitação ou direito a ella, ou sejam devedores dos respectivos impostos ou as estejam pagando, quer por terem prestado caução, quer por auferirem vencimentos do Estado, podem continuar a usá-los; mas nos actos que tenham de produzir direitos ou obrigações, será necessario o emprego do nome civil para que esses actos tenham validade.
10. Os códigos do registo civil
I. Com interessantes antecedentes(43), a I República adoptou um Código do Registo Civil, aprovando o pelo Decreto de 18 de Fevereiro de 1911. Esse diploma logo veio dispor, no seu artigo 144.°(44):
Nos assentos de nascimento não poderão figurar, em caso algum, os sobrenomes e quaesquer referencias honorificas ou nobiliarchicas do registado, nem os titulos ou honras que porventura, ao lado dos nomes civis, ainda possam usar seus paes ou avós.
O artigo 224.° do mesmo Código mandava observar, nos assentos de casamento, quanto ao nome dos nubentes, o disposto no artigo 144.° citado.
A orientação fundamentalista de 1911, contrária ao Decreto de 1910, depressa foi invertida. A Lei de 10 de Julho de 1912, que visou alterar várias disposições do Código do Registo Civil, veio pura e simplesmente revogar, no seu artigo 51.°, os artigos 144.° e 224.° daquele diploma(45).
Chegou-se, assim, a uma situação bastante permissiva, que ditaria as medidas legislativas subsequentes: é que, pela lacuna aberta, não só se mantinham os títulos antigos, como se assistia a um proliferar de situações abusivas, à margem do ordenamento nobiliárquico e de qualquer legitimidade constitucional.
II. Deste modo, a própria República acabaria por intervir, de modo a disciplinar a situação dos títulos, prevenindo excessos.
Assim, o Decreto n.° 10.537, de 12 de Fevereiro de 1925(46), veio dizer no seu preâmbulo, entre outros aspectos:
Considerando que esses foros ou títulos, anteriormente concedidos por quem de direito, representaram por vezes o reconhecimento de relevantes serviços prestados à Nação, e alguns deles correspondem a gloriosas tradições de família, recordando altos feitos de portugueses, que souberam honrar a pátria; (...)
Considerando que, se uma disposição transitória dos decretos de 15 de Outubro e 2 de Dezembro de 1910 manteve a alguns indivíduos o direito de usarem de títulos nobiliárquicos com determinadas limitações, é justo defender esse direito contra abusos, que são até puníveis nos termos do artigo 237.° do Código Penal; (…)
Posto o que, segundo este diploma, nunca poderia ser dado andamento a nenhum acto, contrato ou documento onde, além do nome do interessado, figurasse uma referência honorífica ou nobiliárquica, sem que fosse feita prova do direito ao uso do título ou distinção correspondente (artigo 1.°). E continuava:
É facultado aos interessados fazerem a prova por uma só vez no Ministério da Justiça e dos Cultos, para o efeito de ser lhes averbado na cedula pessoal (…) o título ou distinção a que tiverem direito (…) (artigo 2.°, § 1.°).
III. Seguiu se o Código do Registo Civil de 1932, aprovado pelo Decreto n.° 22.018, de 22 de Dezembro, o qual, no seu Título II relativo aos actos do registo do estado civil, Capítulo I — Dos actos do registo em geral continha uma secção IV expressamente intitulada Das referências honoríficas ou nobiliárquicas. Dispunha o seu único artigo — o 211.°(47):
São permitidas as referências honoríficas ou nobiliárquicas, devendo o título ser sempre precedido do nome civil do registado ou dos intervenientes nos registos.
§ único. Os funcionários exigirão aos interessados certidões, que ficarão arquivadas, extraídas de documentos ou registos das secretarias do Estado, do antigo Ministério do Reino, do Arquivo Nacional, de outros arquivos ou cartórios públicos, para prova do direito de usar o título, e de que foram pagas as taxas devidas, ou a apresentação da portaria a que se refere o decreto n.° 10.537, de 12 de Fevereiro de 1925, da cédula pessoal ou bilhete de identidade, desde que neles esteja averbada a referência honorífica ou nobiliárquica.
Este preceito visava justamente evitar usos abusivos de títulos nobiliárquicos(48).
IV. O citado artigo 211.° do Código do Registo Civil de 1932 terá levantado diversas dúvidas que estiveram na origem de vários pareceres do Conselho Técnico da Direcção-Geral dos Registos e Notariado e da Procuradoria-Geral da República(49).
