A corte portuguesa nos tropicos 1808
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A corte portuguesa nos tropicos 1808
No verão de 1808, 200 anos atrás, um espetáculo inédito desenrolou-se
sob os olhos incrédulos dos moradores do Rio de Janeiro. No começo da
tarde de 7 de março, a esquadra do príncipe regente D. João e a
família real portuguesa entrou na baía de Guanabara, fugindo das
tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte. Havia Sol e o céu
estava azul. Um vento forte soprava do oceano para aliviar o calor
sufocante. Depois de três meses e uma semana de viagem, contando uma
escala de cinco semanas em Salvador, centenas de nobres e ilustres
passageiros se comprimiam na amurada dos navios para contemplar o
soberbo espetáculo que se desdobrava diante de seus olhos: uma
cidadezinha de casas brancas, alinhadas rente à praia, debruçada às
margens de uma baía de águas calmas emoldurada por altíssimas
montanhas de granito cobertas pela floresta luxuriante, de tonalidade
verde-escura.
A travessia do atlântico havia sido uma aventura repleta de aflições
e sofrimentos. Antigas e mal equipadas, as naus e fragatas
portuguesas viajaram apinhadas de gente. O excesso de passageiros e a
falta de saneamento favoreceram a proliferação de pragas. No navio
Alfonso de Albuquerque, em que viajava a princesa Carlota Joaquina,
mulher do príncipe regente, uma infestação de piolhos obrigou as
senhoras nobres a raspar o cabelo e a lançar suas perucas ao mar. As
cabeças carecas foram untadas com banha de porco e pulverizadas com
pó anti-séptico. Isso resultou num dos episódios mais pitorescos da
história da corte no Brasil. Para proteger a cabeça careca, ao
desembarcar no Rio de Janeiro, Carlota, as filhas e outras damas da
corte usavam turbante. Ao ver as princesas assim cobertas, as
mulheres do Rio de Janeiro acharam que aquela seria a última moda na
Europa. Dentro de pouco tempo, quase todas elas passaram a cortar o
cabelo e a usar turbante para imitar as nobres portuguesas.
Começava ali o mais notável período de transformações no Rio de
Janeiro. A chegada da corte foi o encontro de dois mundos até então
estranhos e distantes. De um lado, uma monarquia européia, envergando
casacas de veludo, sapatos afivelados, meias de seda, perucas e
galardões, roupas pesadas e escuras demais sob o Sol escaldante dos
trópicos. De outro, uma cidade colonial e quase africana, com dois
terços da população formada por negros, mestiços e mulatos, repleta
de traficantes de escravo, tropeiros, negociantes de ouro e
diamantes, marinheiros e mercadores das Índias. "Igrejas, mosteiros,
fortes e casas de campo, faiscantes de brancura, coroam cada colina e
enfeitam as fraldas das suas alturas simétricas e caprichosas,
enquanto que, fazendo fundo, uma cortina de mata a tudo ensombra",
anotou o comerciante inglês John Luccock ao chegar ao Rio de Janeiro
em junho de 1808.
Na verdade, o brasil não existia 200 anos atrás. Pelo menos, não como
é hoje: um país integrado, de fronteiras bem definidas e habitantes
que se identificam como brasileiros. O Brasil era apenas uma grande
fazenda extrativista de Portugal, sem nenhuma noção de identidade
nacional. As diferentes províncias eram mais ou menos autônomas, sem
comércio ou qualquer outra forma de relacionamento, e tinham como
ponto de referência apenas o governo português, sediado em Lisboa, do
outro lado do Atlântico.
Nem mesmo a expressão "brasileiro" era reconhecida como sendo a
designação das pessoas que nasciam no Brasil. Panfletos e artigos
publicados no começo do século 19 discutiam se a denominação correta
seria brasileiro, brasiliense ou brasiliano. O jornalista Hipólito
José da Costa, dono do jornal Correio Braziliense, publicado em
Londres, achava que as pessoas naturais do Brasil deveriam se chamar
de brasilienses. Para ele, brasileiro seria o português ou o
estrangeiro que aqui se estabelecera. Brasiliano, o indígena.
Tudo isso mudaria com a vinda da corte. Coube a D. João e seu
ministério criar uma nação a partir do nada. As novidades começaram a
aparecer num ritmo alucinante e teriam grande impacto no futuro do
país. Na escala em Salvador, em janeiro, a decisão mais importante
foi a abertura dos portos. Na chegada ao Rio de Janeiro, a concessão
de liberdade de comércio e indústria manufatureira no Brasil. A
medida, anunciada em 1o de abril de 1808, revogava um alvará de 1785,
que proibia a fabricação de qualquer produto na colônia. Combinada
com a abertura dos portos, representava na prática o fim do sistema
colonial. O Brasil libertava-se de três séculos de monopólio
português e integrava-se ao sistema internacional de produção e
comércio.
