O "lendário" Ruy Lopes de Chaves existiu mesmo?
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O "lendário" Ruy Lopes de Chaves existiu mesmo?
Boa noite!
Durante as minhas pesquisas sobre a genealogia da cidade de Chaves (e áreas ao redor) deparei-me com estes irmãos Ruy e Garcia Lopes, que teriam sido os supostos cavaleiros que reconquistaram a vila de Chaves aos mouros a serviço de D. Affonso Henriques por volta de 1160. Após essa reconquista, teriam ganho o apelido Chaves, o qual os descendentes herdaram, originando assim esta família.
Consegui ligá-los à minha árvore genealógica, mas duvido da credibilidade das fontes, visto que as informações que encontrei são poucas e parecem ser todas copiadas duma origem comum.
Na versão em inglês da Wikipédia é mencionada uma reconquista da vila de Chaves em 1160, mas não aos mouros e sim ao Reino de Leão. Já na versão portuguesa, os irmãos são mencionados, ainda que sem muitos detalhes.
Na cidade de Chaves existe atualmente uma rua chamada Rua Irmãos Rui e Garcia Lopes. No entanto, não tomo isso como prova da existência deles, visto que pode ter sido uma lenda.
Encontrei muitos conflitos no que toca a datas e algumas relações de parentesco na genealogia dos descendentes desses dois. E parece que cada genealogista muda ligeiramente a história, sendo que todos se baseiam na mesma fonte, que parece ser um nobiliário das famílias do distrito de Vila Real, no qual Ruy Lopes é mencionado, junto com os seus descendentes, quando se fala da origem da família Leite.
Nunca vi informação sobre descendentes de Garcia Lopes (todos seriam de Ruy). Quanto aos pais desses irmãos, nada é dito em lugar algum.
Esta linhagem da família Chaves parece interligar-se com os nobres Leite. Consegui conectá-los a um Martinho Teixeira, conhecido como "o velho", que parece receber o nome Teixeira do nada, mas que se manteve durante várias gerações.
Um tal de Gaspar de Queiroga Teixeira teria tido uma relação extraconjugal com uma escrava negra trazida do Brasil (e com alegadas origens na Etiópia), acabando com a "nobreza" da família. O filho dessa relação e o posterior neto parecem ter sido escravos ou pessoas mais modestas.
A partir daí, há documentação suficiente para ligar esses Teixeiras à minha família atual.
A ponte entre os Teixeiras e os Chaves pareceu-me duvidosa, visto que o apelido Teixeira surge sem aparente causa.
Gostaria de saber se estes irmãos Ruy e Garcia Lopes foram reais e se temos evidências que o suportem, ou se não passaram duma lenda criada pelos flavienses.
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I. A.
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A história de Chaves remonta à Baixa Idade Média, quando o condado Portucalense se tornou autonomo do reino de Leão. No ano de 1129, a vila foi novamente ocupada pelos mouros. No ano de 1160, passou definitivamente para o reino de Portugal, sendo conquistada aos mouros pelos irmãos Rui e Garcia Lopes. Eles ofereceram sua vitória a D. Afonso Henriques, o qual lhes deu o governo da praça e o direito de usar o apelido de Chaves.
Os irmãos Rui e Garcia Lopes eram cavaleiros cristãos que conquistaram Chaves aos mouros em 11602. Após a vitória, ofereceram sua conquista a D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, que lhes concedeu o governo da praça e o direito de usar o apelido de Chaves.
A Avenida Irmãos Rui e Garcia Lopes em Chaves, foi uma homenagem a esses irmãos. Está localizada na freguesia de Santa Maria Maior, Concelho Chaves, distrito de Vila Real.
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Sc.
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O "lendário" Ruy Lopes de Chaves
Vejo que os irmãos foram mencionados na lenda como irmãos de D. Afonso I. Em todas as fontes que consultei, não é establecida essa relação, pertencendo estes a uma linhagem distinta.
Não encontrei prova alguma de que Afonso Henriques tivesse irmãos com esses nomes e, tratando-se dum nobre, seria de esperar que a sua família fosse conhecida.
Creio que a relação de parentesco dos irmãos com o rei, pelo menos, seja criada no âmbito da lenda em questão.
Já os irmãos em si costumam ser mencionados, assim como D. Afonso I, em histórias sérias ou das quais de espera uma certa credibilidade, o que me levou a pensar que estes podiam ter existido realmente.
Além do mais, como referi na publicação original, existe uma árvore genealógica, ainda que ligeiramente confusa, na qual se encontram diversos descendentes, o que, no meu modo de ver, seria ligeiramente exagerado para uma mera "lenda".