Visando solucionar tais dúvidas, o Código do Registo Civil aprovado pelo Decreto-Lei n.° 41.967, de 22 de Novembro de 1958, veio, no seu artigo 111.°(50), inserir um preceito que transitaria, sob o artigo 51.°, para o Código de 1967(51), e sob o artigo 50.°, para o Código de 1978(52), com a seguinte redacção:
2—São permitidas referências honoríficas ou nobiliárquicas, antecedidas do nome civil dos intervenientes nos actos de registo, desde que estes provem, por documento bastante, que ficará arquivado, o direito ao seu uso.
3—A referência a títulos nobiliárquicos portugueses só será permitida quando os intervenientes provem que estavam na posse e uso do título anteriormente a 5 de Outubro de 1910 e que as taxas devidas foram pagas.
V. Em suma: as leis da República vieram tutelar os títulos nobiliárquicos legítimos, com referência aos titulares que os detivessem, em 1910.
Por esta via, aparentemente e com a passagem do tempo, extinguir se iam, na ordem civil, todos os títulos nobiliárquicos portugueses — excepto, eventualmente, os de origem estrangeira: as pessoas habilitadas, em 1910, a usá los acabariam por falecer.
O problema foi solucionado pela versão original do Código do Registo Civil de 1995(53), hoje em vigor. Assim, o seu artigo 40.° vigente, equivalente ao artigo 50.° acima transcrito, introduziu uma pequena mas significativa alteração. Dispôs o n.° 3 do preceito em causa:
A referência a títulos nobiliárquicos portugueses só é permitida quando os interessados provem que têm direito à posse e uso de título existente antes de 5 de Outubro de 1910 e que as taxas devidas foram pagas.
Admite a lei a referência oficial a títulos adquiridos legitimamente após 1910, desde que tais títulos já existissem em 1910. A “posse e uso” actual de título anterior a 1910 só poderá ter sido adquirida na base das regras nobiliárquicas aplicáveis. Estas ficaram, assim, genericamente acolhidas na lei civil portuguesa em vigor.
11. As leis comerciais
I. Para além do registo civil, a referência a títulos nobiliárquicos, em textos legais republicanos, surge ainda no Decreto-Lei n.° 129/98, de 13 de Maio, conhecido como Registo Nacional de Pessoas Colectivas (RNPC). Mau grado a sua designação(54), o RNPC ocupa se, em geral, de firmas e denominações, incluindo as das pessoas singulares. Esclareça se que o RNPC foi alterado, sucessivamente, pelos Decretos-Leis n.° 12/2001, de 25 de Janeiro, n.° 323/2001, de 17 de Dezembro, n.° 2/2005, de 4 de Janeiro, n.° 111/2005, de 8 de Julho, n.° 76 A/2006, de 29 de Março, n.° 8/2007, de 17 de Janeiro e n.° 247-B/2008, de 30 de Dezembro, tendo, todavia, ficado incólume o preceito que ora nos ocupa.
No RNPC, o artigo 38.° rege os nomes dos comerciantes individuais. E aí, dispõe o seu n.° 3:
O nome do comerciante individual não pode ser antecedido de quaisquer expressões ou siglas, salvo as correspondentes a títulos académicos, profissionais ou nobiliárquicos a que tenha direito, e a sua abreviação não pode reduzir se a um só vocábulo, a menos que a adição efectuada o torne completamente individualizador.
No que agora releva: “títulos nobiliárquicos a que tenha direito” serão aqueles a que, de acordo com as regras vigentes até 4 de Outubro de 1910, o interessado tenha jus(55); não há outras.
III. Também o Código da Propriedade Industrial, adoptado pelos Decreto Lei n.° 36/2003, de 5 de Março, a propósito do registo das marcas, vem dispor que o mesmo é ainda recusado — 239.° — quando contenha, em todos ou alguns dos seus elementos,
a) Brasões ou insígnias heráldicas, medalhas, condecorações, apelidos, títulos e distinções honoríficas a que o requerente não tenha direito ou, quando o tenha, se daí resultar o desrespeito e o desprestígio de semelhante sinal.
Ficam, neste caso, os títulos nobiliárquicos. O Tribunal da Relação de Lisboa, em excelente acórdão de 25 Set. 1997, fez aplicação de regra equivalente, à luz do Código da Propriedade Industrial de 1940. Tratava se da marca Marquês de Marialva, que uma sociedade de vinhos pretendia fazer registar. Todavia, o título Marquês de Marialva, concedido de juro e herdade por D. Filipa de Gusmão, como regente por menoridade de D. Afonso VI, em 11 Jun. 1661, a D. António Luís de Menezes, 3.° Conde de Cantanhede, cabia, na altura, a D. Lopo de Bragança, 7.° Marquês de Marialva (hoje, é 8.° Marquês de Marialva D. Diogo de Bragança), que se opôs à pretensão. Diz o acórdão, entre outras passagens de interesse(56):
(…) o nome e os títulos (académicos, profissionais ou nobiliárquicos) sendo uma dimensão da identidade pessoal, encontram, em Portugal, tutela constitucional e legal (…)
(…) a protecção que aí se dá aos títulos nobiliárquicos não abrange a sua dimensão honorífica uma vez que esta, como acima se referiu, não cabe no princípio republicano que informa a nossa Constituição, mas abrange apenas a sua dimensão identificadora e histórica (…)
(…) os títulos nobiliárquicos, para além de poderem constituir um elemento identificador de uma família ou pessoa, podem ter um significado importante no aspecto cultural e memória de um povo e fornecer indicações consideráveis para a sua reconstituição.