A cidade que acolheu a família real portuguesa era uma esquina do
mundo, na qual praticamente todos os navios que partiam da Europa e
dos Estados Unidos paravam antes de seguir para a Ásia, a África e as
terras recém-descobertas do Pacífico Sul. Uma viagem da Inglaterra ao
Rio de Janeiro durava entre 55 e 80 dias. Do Rio até a Cidade do
Cabo, na África do Sul, eram mais 30 a 50 dias. Até a Índia, de 105 a
150 dias. Para a China, de 120 a 180 dias. Até a Austrália, de 70 a
90 dias. Protegidas do vento e das tempestades pelas montanhas, as
águas calmas da baía de Guanabara serviam como abrigo ideal para
reparo das embarcações e reabastecimento de água potável, charque,
açúcar, cachaça, tabaco e lenha. "Nenhum porto colonial do mundo está
tão bem localizado para o comércio geral quanto o do Rio de Janeiro",
ponderou o viajante John Mawe. Era também o maior mercado de escravos
das Américas. Seu porto vivia congestionado de navios negreiros que
atravessavam o Atlântico, vindos da África. Segundo cálculos do
historiador Manolo Garcia Florentino, nada menos que 850 mil escravos
tinham passado pelo porto do Rio no século 18, o que representava
metade de todos os negros cativos trazidos ao Brasil nesse período.
Segundo o inglês Luccock, a cidade teria naquela época 4 mil
residências, com 15 moradores, em média, cada uma. O detalhista
Luccock dividiu a população da seguinte forma:
- 16 mil estrangeiros
- mil pessoas ligadas à corte de D. João
- mil funcionários públicos
- mil que residiam na cidade mas tiravam seu sustento das terras
vizinhas ou dos navios
- 700 padres
- 500 advogados
- 200 profissionais que praticavam a medicina
- 40 negociantes regulares
- 2 mil retalhistas
- 4 mil caixeiros, aprendizes e criados de lojas
- 1 250 mecânicos
- 100 taberneiros, "chamados de vendeiros"
- 300 pescadores
- mil soldados de linha
- mil marinheiros do porto
- mil negros forros (libertos)
- 12 mil escravos
- 4 mil mulheres chefes de família.
A população se completava com cerca de 29 mil crianças, quase a
metade do total
Observada do mar enquanto os navios se aproximavam do porto, era um
vilarejo tranqüilo, perfeitamente integrado ao esplendor da natureza
que o cercava. De perto, a impressão logo mudava. Os problemas eram a
umidade, a sujeira e a falta de bons modos dos moradores. "A limpeza
da cidade estava toda confiada aos urubus", escreveu o historiador
Oliveira Lima. Alexander Caldcleugh, um estrangeiro que viajou pelo
Brasil entre 1819 e 1821, ficou impressionado com o número de ratos
que infestavam a cidade. "Muitas das melhores casas estão de tal
forma repletas deles que durante um jantar não é incomum vê-los
passeando pela sala", afirmou.
Sob o calor úmido dos trópicos, imperavam a preguiça e a falta de
elegância no modo de vestir-se e comportar-se. Emanuel Pohl,
naturalista que em 1817 acompanhou ao Brasil a princesa Leopoldina,
recém-casada com o futuro imperador Pedro I, observou que os homens
viviam de chinelo, calça leve e jaqueta de chita. As mulheres,
envoltas em rosários de onde pendiam santinhos, passavam a maior
parte do dia com camisa simples e saia curta. "Em ditoso far niente,
costumam sentar-se numa esteira junto às janelas, de pernas cruzadas,
o dia inteiro", anotou Pohl.
Convidado para um jantar na casa de uma família rica, o inglês
Luccock surpreendeu-se ao descobrir que cada pessoa deveria
comparecer com a própria faca, "em geral larga, pontiaguda e com cabo
de prata". À mesa, observou que "os dedos são usados com tanta
freqüência quanto o próprio garfo". Mais que isso, era comum uma
pessoa provar, com as mãos, do prato de outro conviva. "Considera-se
como prova incontestável de amizade alguém servir-se do prato de seu
vizinho; e, assim, não é raro que os dedos de ambos se vejam
simultaneamente mergulhados num só prato", anotou. A carne fresca era
uma raridade. Vinha de longe, de até mil quilômetros de distância.
