Derrogação da nobreza

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Derrogação da nobreza

#105665 | SUÃO | 19 nov 2005 17:30

Caros amigos:

Porque já alguém há tempos afirmou aqui que a nobreza não se perdia com o exercício de funções mecânicas, desafiando os que afirmassem o contrário a demonstrá-lo com casos concretos, aqui deixo um expressivo exemplo quinhentista dessa situação.

João Casado Maciel, morador na vila de Viana Foz do Lima, filho de Francisco Casado Maciel, obteve em 11.01.1569 alvará de D. Sebastião para que a sua nobreza não se perdesse, vista a sua petição e "as causas que alega ey por bem e me praz que se elle tem liberdade e nobreza como na dita pitição dyz elle as não perca por causa de comprar vinhos e os mandar vender de maneira que na dita pitição decllara e ELLE NÃO USARA MAIS DISO PORQUE FAZENDO O CONTRARIO ESTA PROUYSÃO NÃO LHE VALLERA".

(IAN-TT, Chancelaria de D.Sebastião-Privilégios, liv 7, fl. 206)

Teria todo o interesse, julgo eu, em ir reunindo neste tópico casos concretos que expressassem da forma mais abrangente e representativa possível este fenómeno da derrogação de nobreza em Portugal: nas diferentes épocas, regiões e exercícios profissionais.

Cumprimentos

Miguel Côrte-Real

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RE: Derrogação da nobreza

#105795 | mivapi | 21 nov 2005 12:03 | In reply to: #105665

Caro Miguel,

O caso que trazes aqui, pelos termos em que está redigido o alvará, parece ser o que no direito francês se chamava "relief de derogeance" e que numa tradução podíamos chamar "relevo (de relevar) de derrogação".

Conheço dois casos de derrogação mencionados em bibliografia recente; vou localizá-los e depois dou-te notícias.

Um abraço,
Miguel

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RE: Derrogação da nobreza

#105879 | abivar | 22 nov 2005 14:08 | In reply to: #105665

Caro Miguel:

Tópico interessantíssimo! de memória lembro-me do caso de José Pereira Palha que, no processo para a Ordem de Cristo, tem problemas com o avô materno António Rodrigues, que era cerieiro; tentou alegar que recolher a cera das colmeias próprias e vendê-la era como exercer a lavoura em terras próprias, colhendo os respectivos frutos e vendendo, o que não excluiria da nobreza... de nada lhe valeu e precisou mesmo de dispensa real! Este caso, em bom rigor, não me parece que se possa considerar como exemplo de derrogação, uma vez que não há qualquer prova (havendo antes indícios em contrário) de que houvesse nobreza anterior do referido avô; em todo o caso parece-me interessante como exemplo das tentativas de excluir (neste caso sem êxito) determinadas actividades do âmbito das consideradas "mecânicas", e, em simultâneo, da situação aparentemente já consolidada da "lavoura de terras próprias" como actividade não derrogante.

Resta saber se os lavradores de terras próprias, para que não derrogassem, as podiam trabalhar com as próprias mãos ou se tinham de provar que as "faziam tratar por criados" sem participarem activamente nos trabalhos; nem sempre é claro o que se passava nos inúmeros exemplos de "costados lavradores" que se encontram em processos para a Ordem de Cristo, leitura de bacharéis, justificações de nobreza, etc.

Um abraço,

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RE: Derrogação da nobreza

#105881 | zamot | 22 nov 2005 14:23 | In reply to: #105665

"...dyz elle as não perca por causa de comprar vinhos e os mandar vender ..."

Será que os vinhos que ele vendia eram tão bons que SM não queria perder o fornecedor retirando-lhe nobreza?