III. Em suma: o Direito português vigente continua, para determinados efeitos, a considerar os títulos nobiliárquicos, de acordo com as suas próprias regras republicanas, dispensando lhes protecção.
IV—OS FUNDAMENTOS DA TUTELA
12. Questão prévia: o princípio da igualdade
I. Independentemente das contingências legislativas, cumpre agora verificar quais os fundamentos jurídicos da tutela dos títulos nobiliárquicos, no actual Direito português.
Mas antes disso e como questão prévia, devemos ponderar a sua admissibilidade, perante o artigo 13.° da Constituição vigente, que consagra o princípio da igualdade. Trata se de um postulado básico do constitucionalismo: ele remonta aos artigos 9.°, 12.° e 15.° da Constituição de 1822, reaparecendo, sucessivamente, nos artigos 14.°, § 12.° e 145.°, §§ 12.°, 13.° e 16.° da Carta Constitucional de 1826, nos artigos 10.°, 20.°, § único e 30.° da Constituição de 1838, no artigo 3.°/2 e 3 da Constituição de 1911 e no artigo 5.° da Constituição de 1933.
De facto, segundo o preceito em causa, particularmente no seu n.° 2, “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, designadamente, da ascendência ou do sexo”. Precisamente: os títulos nobiliárquicos, em razão da sua hereditariedade e da regra de transmissão preferencial por via masculina, não preencherão a proibição constitucional?
II. A grande projecção da regra da igualdade é a proibição do arbítrio(57): há que tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida da diferença. Os títulos nobiliárquicos são distinções tradicionais que têm, na origem, funções militares. A sua presença primacial no elemento masculino da família advém daí. Quanto à hereditariedade: ela é reconhecida constitucionalmente: pense se na garantia da propriedade (62.°/1, da Constituição), que envolve a sua transmissibilidade, em vida ou por morte. Nada tem, em si, de inconstitucional.
Perante estas considerações, o problema desloca se para as consequências: os títulos nobiliárquicos provocam ou originam “privilégios”, “benefícios”, “privações de direitos” ou “isenções de deveres”? A resposta é claramente negativa. Já no período do constitucionalismo monárquico, os títulos nobiliárquicos apenas traduziam distinções e honrarias. Após a proclamação da República, assim é, por maioria de razão. Pela sua natureza puramente honorífica e tradicional, não há, aqui, qualquer quebra de igualdade. O cidadão titular tem, perante o sistema jurídico vigente, precisamente os mesmos direitos e os mesmos deveres de qualquer cidadão que o não seja.
III. Em matérias como a que aqui nos ocupa, há que ter o sentido das proporções. Temos, na União Europeia, regimes monárquicos, em cujo quadro continuam a ser atribuídos títulos nobiliárquicos: Bélgica, Dinamarca, Espanha, Holanda, Luxemburgo, Noruega, Reino Unido e Suécia, além dos casos especiais do Lichtenstein, do Mónaco e do Vaticano. Seria totalmente absurdo questionar, nesses Estados, a igualdade, a democracia ou os direitos humanos, por essa via. Além disso, os títulos são preservados, conforme vimos, em sólidos regimes republicanos, como a Alemanha, a França ou a Itália.
IV. De resto, a questão já foi discutida, por exemplo, no Tribunal Constitucional Espanhol e no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O primeiro, questionado por causa do problema da transmissibilidade dos títulos por linha preferencial masculina, explicou que se tratava de uma pura regra tradicional, que remonta às Siete Partidas (século XIII) e que não implica direitos ou deveres suplementares: o título é puramente honorífico, traduzindo a memória histórica da sua atribuição(58).
A questão foi levada ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, precisamente por mulheres que se entendiam discriminadas por terem sido preteridas na transmissão hereditária dos títulos(59). Numa decisão conjunta, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu que não havia discriminação, uma vez que os títulos em jogo, sendo meras distinções honoríficas tradicionais, não dão nem representam direitos ou deveres, nem implicam, por si, vantagens económicas susceptíveis de protecção jurídica.