Deixo o link, que me esqueci de incluir na primeira publicação, do mencionado nobiliário que supostamente documenta esta linhagem.
https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:3Q9M-CS8L-PQXM-3
Direct link:
O "lendário" Ruy Lopes de Chaves
Boas!
Não vi relevância no artigo citado, dado que este fala sobre o Condado Portucalense e a época em questão é já contemporânea do Reino de Portugal.
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O "Lendário" Rui Lopes de Chaves
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..."Para quem pretende entender o lendário Rui Lopes de Chaves,
ou já sabe tudo sobre o Condado Portucalense e o tempo que se
seguiu até D. Afonso Henriques, ou então ainda é um iniciado na
história de Portugal."
Sc.
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O
Boa noite
Chaves ocupada por mouros?? em 1129 até 1160??
Parece incrível e dificil de acreditar!!! por onde é que eles entraram ??
Toda a zona já era cristã e até no sul, Lisboa já era!! como raio ficava uma ilha no meio de Trás-os-Montes!!
Desculpem-me mas não parece credível !!
Mais possível é nas lutas para definir o que ficava de cá e de lá da fronteira com Leão, onde os irmãos deverão ter tido influência.
Poderão eventualmente ser irmãos do D. Afonso Henriques (mas não têm Moniz no nome!!!), no entanto não faz muito sentido.
Cumprimentos
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O
Quanto a serem irmãos de D. Afonso Henriques, talvez não me tenha expressado bem na mensagem anterior (estava a tentar ser um pouco irónico).
Não faz qualquer sentido e parece tipico das lendas que chegaram até nós (ex. os nomes das terras que têm sempre a ver com alguma coisa que o D. Afonso Henriques tenha dito quando por lá passou (mesmo que ele nunca tenha lá estado), claro que sempre relativos a mouros, ou que qualquer castelo foi sempre habitado por uma princesa (ou princesa moura).
Cumprimentos
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O
Obrigado
Ora aí está.
Foi reconquistada por Leão no sec XI, ora 1160 é sec XII,
Cumprimentos
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Batalha de Guadalete
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https://pt.wikipedia.org/wiki/Rodrigo
https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Guadalete
Sc.
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Condado Portucalense autónomo reino de Leão
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...Então, de onde viriam os Mouros, para atacar Chaves?
Certamente da Raia de Espanha!
Ourense, Galiza, Oímbra etc.
https://maps.app.goo.gl/7VTUpq8nwc5bdNmU8
Sc.
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A Resistência Reino Astúrias
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https://pt.wikipedia.org/wiki/Invas%C3%A3o_mu%C3%A7ulmana_da_Pen%C3%ADnsula_Ib%C3%A9rica
Sc.
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Mouros em Chaves até 1160
Caro Saintclair
Todas as zonas de que falou já não viam mouros desde o século anterior.
Eu não sou um especialista, porém, não me parece fazer qualquer sentido os mouros estarem em Chaves em 1160, tal como já não estavam em Ourense, Galiza,etc, etc.
Em 1160 já estariam bem mais em baixo, como atestam todas as crónicas que falam do reinado do nosso primeiro rei, os combates com avanços e recuos no centro/sul do país.
As páginas que recomenda nada atestam ou refutam, aliás na página da wikipédia que fala de Chaves:
" no século XI, o rei Afonso III de Leão resgatou-a, e ordenou a sua reconstrução e povoação, assim como a edificação de novas muralhas"
Para mais à frente falar nos irmãos:
"Foi por volta de 1160 que Chaves integra o país, que já era Portugal, com a participação dos lendários Ruy Lopes e Garcia Lopes, tão intimamente ligados à história da terra".
Nesta ultima parte obviamente que se fala de Chaves passar a integrar Portugal em vez de integrar o Reino de Leão (e não, deixar de integrar qualquer território mouro, que já lá não estávam há muito tempo).
Cumprimentos
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Os Sarracenos
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Caro Confrade;
Repare;
O Algarve foi a última porção de território de Portugal a ser definitivamente conquistado aos mouros, no reinado de D. Afonso III, ano de 1249.
Granada, Espanha, foi o último reduto dos mouros, onde estes foram expulsos decididamente no ano de 1492.
É verdade que D. Afonso Henriques teve que enfrentar os mouros que faziam investidas de Santarém até Coimbra, e que para "recrutar gente" para a guerra, acabou por dar perdão a ladrões, assassinos, etc, com a
condição de se manterem na zona do Rabaçal, a 20 km a sul de Coimbra, etc.