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RE: Derrogação da nobreza

#105894 | Freire de Andrade | 22 nov 2005 18:11 | In reply to: #105879

Meu Caro Tó

Tal como bem referes, este é um interessante interessante tema, que me sugere uma curta intervenção para citar o insigne genealogista Dr. Eugénio de Andrea da Cunha Freitas,o qual, no prefácio da obra de Vaz Osório da Nóbrega, «Pedras de Armas do Concelho de Lousada», Porto, 1959, refere que:
«(…).Nobres eram os militares, os magistrados, os que exerciam qualquer cargo honrado, os que viviam limpamente, com certa abastança das suas lavouras, sem profissão mecânica. (...).» citado por Nuno Daupiás d’Alcochete, no seu artigo sob o título «PRINCIPALIDADE», publicado na revista “Armas e Troféus”, do Instituto Português de Heráldica, 2ª Série, Tomo 7, 1966, p. 34-52.
Um grande abraço

Luís

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RE: Derrogação da nobreza

#105903 | SUÃO | 22 nov 2005 20:02 | In reply to: #105879

Caros Miguel e Tó (não levem a mal responder em conjunto, mas..."de uma cajadada se matam dois coelhos"):

Miguel: concordo contigo, parece ser a mesma situação. Relevar da derrogação sob condição de ele não mais exercer o trato. O rei, e só ele, na qualidade de sobreano/chefe de estado, como fonte exclusiva de nobilitação, de confirmação de nobreza ou de relevação de derrogação da mesma.

Um grande abraço

Miguel

Tó: este teu exemplo é delicioso e muito curioso. A minha ideia era exactamente suscitar casos reais como o que fazes o favor de nos dar a conhecer. Situações várias vividas quotidianamente pelas nossos antepassados, de múltiplos e facetados contornos, ricas, por complexas e dinâmicas, como toda e qualquer realidade social. Realidades que com o correr do tempo e com as correspondentes mudanças nos costumes e práticas sociais, se nos apresentam desfocadas, desconcertantes até muitas delas face à nossa total incompreensão e ignorância. Respondemos e interpretamo-las como sabemos, com as ferramentas que dispomos ou não dispomos. Daí que sejamos useiros e vezeiros em apreciá-las segundo os nossos modelos e parâmetros conceptuais, sempre tão falíveis .... tentando encaixar o Rossio na Betesga, reduzindo e transfigurando o passado e com ele a nossa memória individual e colectiva.

Vamos tentar então reunir o máximo de casos deste tipo, fazendo um esforço por não desperdiçar quaisquer pequenos grandes pormenores que possam ajudar a compreender melhor, e recuperar, as motivações sociais, estatutárias, legais, etc, envolvidas. Nunca esquecendo as coordenadas históricas básicas: espaço, tempo e protagonistas envolvidos.

Finalmente, e uma vez mais, concordo plenamente contigo. Nem sempre é fácil descortinar a verdade quando pelas entrelinhas sabemos que há desfazamentos entre a realidade vivida e a proclamada pelos interessados. A resolução passará sempre por uma mais profunda investigação de fontes de diferentes naturezas, por isso complementares, e respeitantes a diferentes momentos cronológicos.

Agora quanto à actividade da lavoura, só não era considerada mecânica aquela que resultava da exploração de terras próprias (que não era obrigatoriamente propriedade plena; podia ter-se apenas a posse da terra, i.e., o domínio útil ) por "moços e criados seus". Se se quiser, qualquer coisa parecida com o actual "empresário agrícola", embora deteste a expressão. A fronteira era essa mesma: lavoura feita por mãos próprias (daí a humilhação, o ser-se mesteiral, mecânico) ou alheias (a mandado do lavrador, honrado por isso mesmo).

A mesmíssima preocupação presidirá à distinção que em Portugal, salvo erro, da 1ª metade do séc. XVII, se fez do estatuto do pintor: não mecânico se artista, ou seja criador, aquele que concebia a obra de arte, ou mesteiral, se mero executante de obra concebida por outrém, resultando em exercício mecânico derrogante de nobreza do seu executante, se a tivesse.

Um grande abraço

Miguel

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RE: Derrogação da nobreza

#105939 | JCC | 23 nov 2005 11:38 | In reply to: #105903

Miguel

Respondeste à questão que eu ia colocar: Seria preciso a posse plena ou bastava o dominio util?

Ou seja o lavrador, a quem um convento, por exemplo, havia emprazado uma propriedade, em que situação ficaria? Ou seria apenas nos casos de aforamento? Partindo do princípio que se mantinham as outras condições, claro.

Devo dizer-te que etsa situação é, para mim, bastante confusa, pelo que todos os comentários são bem vindos.