V. Curiosamente, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem teve, sim, de acudir para evitar a discriminação de titulares: os casos do Príncipe de Nápoles, proibido (então) por um preceito constitucional italiano de regressar ao seu País e do ex rei da Grécia, despojado de direitos patrimoniais próprios.
Em suma: pela sua natureza, não podemos ver, na presença ou na ausência de um título nobiliárquico português actual, nada que contradiga a igualdade, substancialmente tomada.
13. Primeiro fundamento: o direito à honra
I. O primeiro fundamento do reconhecimento dos títulos nobiliárquicos é a honra.
A honra constitui a consideração pela integridade moral de cada ser humano. Podemos distinguir a honra social ou exterior, que exprime o conjunto de apreciações valorativas ou de respeito e deferência de que cada um disfruta na sociedade e a honra pessoal ou interior, que corresponde à auto estima ou imagem que cada um faz das suas próprias qualidades(60). A honra constitui uma base para juízos éticos dos seus semelhantes, juízos esses que se repercutem na auto estima de cada um. No seu conjunto, tudo isto dá corpo à integridade moral, formalmente referida no artigo 70.°/1, do Código Civil.
A honra social comunica se, necessária e automaticamente, às representações verbais de cada pessoa, isto é: ao seu nome. A consideração de que cada um disfrute, na sociedade, exprime o seu bom nome; este, na razão directa das valorações positivas que concite, dá azo à reputação do sujeito. A reputação pode, por seu turno, abranger os mais diversos sectores; teremos a reputação pessoal, quando envolva juízos valorativos positivos quanto à integridade, à seriedade e à moralidade do sujeito; a reputação familiar; a reputação profissional; a reputação cívica; a reputação política e assim por diante.
II. Os clássicos referem uma honra puramente de consciência. Nas palavras de Séneca(61),
Recte facti fecisse merces est (62).
Tão longe não irá o Direito. As projecções sociais da honra interior e a sua interligação ao exterior são patentes. Mau grado um certo pessimismo, recordamos Schopenhauer(63),
A honra, objectivamente, é a opinião dos outros sobre o nosso valor e, subjectivamente, o nosso medo dessa opinião.
A opinião dos outros sobre o nosso valor — a opinião pública — é, no fundo, o modo de uma integração na sociedade(64). Compreende se, por isso, que qualquer atentado à honra acabe por ser sentido no mais íntimo da pessoa. Noutros termos: o bem “honra” é um verdadeiro bem de personalidade, ainda quando o Direito atente, para poder proteger o próprio interior, às realidades sociais perceptíveis.
III. A defesa da honra, no sentido amplo acima consignado, correspondeu a um valor tradicional do Ocidente. Todo o ideal da cavalaria, expresso em tradições e nas literaturas dos diversos países, apontava para a honra como o bem máximo, a defender em quaisquer circunstâncias e até às últimas consequências.
Os tempos mudaram. A honra, antes de mais, é defendida e promovida não como bem absoluto em si, mas como fonte de outras vantagens, particularmente de ordem social e patrimonial. O Direito civil, enquanto repositório mais profundo dos valores das pessoas, deve procurar um certo equilíbrio.
A honra vale por si: não — ou não apenas — pelas vantagens sociais e patrimoniais que acarrete. Nesses termos, pode haver atentados à honra mesmo que, daí, não decorram quaisquer prejuízos. Além disso, a honra deve ser protegida pela legitimidade das vantagens que porventura acarrete. Jogam, depois, as diversas regras relativas a conflitos de direitos — e quando conflitos surjam, o que tenderá a ser o caso.
IV. O Código Civil não refere — e é pena, pois seria um dado bem nacional! — a honra e a sua tutela. O seu artigo 70.°/1 protege “... os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa, à sua personalidade (...) moral”. Por seu turno e no campo da responsabilidade civil, o artigo 484.°, sob a epígrafe “ofensa do crédito ou do bom nome”, dispõe:
Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.
Este último preceito deve ser aproximado dos direitos de personalidade. Efectivamente, a ofensa do crédito ou do bom nome exige, em regra, medidas de correcção e de reposição da verdade, que não se esgotam na responsabilidade civil.
Finalmente, a Constituição, ao referir, no seu artigo 26.°, o direito ao bom nome e à reputação, entre os direitos fundamentais protegidos dá, à honra, mais uma base jurídico positiva de tutela legal.
V. Passando aos títulos nobiliárquicos: estamos perante sinais distintivos de famílias e das pessoas que as componham. Tais sinais são aprazíveis e traduzem, em regra, episódios históricos vividos, mais intensamente, pelos seus beneficiários. Pela natureza das coisas, eles vão compor o acervo de apreciações valorativas de quem deles disfrute, na sociedade, reflectindo se na sua própria auto estima.