Em relação a Espanha, é outra coisa; Na Fronteira Espanhola com Chaves, eram as constantes investidas que
os mouros faziam, estes mouros era outra gente, nada tinha a ver com os " Sarracenos " que continuavam em
território português, e que não "iam dormir a Espanha.
Se se der ao trabalho de interiorizar toda esta trama, vai ver que tudo se encaixa.
Cumprimentos
Sc.
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O
Caro Confrade Sinclair
Na época de que falamos, meados do sec XII, os mouros, ou sarracenos (que é a mesma coisa, só muda a terminologia) faziam várias investidas na zona até ao Mondego, como muito bem diz. O que fala do Algarve também concordo.
Quanto a Espanha ela não existia na altura, apenas alguns reinos com fronteira com nações muçulmanas (Al Andaluz): Castela, Aragão, Leão, o condado de Barcelona (na altura vassalo de França, julgo eu) e (sem ser o que é desde o sec XV Espanha) o nosso reino de Portugal.
Encontrei uns mapas que descrevem a reconquista na Peninsula e que foca o ano de 1150:
https://hgp-esgb.blogspot.com/2013/02/a-reconquista.html
No entanto a norte de Portugal, das Beiras ao Minho ou a Trás-os-Montes, nunca ouvi falar de moirama no tempo de D. Afonso Henriques, foi coisa que só ouvi neste tópico. E pela lógica é quase impossível de ter acontecido.
Não me formei em História, mas a enorme paixão que sempre nutri pelo História de Portugal, fez-me ler desde a minha infancia, várias obras de História escritas por (ou sob a coordenação) dos principais historiadores do Sec XX.
Nunca, mas nunca, me apercebi de que a nossa (nossa -Portugal- e não nossa -Reinos Cristãos-) reconquista ao árabes tivesse passado por Trás-os-Montes.
Por isso lhe peço que me indique em que obra de referencia de História (obviamente que não o Wikipédia) que refira que Chaves foi mouro no Sec XII.
Eu dar-me-ei ao trabalho de interiorizar se me der evidencias do que diz.
Perdõe-me se discordo de si e acredite que não é por teimosia, só que os poucos conhecimentos que tenho destes assuntos, que embora poucos estão bem cimentados, não mudam sem evidencias fortes.
Cumprimentos
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Os Sarracenos - Chaves, I .A.
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..."A cidade de Chaves foi invadida pelos Mouros no início do século VIII, quando os mouros oriundos do Norte de África invadiram a região e venceram Rodrigo, o último monarca visigodo 1. A invasão islâmica da Península Ibérica, também conhecida como invasão muçulmana, conquista árabe ou expansão muçulmana, ocorreu entre 711 e 713, quando tropas islâmicas oriundas do Norte da África, sob o comando do general berbere Tárique, cruzaram o estreito de Gibraltar e penetraram na península Ibérica, terminando o Reino Visigótico.
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A expulsão dos mouros de Portugal ocorreu em diferentes fases. O primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques (Afonso I), começou a expulsar os mouros no ano de 1139, quando assumiu o título de rei . Afonso I defendeu Portugal com sucesso contra os mouros (1095-1112) ."
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Os sarracenos eram uma das formas usadas pelos cristãos da Idade Média para designarem genericamente os árabes ou os muçulmanos. O termo sarracenos era aplicado especificamente aos árabes que dominaram a Península Ibérica. Durante a época das Cruzadas, o termo estendeu-se a todos os muçulmanos, particularmente aos que invadiram a Sicília, no sul da Itália, e a Península Ibérica. Na cronística antiga ocidental, o termo “Império Sarraceno” foi muitas vezes usado para referir-se ao primeiro califado árabe, governado pelas dinastias omíada e abássida.
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!As Astúrias foram a primeira região da Península Ibérica que se libertou do domínio dos mouros aquando da invasão por estes da Península Ibérica. A partir do pequeno território que Pelágio designou como Reino das Astúrias, os cristãos (hispano-godos e lusitano-suevos), acantonados nas serranias do norte e noroeste da Península, foram gradativamente formando novos reinos que se estenderam para o sul."
Sc.
Direct link:
Os Sarracenos
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https://youtu.be/3R5NSFcXFkQ?t=8
https://youtu.be/EZ8xHruBWuE?t=3
Sc.
Direct link:
CHAVES
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https://youtu.be/jUiRN_h3WPc?t=5
Origem portugueses:
https://youtu.be/i3Jf-03dpZA?t=8
Sc.