Viajando por estradas precárias, em boiadas que desciam de Minas
Gerais ou do vale do Paraíba, muitos bois morriam pelo caminho, de
fome ou de cansaço. Situado perto do centro do Rio, o matadouro era
local "da máxima sujeira", segundo Luccock. A carne de porco era
vendida, igualmente, "em estado bastante doentio". Por essa razão,
consumia-se principalmente carne-seca, que chegava de muito longe,
depois de tratada com sal e curada ao Sol.
Em 1803, o oficial da Marinha britânica James Tuckey deixou um
registro curioso sobre as mulheres cariocas: "Seus olhos, levemente
puxados, negros, grandes, plenos e brilhantes dão um certo grau de
vivacidade à sua tez morena e conferem alguma expressão à sua
fisionomia. Trata-se, na maior parte das vezes, da manifestação de
uma vivacidade animal, temperada com o toque leve e singelo da
sensibilidade". Tuckey, porém, fazia uma ressalva: "As mulheres
brasileiras têm, entre outros, o péssimo hábito de escarrar em
público, não importando a hora, a situação ou o lugar. Tal hábito […]
forma um poderoso obstáculo ao império do charme feminino".
A saúde era absurdamente precária. "As operações mais fáceis
costumavam ser praticadas pelos barbeiros sangradores", conta o
historiador Oliveira Lima, baseando-se nos relatos do inglês Luccock.
Em 1798, dez anos antes da chegada da corte, a Câmara do Rio de
Janeiro havia proposto a um grupo de médicos um programa para
combater e erradicar as moléstias da cidade. O plano incluía um
levantamento dessas doenças. A relação, feita pelo médico Bernardino
Antônio Gomes, é espantosa: "Tenho por moléstias endêmicas desta
cidade sarna, erisipelas, empigens, boubas, morphéa, elefantíase,
formigueiro, bicho dos pés, edemas de pernas, hidrocele, sarcocele,
lombrigas, ernias, leuchorréa, dysmnorréa, hemorróidas, dispepsia,
vários efeitos convulsivos, hepatites e diferentes sortes de febres
intermitentes". O pesquisador carioca Nireu Cavalcanti encontrou no
Arquivo Nacional documentos que ilustram como eram a saúde e a
medicina no Rio na época de D. João VI. São inventários post mortem
de dois médicos que relacionam os bens deixados pelos falecidos. Um
deles, do cirurgião-mor Antônio José Pinto, morto em 1798, inclui uma
assustadora relação de "instrumentos cirúrgicos": um serrote grande,
um serrote pequeno, uma chave de dentes, duas facas retas, duas
tenazes, uma unha de águia, dois torniquetes, uma chave inglesa e uma
tesoura grande.
Devido à pouca profundidade do lençol freático, a construção de
fossas sanitárias era proibida. A urina e as fezes dos moradores,
recolhidas durante a noite, eram transportadas de manhã para serem
despejadas no mar por escravos, que carregavam grandes tonéis de
esgoto nas costas. No percurso, parte do conteúdo, repleto de amônia
e uréia, caía sobre a pele e, com o tempo, deixava listras brancas
sobre suas costas. Por isso, esses escravos eram conhecidos
como "tigres".
Outro aspecto que despertava a curiosidade dos visitantes era o
número de negros, mulatos e mestiços nas ruas. Os escravos faziam
todo tipo de trabalho manual. Entre outras atividades, eram
barbeiros, sapateiros, moleques de recado, fazedores de cestas e
vendedores de capim, refrescos, doces, pão-de-ló, angu e café. Também
carregavam gente e mercadorias. Pela manhã, centenas deles iam buscar
água no chafariz do aqueduto da Carioca, que era transportada em
barris semelhantes aos usados para levar os excrementos até as praias
no fim da tarde.
O príncipe regente iria morar num palácio amplo e agradável, situado
no atual bairro de São Cristóvão, perto de onde ficam hoje o morro da
Mangueira e o estádio do Maracanã. O palácio foi presente de um
grande traficante de escravos da época ao príncipe. Sua mulher, a
princesa Carlota Joaquina, de quem vivia separado, preferiu ficar
numa chácara na praia de Botafogo. Mais complicado foi encontrar
habitação para os milhares de acompanhantes da corte, recém-chegados
à cidade que ainda era relativamente pequena. Por ordem do conde dos
Arcos, criou-se o famigerado sistema de "aposentadorias" pelo qual as
casas eram requisitadas para uso da nobreza. Os endereços escolhidos
eram marcados na porta com as letras PR, iniciais de Príncipe
Regente, que imediatamente a população começou a interpretar
como "Ponha-se na Rua".