Pois bem: permitir que um título legítimo seja postergado, vilipendiado ou indevidamente apropriado atentaria, efectivamente, contra a honra do titular legítimo e da sua família. Trata se de um dado de fácil apreensão e que dispensa, ao nome, a tutela do artigo 26.°/1, da Constituição (bom nome).
14. Segundo fundamento: o direito ao nome; a) Evolução e natureza
I. Encontramos um segundo fundamento da tutela dos títulos nobiliárquicos no direito ao nome. Vamos colocar esse tema.
Cada ser humano é uma individualidade autónoma. Apesar de gregário, o homem não perde nunca a sua autonomia como ente biológico, moral e social. Essa autonomia dá azo a uma designação também individual: cada pessoa dispõe de uma figuração vocabular, primeiro oral e, depois, também escrita, que permite identificá la com facilidade e segurança: o nome. O nome poderá ser definido, sinteticamente, como a representação linguística de um ser humano(65). Tem uma função dupla: vocativa e distintiva. Vocativa, porquanto permite designar a pessoa que o use; distintiva por facultar destrinçá lo dos demais(66).
Em sociedades muito simples, o nome de cada membro seria elementar: uma única palavra, porventura tomada ao acaso, bastaria. Em sociedades mais avançadas, o nome passou a ser escolhido socialmente, em princípio pelo pai com ou sem a intervenção da mãe. À medida que as comunidades se tornaram numerosas e complexas, um nome simples era insuficiente: houve que acrescentar vocábulos, indicando a origem, a filiação ou outras características diferenciadoras. Apareceram regras, embora ténues: a disponibilidade do nome pelas pessoas surgia natural(67). Vieram a ser fixadas regras, para tanto e ao longo da História.
II. Na evolução subsequente(68), o interesse público determinaria a estabilização do nome(69). Como marcos significativos refere se, em França, cujo papel foi liderante, durante muito tempo, neste domínio, a Ordenança de Amboise, de 26 Mar. 1555, sob Henrique II, que proibiu a mudança de nome sem carta de dispensa(70) e o Decreto da Convenção de 23 Ago. 1794, que revogando um decreto anterior que autorizava cada um a usar o nome que entendesse(71), proibiu o uso de nomes diversos dos resultantes do acto de nascimento(72). Anteriormente, um Decreto de 20 Set. 1792 veio fixar “o modo de constatar o estado civil dos cidadãos”, no que pode ser considerado como um primeiro embrião de registo civil(73). O Decreto do 6 Fructidor II obrigou a que se usasse sempre e apenas o nome e o apelido constantes do acto de nascimento. A cúpula ficou completa com o Decreto de 11 Germinal XI: admitia se a mudança de nome, mas só com autorização do Governo. Estava consumado o controlo do Estado sobre o nome(74).
III. O nome das pessoas surge como algo de tão evidente, que só tardiamente o Direito conseguiu explicar a sua natureza. Na pandectística alemã do século XIX considerou se que os assuntos atinentes ao nome pertenciam aos serviços administrativos(75); seriam, assim, dominados por vectores de Direito público(76). Enquanto isso, grassava, em França, a ideia de um direito de propriedade ao nome(77).
Apenas na pandectística mais tardia se imporia a ideia do nome como uma parcela da personalidade ou como uma realidade sobre a qual poderiam recair direitos de personalidade: tal o grande mérito de Kohler(78), retomado por von Gierke e pela jurisprudência(79). A definitiva consagração, na doutrina(80), dos direitos de personalidade não foi suficiente para a consagração desta figura geral no BGB, ou Código Civil alemão de 1896. Levaria, contudo, à inserção do direito ao nome: o único direito de personalidade presente no BGB (§ 12(81)).
IV. O direito ao nome tende, a partir daí e nos diversos países(82), a ser considerado um direito de personalidade(83): um direito subjectivo absoluto e privado(84), com a protecção civil daí decorrente(85).
Ao longo do século XX, as regras sobre o nome estabilizaram se: isso ao ponto de a doutrina reclamar contra a escassez de estudos nesse domínio(86). De facto, o nome comercial ou firma, pelo interesse económico mais directo que suscita, tem provocado um maior interesse (87). A interdependência entre o nome comercial e o civil(88) propicia, aliás, elementos relevantes para o estudo deste último.
As modificações legislativas que se têm vindo a verificar resultam de sucessivas reformas no Direito da família(89).
15. Segue; b) Conteúdo e alcance
I. O direito ao nome tem um conteúdo que podemos analisar nos seguintes poderes ou pretensões:
— o poder de usar o nome completo;
— o poder de abreviar o nome;
— o poder de usar o nome abreviado;
— o poder de opor se a que outrem o use ilicitamente, para sua identificação ou outros fins;
— o poder de, perante nomes total ou parcialmente idênticos, requerer ao tribunal providências conciliatórias.