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Mouros em Chaves até 1160
Caro Saintclair
Obrigado por aquilo que enviou, juntamente com os dados que fomos verificando, podemos concluir:
Chaves foi conquistada definitivamente ao mouros (pelos cristãos) no século XI por D. Afonso III, rei de Leão.
Que em 1160 com ação dos cavaleiros Ruy e Garcia Lopes, Chaves passa definitivamente para o Reino de Portugal, entretanto criado, deixando de ser uma terra leonesa.
E Portugal desde que é Portugal (celebramos 1143, porém começa antes), começa a expulsar, com avanços e recuos os mouros naquilo que é hoje o território continental de Portugal.
Cumprimentos
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A grande caldeirada
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Caro Confrade João Reis;
Agradeço a sua disponibilidade, até a uma próxima
oportunidade.
https://youtu.be/6JhmjO6jWNo?t=253
Obrigado.
Cumprimentos
Sc.
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O
Caro Confrade Saintclair
Muito obrigado pelo que colocou, muito interessante.
Até à próxima.
Cumprimentos
João
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Batalha de Ourique
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https://sicnoticias.pt/pais/2022-05-09-vandalizado-mural-alusivo-a-mitica-batalha-de-ourique
https://maps.app.goo.gl/r6xBH2A72cyNcY9b7
Sc.
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Fernão Mendes Pinto
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"Quinta de S. Lourenço, património do Estado, no regime de comodato, em regime privado, onde funciona uma unidade terapêutica de recuperação.
Fernão Mendes Pinto nasceu por volta de 1510 no seio de uma família pobre em Montemor-o-Velho.
O I capitulo da Peregrinação narra a odisseia da pobreza dos primeiros anos , da saída de Montemor, e as peripécias vividas por Lisboa, e Setúbal, até embarcar para Diu .
Fatalmente a experiência em Portugal de iniciante viajante como que prenunciava a do viajante futuro de «muitos e grandes trabalhos e infortúnios».
Embora nada diga sobre a opção pelo Oriente -, em prol de África ou Brasil, sabe-se do lugar que o Oriente ocupava então no imaginário português, um lugar de atração para quem, como Fernão Mendes Pinto, queria «fugir» da Pátria madrasta, ou queria simplesmente sobreviver dignamente.
Andou por vários lugares orientais –, Índia, Malaca, Samatra, Java, China, Macau, Japão, etc.
Cumpriu diversas tarefas ou missões e passando por experiências muito diferenciadas (da prática de soldado e de pirata à de noviço ou irmão leigo da Companhia de Jesus, da extrema pobreza ao enriquecimento rápido) e às vezes muito difíceis ou ousadas, tendo sido «treze vezes cativo e dezassete vendido», regressando em Setembro de 1558 a Lisboa, que deixara 21 anos antes.
Quando Fernão Mendes Pinto regressou a Portugal, em 1558, depois de 21 anos por terras do Oriente, esperava recompensa mas durante quatro anos e meio a Coroa não despachara o seu pedido, por volta de 1562, decide ir viver para Almada «vila» de que chegou a ser juiz, e onde morreu com mais de 70 anos, em 8 de Julho de 1583.. Tornou-se proprietário de uma quinta no lugar de Palença, no Pragal, com casa de habitação, courelas de vinho e de semeadura de trigo, onde viveu com sua mulher Maria Correia de Brito, cerca de 30 anos mais nova (pois morreu em 1623) e de quem teve filhas. E terá sido nesta casa que começou a escrever a Peregrinação, embora haja quem defenda que foi na tranquilidade na Quinta de Vale do Rosal dos Jesuítas, na Charneca da Caparica. Certo é que a obra só viria a ser publicada 31 anos após a morte de seu autor, em 1614, em Lisboa, por Pedro Craesbeeck, a expensas de Belchior de Faria «Cavaleyro da casa del Rey nosso Senhor» que foi o mecenas da impressão.
Fernão Mendes Pinto já projetara a narrativa no Oriente, pois, numa carta redigida em 5/12/1654, diz aos seus «irmãos» da Companhia de Jesus que lhes dará «alguma relação» do «discurso» da sua vida e dos seus trabalhos. Supõe-se que o autor a começou em 1569, quando andaria perto dos 60 anos, e a terminou cerca de dez anos depois, tendo-a portanto escrito já longe dos tempos e dos espaços nela referenciados, e numa idade favorável à narração memorialista e autobiográfica, com as virtudes e os defeitos que tal narração como regra implica.
CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia.
Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas as me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que Passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Ìndia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus, léquios, chamam em suas geografias a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida. E tomando para princípio desta minha peregrinação o que passei neste Reino, digo que depois de ter vivido até à idade de dez ou doze anos na miséria e estreiteza da pobre casa de meu pai na vila de Montemor-o-Velho, um tio meu, parece que desejoso de me encaminhar para melhor fortuna, me trouxe para a cidade de Lisboa e me pôs ao serviço de uma senhora de geração assaz nobre e de parentes assaz ilustres, parecendo-lhe que pela valia tanto dela como deles poderia haver efeito o que ele pretendia para mim. Isto era no tempo em que na mesma cidade de Lisboa se quebraram os escudos pela morte de El-Rei D. Manuel, de gloriosa memória, que foi em dia de Santa Luzia, aos treze dias do mês de Dezembro do ano de 1521, de que eu estou bem lembrado, e de outra coisa mais antiga deste reino me não lembro. A intenção deste meu tio não teve o sucesso que ele imaginava, antes o teve muito diferente, porque havendo ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava ao serviço desta senhora, me sucedeu um caso que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude. E indo eu assim tão desatinado com o grande medo que levava, que não sabia por onde ia, como quem vira a morte diante dos olhos e a cada passo cuidava que a tinha comigo, fui ter ao cais da pedra onde achei uma caravela de Alfama que ia com cavalos e fato de um fidalgo para Setúbal, onde naquele tempo estava El-Rei D. João III, que santa glória haja com toda a corte, por causa da peste que então havia em muitos lugares do Reino: nesta caravela me embarquei eu, e ela partiu logo. Ao outro dia pela manhã, estando nós em frente de Sesimbra, nos atacou um corsário francês, o qual abalroando connosco, nos lançou dentro quinze ou vinte homens, os quais sem resistência ou reação dos nossos, se assenhorearam do navio, e depois de o terem despojado de tudo quanto acharam nele, que valia mais de seis mil cruzados, o meteram no fundo; e a dezassete que escapámos com vida, atados de pés e mãos, nos meteram no seu navio com a intenção de nos venderem em Larache, para onde se dizia que iam carregados de armas que para negociar levavam aos mouros. E, trazendo-nos com esta determinação mais treze dias, banqueteados cada hora de muitos açoites, quis a sua boa fortuna que ao cabo deles, ao pôr-do-sol, vissem um barco e seguindo-o aquela noite, guiados pela sua esteira, como velhos oficiais práticos naquela arte, a alcançaram antes de ser rendido o quarto da modorra, e dando-lhe três descargas de artilharia a abalroaram muito esforçadamente: e ainda que na defesa tivesse havido da parte dos nossos alguma resistência, isso não bastou para que os inimigos deixassem de entrar nela, com morte seis portugueses e dez ou doze escravos.
Era este navio uma formosa nau de um mercador de Vila do Conde, que se chamava Silvestre Godinho, que outros mercadores de Lisboa traziam fretada de S. Tomé, com grande carregamento de açúcares e escravaria, a qual os pobres roubados, que lamentavam sua desventura, calculavam que valesse quarenta mil cruzados. Logo que estes corsários se viram com presa tão rica, mudando o propósito que antes traziam, se fizeram a caminho de França e levaram consigo alguns dos nossos para serviço da mareação da nau que tinham tomado. E aos outros mandaram uma noite lançar na praia de Melides, nus e descalços e alguns com muitas chagas dos açoites que tinham levado, os quais desta maneira foram ao outro dia ter a Santiago de Cacém, no qual lugar todos foram muito bem providos do necessário pela gente da terra, e principalmente por uma senhora que aí estava, de nome D. Brites, filha do conde de Vilanova, mulher de Alonso Perez Pantoja, comendador e alcaide-mor da mesma vila.
Depois que os feridos e os doentes foram convalescidos, cada um se foi para onde lhe pareceu que teria o remédio mais certo da vida, e o pobre de mim com outros seis ou sete tão desamparados como eu, fomos ter a Setúbal, onde me caiu em sorte mão de mim um fidalgo do Mestre de Santiago, de nome Francisco de Faria, o qual servi quatro anos, em satisfação dos quais me deu ao mesmo Mestre de Santiago, como seu moço de câmara, a quem servi um ano e meio. Mas porque o que então era costume dar-se nas casas dos príncipes me não bastasse para minha sustentação, determinei embarcar-me para a Índia, ainda que com poucas ilusões, já disposto a toda a ventura, ou má ou boa, que me sucedesse."
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Fonte; Blog Coisas & Loisas.
Sc.
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L' heure présentée corrrespond au GMT. Heure actuelle: 14 nov. 2024, 22:30