Um abraço

João Cordovil Cardoso

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RE: Derrogação da nobreza

#105949 | SUÃO | 23 nov 2005 15:06 | In reply to: #105939

Caro João:

Como sabes melhor do que eu contavam-se pela mão, e isto no Alentejo, os casos de fidalgos e nobres cujo património fundiário integrasse apenas e exclusivamente herdades ou quintas em plena propriedade. Uma parte desse património, maior ou menor, era normalmente constiuída por propriedades arrendadas, aforadas ou aprazadas a senhorios (normalmente conventos, colegiadas, ordens militares, fidalgos, etc). Lembro-me por exº de ter visto no inventário dos bens dos Cordovis de Évora, que bens conheces, herdades e quintas umas na família de plena propriedade e outras arrendadas ou emprazadas a conventos, a titulares ou outros fidalgos.

Para algumas regiões do país muitos dos vínculos e morgados da nobreza eram na sua maioria constituídos mesmo por bens cujos administradores detinham apenas a enfiteuse, que é o mesmo que o domínio útil.

No Alentejo, como sabes melhor do que eu, muitos fidalgos e nobres qualificados traziam à renda herdades de grandes senhores, a par de outras de que eram plenos proprietários.

Isso nada tem a ver com a questão da derrogação do estatuto nobiliárquico. Traziam-nas à renda com vista à sua exploração económica e de acordo, necessariamente, com a sua qualidade. Se os seus detentores eram nobres fabricavam-nas através dos seus criados e moços de lavoura; se eram peões amanhavam-nas por si próprios e familiares.

Não raro, os desta última qualidade, por mais ambiciosos e poderosos, graças a uma vida mais afortunada, muitas vezes passavam a explorá-las e a viver como nobres (à lei da nobreza) dando assim início ao processo de ascensão familiar característico dos lavradores mais honrados, de grossa lavoura, que muitas vezes culminava em verdadeira nobilitação.

Um grande abraço,

Miguel

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RE: Derrogação da nobreza

#105950 | SUÃO | 23 nov 2005 15:26 | In reply to: #105949

Caro João:

Apraz-me corrigir a calinada do "aprazadas" por "emprazadas"

As minhas desculpas
MC

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RE: Derrogação da nobreza

#105955 | abivar | 23 nov 2005 17:38 | In reply to: #105894

Meu Caro Luís:

Esse artigo do Nuno Alcochete continua a ser de facto uma obra de referência para estas questões. Há que continuar pacientemente a recolher exemplos para uma compreeensão crescente do tecido social do antigo regime.

Um grande abraço,

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RE: Derrogação da nobreza

#105957 | abivar | 23 nov 2005 18:41 | In reply to: #105903

Caro Miguel:

Também me parece óbvia a distinção entre os que trabalhavam a terra por suas próprias mãos e os que as mandavam tratar por criados; além disso a consciência dessa distinção devia ser bastante aguda, pelo que se vê por diversos testemunhos dos processos de inquirição e outros documentos. Tenho uma carta de 1777 dirigida por um tio e padrinho a seu sobrinho e afilhado, futuro cavaleiro da Ordem de Cristo (1779), em que informa o sobrinho dos nomes dos avós (que ele aparentemente desconhecia) e declara que eram lavradores que "sempre se trataram e sustentaram das suas fazendas que mandavam cultivar por criados"; é curioso como numa carta privada e familiar utiliza uma expressão que se encontra quase ipsis verbis em inúmeros processos de habilitação, nomeadamente no que precedeu a concessão desse hábito. Esta carta é curiosa também por outros motivos, mas que saem fora do âmbito deste tópico (trata pormenorizadamente da "política matrimonial" relativa a duas sobrinhas, irmãs do afilhado a quem se dirige a carta).

Estou-me a lembrar agora de outro exemplo de diferentes tipo de lavradores; num processo de FSO (João Mendes de Faria Barbosa e Fagundes, ANTT, HSO, João, M 58, Dil 1111, 19/12/1727) uma testemunha declara que um avô da mulher do habilitando "vivia limpa e abastadamente de suas fazendas e gados que tinha", mas o inquiridor concluiu que a testemunha o confundira com um homónimo, já que as restantes tinham declarado que "vivia de sua agência trabalhando no campo" ou "foi homem do campo e vivia de sua agência". Não estava em causa provar a nobreza dos ascendentes, mas o modo de vida acabava por ser um factor identificativo importante para valiadar os testemunhos quanto à limpeza de sangue deste ascendente e fica patente a diferença de estatuto inerente às expressões empregues.