Trata se de matéria que podemos decompor do artigo 72.°, do Código Civil.
II. O nome ou nome civil serve a individualização das pessoas. Mas além dele, a sociedade reconhece fórmulas complementares de designação, que completam essa individualização. Pergunta se quais são e em que medida têm protecção do Direito.
Uma primeira figura semelhante ao nome consta do artigo 74.° do próprio Código Civil: o pseudónimo(90). Segundo esse preceito,
O pseudónimo, quando tenha notoriedade, goza da protecção conferida ao próprio nome.
“Pseudónimo” é, etimologicamente, um nome não exacto. Todavia, ele pode estar de tal modo ligado a uma pessoa, que passe a designá la, em termos sociais. O formalismo jurídico não pode ir tão longe que o ignore. O pseudónimo pode resultar de escolha do próprio ou de designação posta por terceiros, mas aceite pelo próprio; diz se, então, alcunha, protegida igualmente por via do artigo 74.°(91).
Uma protecção especial é dada, ainda, ao nome artístico, nos termos dos artigos 28.° e 29.° do CDA.
III. No campo comercial, a lei desenvolve o tema das figuras semelhantes ao nome e dotadas de um regime do mesmo tipo(92). O comerciante pode aditar, para efeitos de firma(93) e ao seu nome, uma alcunha ou expressão alusiva à actividade exercida. O comerciante pode ainda, nos termos do artigo 38.°/3 do mesmo RNPC, acima analisado, fazer anteceder o seu nome por expressões ou siglas correspondentes a títulos académicos, profissionais ou nobiliárquicos a que tenha direito: trata se de complementos do nome, que facilitam a identificação da pessoa(94). Como títulos académicos surgem os de licenciado, de mestre e de doutor(95); como profissionais avulta o de professor. Quanto aos títulos nobiliárquicos temos os de barão, visconde, conde, marquês e duque, aqui em estudo.
Não oferece dúvidas a protecção civil dos referidos títulos, no plano do nome e tal como sucede, de resto, com o pseudónimo, mero minus: ao contrário deles, o pseudónimo pode ser totalmente arbitrário(96). Exige se, porém, que sejam títulos legítimos — cf. o citado artigo 38.°/3 do RNPC(97), aplicável no campo civil e ar- tigo 72.° do Código Civil. A prova da legitimidade faz se, no tocante a títulos académicos, mediante certidões emitidas pelas universidades que os hajam atribuído; quanto a títulos profissionais, por certidão ou atestado produzido pela câmara, pela ordem profissional ou pela entidade a quem caibam as carteiras profissionais; quanto a títulos nobiliárquicos, por carta passada e autenticada pelo Instituto da Nobreza: embora de natureza privada, é a autoridade com mais conhecimento na matéria.
No tocante a títulos nobiliárquicos legítimos, a sua referência em actos oficiais é ainda reconhecida pelo artigo 40.°/2 e 3 do CRC: preceitos cuja revogação, em 2007, temos por inconstitucional.
IV As pessoas podem, ainda, individualizar se entre si e ser representadas por sinais distintivos diferentes do do nome ou designações equiparadas.
Na enumeração de Paulo Cunha temos ainda(98):
— sinais figurativos, como as insígnias e o anel de brasão(99);
— sinais verbais, como as divisas e os lemas;
— títulos honoríficos, como condecorações ou títulos académicos, científicos ou eclesiásticos que traduzam meras honras e não graus efectivos.
Seria, ainda, possível acrescentar monogramas e ex libris.
16. Segue; c) Os títulos como figura equiparada ao nome
I. O desenvolvimento anterior permite considerar os títulos nobiliárquicos como figuras equiparadas ao nome. De resto, é essa a inserção que lhe é dada pelos actuais tratadistas do Direito civil(100) e, em geral, pelos estudiosos da matéria(101). Basta ver que o Código Civil alarga a tutela do nome ao próprio pseudónimo (artigo 74.°): por maioria de razão a irá estender ao título nobiliárquico legítimo.
II. Daí resulta que o titular possa, por via do artigo 72.° do Código Civil:
— usar o próprio título nobiliárquico;
— opor se a que outrem o use ilicitamente.
Um aparente embaraço poderia advir do facto de os títulos nobiliárquicos não se transmitirem de acordo com as regras do direito ao nome mas, sim, segundo as regras anteriores a 5 Out. 1910 e, designadamente: por linha masculina preferencial e de acordo com a primogenitura. Todavia, como vimos, não é violentado o artigo 13.° da Constituição (princípio da igualdade): os títulos são meras designações históricas que não atribuem nem direitos nem privilégios. Paralelamente, a pessoa não titular não é, por isso, prejudicada em nada: nem na sua dignidade, nem no seu património.
III. Esta aproximação ao nome permite nos determinar a actual natureza jurídica dos títulos nobiliárquicos ou do direito a usá los. De acordo com a posição hoje pacífica, o direito ao nome é apresentado como um direito de personalidade.
Pois bem: o título nobiliárquico deve, tal como o nome, ser considerado um bem de personalidade. E o direito a ele relativo será um direito de personalidade, dotado do competente regime.
O direito ao título nobiliárquico submete se, assim e em primeira linha, ao regime dos direitos de personalidade, particularmente no tocante à defesa.
Para além disso, ele opera como um instituto autónomo, dotado de regras próprias, talhadas pela História, e envolvendo aspectos privados e públicos. A complexidade apontada não obsta a que, no cerne, surja um bem de personalidade, de tipo civil.
17. Terceiro fundamento: a defesa do património cultural
I. Nos termos do artigo 9.°, e), 1.ª parte, da Constituição, é tarefa fundamental do Estado, proteger e valorizar o património cultural do povo português. Em seu seguimento, o artigo 78.°/2, da mesma Constituição, dispõe:
Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais:
(…)
c) Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum;
(…)
II. Pois bem: os títulos nobiliárquicos legítimos não surgem como meros objectos de direitos, por parte dos beneficiários; eles representam um acervo histórico cultural que pertence, colectivamente, a todos os portugueses. O título é, hoje, uma simples distinção histórica, que recorda os feitos que estão na origem da sua atribuição. Para mais no actual momento histórico, cabe aos poderes públicos defender todos os bens que exprimam a identidade nacional, incluindo os bens imateriais.
A mais valia colectiva correspondente aos títulos nobiliárquicos é reconhecida e aproveitada pelas monarquias e pelas repúblicas da União Europeia.
Seria impensável que o Estado Português, assente numa Nação quase milenária, viesse agora, num completo contraciclo, malbaratar esse elemento cultural que lhe compete defender.
V—A INCONSTITUCIONALIDADE DA REVOGAÇÃO
18. Inconstitucionalidade orgânica
I. Chegados a este ponto, fácil se torna verificar a inconstitucionalidade da revogação, perpetrada pelo artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 324/2007, de 28 de Setembro, ao revogar os números 2 a 4 do artigo 40.° do Código do Registo Civil de 1995.
Na verdade, os títulos nobiliárquicos dão corpo à honra das famílias e dos seus membros e corporizam um elemento dos respectivos nomes. Têm a ver com a honra e a identidade pessoal dos cidadãos, integrando, além de um direito de personalidade, um direito fundamental. Integram se, deste modo, no acervo de valores tutelados pelo artigo 26.°/1, da Constituição.
II. Nos termos do artigo 165.°/1, b), da Constituição, o Governo só poderia legislar sobre essa matéria se tivesse obtido a competente autorização da Assembleia da República, o que não sucedeu.
Temos, pois, uma inconstitucionalidade orgânica, por via do artigo 277.°/1, da Constituição, com todas as legais consequências.
19. Inconstitucionalidade material
I. Portugal é uma velha Nação europeia. Embora, neste momento, seja uma República, o nosso País já conheceu outras formas de organização, as quais deixaram marcas históricas e culturais. Encontramo las na nossa linguagem, nos nossos monumentos, na nossa literatura e nos nossos sistemas de denominação das pessoas. Ninguém se lembraria, em nome de um republicanismo serôdio, vir hoje destruir monumentos ou outros acervos culturais, por serem anteriores à República. Tudo isso pertence ao nosso Povo.
II. Neste momento existem, na Europa do século XXI, regimes monárquicos e regimes republicanos. Pois bem: uns e outros tutelam os respectivos títulos nobiliárquicos e asseguram a sua persistência. É uma fonte de cultura, de identidade nacional e, até, de proventos patrimoniais para a comunidade. Os títulos não pertencem aos beneficiários: representam um acervo de todos.
Como tal, os títulos incluem se no artigo 78.°/2, c), da Constituição: fazem parte do património cultural do povo português, cabendo ao Estado promover a sua salvaguarda e a sua valorização.
III. A revogação de 2007, sem qualquer sentido de adequação, de proporcionalidade e de Estado, suprimiu a tutela pública mais directa sobre a matéria. Com isso, facilita o abusivismo e a desconsideração dos títulos, quando ao Estado cabia protegê los. Há uma clara inconstitucionalidade material.
20. Conclusão
I. A revogação dos números 2 a 4 do artigo 40.° do Código do Registo Civil surge como uma medida duplamente inconstitucional: em termos orgânicos, por ter tocado, sem autorização parlamentar, numa área que integra direitos fundamentais e em termos materiais, por desconsiderar a função do Estado na defesa do património cultural do Povo português.