Grande abraço,

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RE: Derrogação da nobreza

#105958 | abivar | 23 nov 2005 18:43 | In reply to: #105903

"validar" e não "valiadar"...

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RE: Derrogação da nobreza

#105990 | mivapi | 23 nov 2005 23:54 | In reply to: #105949

Caro Miguel,

Desculpa fugir do tópico mas fizeste uma afirmação que me causou o maior espanto:"Para algumas regiões do país muitos dos vínculos e morgados eram na sua maioria constituídos mesmo por bens cujos admnistradores detinham apenas a enfiteuse".
É que era expressamente proibido constituir morgados sobre bens sobre os quais o instituidor não detinha a propriedade plena pelo que muito me surpreende a tua afirmação.
Conheço mesmo um caso em que um morgado foi dissolvido quando foi descoberto que o instituidor era foreiro e portanto o bem não era livre. Se conheces um caso concreto de um morgado constituído por bens enfiteuticos peço-te o favor de mo indicares.

Um abraço,
Miguel VP

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RE: Derrogação da nobreza

#106021 | SUÃO | 24 nov 2005 09:15 | In reply to: #105990

Caro Miguel:

Não sei onde foste buscar essa ideia. Eu não conheço legislação a proibir a vinculação de bens que não fossem de domínio pleno. Mas também não andei à procura. O que te posso garantir é da existência de inúmeros casos de vínculos e morgados constituídos por bens sobre os quais o instituidor/administradores detinham apenas a enfiteuse (emprazados e aforados). Como tinha isso por normal não andei a registá-los. Mas dou-te já um exemplo de propriedades aforadas e vinculadas. Constam da própria relação dos bens vinculados do morgado Silva Freire, instituído na 1ª metade de Setecentos na zona de Santarém/Pernes, e JULGADO POR FIRME POR SENTENÇA DE 26.08.1745:

1- "as cazas em que vive [o testador] foreiras a Lopo Tavares".
2-"huma vinha em Vallada adonde chamão os Passarinhos foreira ao Hospital de Sam Lazaro"
3-huma vinha e terra em Alvisquer da parte do Rocio foreira as Capellas de El Rey Dom Afonço"
4- "humas cazas na Praça da Ribeira foreiras ao Infantado"
5-"humas cazas no Beco das Atafonas foreiras a Sam Lazaro com obrigassão de seiscentos reis que já tem ao Convento do Citio"

Dada a relação das 22 propriedades, o instituidor remata:

"Cujas propriedades asima dittas tanto de prazo como livres como os dittos e foros havia tudo por Vincullado em Morgado com obrigação de tres missas pella sua Alma" (podes confirmar no artigo que publiquei nas Armas e Troféus 2000/2001, pp. 319-321)

Asseguro-te que muitos mais casos me passaram pelas mãos, por exemplo, no Desembargo do Paço, em processos que têm a ver com a Lei Novíssima de D. José I, que permitiu aos administradores extinguirem os vínculos de rendimento insignificante, e onde constam as verbas das instituições vinculares e os bens que os compunham.

Com um abraço,

Miguel

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RE: Derrogação da nobreza

#106023 | SUÃO | 24 nov 2005 09:20 | In reply to: #106021

Corriga-se: "Cujas propriedades asima dittas tanto de prazo como livres como os dittos e foros" por "Cujas propriedades asima dittas tanto de prazo infatiota como livres como os dittos dinheiros e foros"

MIguel Côrte-Real

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RE: Derrogação da nobreza

#106039 | mivapi | 24 nov 2005 11:52 | In reply to: #106021

Caro Miguel,

Obrigado pela tua resposta que me convence completamente no que se refere à prática corrente.
Quanto à legislação vou averiguar. Sei onde vi o exemplo da dissolução do morgado mas lamentávelmente não tenho o livro comigo.
Um abraço. Depois falamos.
Miguel

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