II. Porventura mais grave: estamos perante uma medida repentista e quadrada, estranha à reforma (meritória) em que se insere e que esquece as subtilezas e a riqueza da realidade material em que se aventura. A facilidade com que se veio quebrar a tradição, quase secular, da República, sem assunções, sem projecto e, ao que consta, à revelia substancial dos próprios governantes, bem o demonstra.
III. Legislou se sem conhecer o Direito comparado, o Direito europeu e a natureza dos institutos atingidos, assim se perpetrando inconstitucionalidades: é pena. Agiu se sem sensibilidade à nossa cultura, postergando valores que cumpria defender: é triste.
Haja coragem para emendar a mão.
(*) O presente escrito aproveita parte de uma comunicação feita na Academia das Ciências de Lisboa, na sessão de 23 Out. 2008, sob a presidência do Prof. Doutor Adriano Moreira.
Notas:
(1) DR I Série, n.° 188, de 28 Set. 2007, 6911 6983.
(2) O Código de Registo Civil compreendia 305 artigos, na versão original.
(3) DR I Série A, n.° 131, de 6 Jun. 1995, 3602/II.
(4) DR I Série, n.° 188, de 28 Set. 2007, 6914/II.
(5) ENRICO GENTA, Titoli nobiliari (storia), ED XLIV (1992), 674 681 (674 e nota 1).
(6) Nobre, de nobilis, arcaico gnobilis, advém de nosco: o que se pode conhecer ou o que é fácil de conhecer.
(7) De áristokratia (de aristos, o melhor, mais kratia, governo, de krás, cabeça); em Aristóteles, o governo dos mais virtuosos: Política, 4, 7 (1293b). Na trad. castelhana de MANUELA GARCÍA VALDES (1988), 239.
(8) Isso sem prejuízo para fenómenos paralelos nas Antiguidades, nos Povos do Oriente e nas Civilizações pré colombianas.
(9) P. ex., entre nós, a recepção de títulos de inspiração inglesa, no início da II Dinastia, por influência de D. Filipa de Lencastre.
(10) Vide, em especial, ÉRIC CUSAS, Le statut de la noblesse en France et en Belgique, 2.ª ed. (2002), 65 ss. e ALAIN TEXIER, Qu’est ce que la noblesse? (1988), 94 ss..
(11) JEAN TUBARD, Napoléon et la noblesse de l’Empire (2003), 63 ss..
(12) ÉRIC CUSAS, Le statut de la noblesse, 2.ª ed. cit., 102 ss..
(13) Vide, quanto a esse importante preceito, ÉRIC CUSAS, Le statut de la noblesse, 2.ª ed. cit., 74 ss. e 116 ss..
(14) Sobre toda esta evolução, cf., com indicações, MARCEL PLANIOL, Traité Élémentaire de Droit Civil, 1.° vol., 3.ª ed. (1904), 157 (n.° 411), o Duque GIOVANNI MARESCA DI SERRACAPRIOLA, Nobiltà, NssDI XI (1965), 277 288 (284 ss.) e ÉRIC CUSAS, Le statut de la noblesse, 2.ª ed. cit., 124 ss..
(15) Cf. CImp Rennes 13-Jun.-1864, D 1865, 2, 137-138 (137) = S 1864, 2, 195.
(16) FERID/SONNENBERGER, Das Französische Zivilrecht I, 2.ª ed. (1994), 1 D 219 (345 346).
(17) Vide GILLES GOUBEAUX, no Traité de Droit civil, org. Jacques Ghestin, Les personnes (1989), n.° 148 (146 147); BERNARD TEYSSIÉ, Droit civil / Les personnes, 4.ª ed. (1999), n.° 130 (107) ; GÉRARD CORNU, Droit civil / Introduction; Les personnes, 9.ª ed. (1999), n.° 640 641 (275 276) ; HENRI e LÉON MAZEAUD/JEAN MAZEAUD/FRANÇOIS CHABAS, Leçons de Droit civil, I/2, Les personnes, 8.ª ed., por FLORENCE LAROCHE GISSEROT (1997), n.os 550 554 (114 116).
(18) Assim: CEt 25 Fev. 1983, D 1984, 161, anot. A. TÉXIER,
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O texto encontra-se disponível em:
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=84042&ida=84317
Cumprimentos
Carlos Sá
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Caro Carlos Sá
Obrigado pela referência a este texto, que já conhecia, cujo teor poderá conter alguma resposta à sua questão.
Cumprimentos
Jorge Afonso
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Sem dúvida, é um hábito que veio a prejudicar e eu concordo, do meu ponto de vista não tem sentido.
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