Com a chegada da família real, uma bomba populacional abalou a
cidade. Entre 1808 e 1821, a área urbana triplicou com a criação de
novos bairros e freguesias. A população dobrou e o número de escravos
triplicou, de 12 mil para 36 182. O tráfego de animais e carruagens
ficou tão intenso que foi preciso criar leis para discipliná-lo. A
rua Direita tornou-se, a partir de 1824, a primeira a ter numeração e
trânsito organizado pelo sistema de mão e contramão. Pode-se imaginar
o que foi isso numa cidade que já em 1808 não tinha espaço, infra-
estrutura nem serviços para receber os moradores que chegavam de
Lisboa.
A criminalidade atingiu índices altíssimos. Roubos e assassinatos
aconteciam a todo momento. No porto, navios eram alvos de pirataria.
Gangues percorriam as ruas atacando as pessoas a golpes de faca e
estilete. Oficialmente proibidos, a prostituição e o jogo eram
praticados à luz do dia. "Nesta cidade e seus subúrbios, temos sido
muito insultados pelos ladrões", relata o arquivista real Luiz
Joaquim dos Santos Marrocos numa das cartas ao pai, que ficara em
Lisboa.
A maioria da população andava armada. O cônsul inglês James Henderson
surpreendeu-se com o número de pessoas que portavam facas escondidas
nas mangas dos capotes, "as quais usam com grande destreza". Pouca
gente se arriscava a sair sozinha à rua depois do anoitecer. Pedradas
eram um tipo de agressão comum - o equivalente às balas perdidas de
hoje. Em outubro de 1817, a mulher do embaixador americano Thomas
Sumpter foi atingida por uma pedra no olho enquanto estava dentro de
sua carruagem na rua do Ouvidor. Num outro caso, durante um concerto
no teatro São João, uma pedra atingiu o ator Manuel Alves, pondo fim
ao espetáculo.
A tarefa de colocar alguma ordem no caos foi confiada por D. João ao
advogado Paulo Fernandes Viana. Desembargador e ouvidor da corte,
nascido no Rio de Janeiro e formado pela Universidade de Coimbra,
Viana foi nomeado intendente-geral da polícia pelo alvará de 10 de
maio de 1808, cargo que ocupou até 1821, o ano de sua morte. Era "um
agente civilizador" dos costumes no Rio de Janeiro. Cabia a ele
transformar a vila colonial, provinciana, inculta, suja e perigosa em
algo mais parecido com uma capital européia, digna de sediar a
monarquia portuguesa. Sua missão incluía aterrar pântanos, organizar
o abastecimento de água e comida e a coleta de lixo e esgoto, calçar
e iluminar as ruas usando lampiões a óleo de baleia, construir
estradas, pontes, aquedutos, fontes, passeios e praças. Ficou também
sob sua responsabilidade policiar as ruas, expedir passaportes,
vigiar estrangeiros, fiscalizar as condições sanitárias dos depósitos
de escravos e providenciar moradia para os habitantes que a cidade
recebeu com a chegada da corte.
Os agentes da polícia de Viana eram implacáveis e truculentos. O mais
famoso deles foi o major Miguel Nunes Vidigal. Era o equivalente, 200
anos atrás, ao Capitão Nascimento do filme Tropa de Elite. Comandante
da nova Guarda Real, Vidigal tornou-se o terror da malandragem
carioca. Ficava à espreita nas esquinas ou aparecia de repente nas
rodas de capoeira ou nos batuques em que os escravos se
confraternizavam bebendo cachaça até tarde da noite. Sem se importar
com qualquer procedimento legal, mandava que seus soldados prendessem
e espancassem todo o participante desse tipo de atividade - fosse um
delinqüente ou apenas um cidadão comum que estivesse se divertindo.
Em lugar do sabre militar, os soldados de Vidigal usavam um chicote
de haste longa e pesada, com tiras de couro cru nas pontas. O major
também comandou vários assaltos a quilombos montados por escravos
fugitivos nas florestas ao redor do Rio de Janeiro. Em recompensa por
seus serviços, Vidigal recebeu de presente dos monges beneditinos, em
1820, um terreno ao pé do morro Dois Irmãos. Invadido por barracos a
partir de 1940, o terreno está hoje ocupado pela favela do Vidigal,
de onde se tem vista rara das praias de Ipanema e do Leblon.
A gazeta do rio de janeiro, o primeiro jornal publicado em território
nacional, começou a circular em 10 de setembro de 1808, impressa em
máquinas trazidas ainda encaixotadas da Inglaterra. Com uma ressalva:
só imprimia notícias favoráveis ao governo. Ler os anúncios
publicados na Gazeta é uma forma divertida de observar a sofisticação
dos hábitos da população carioca naquela época. No começo, oferecem
serviços e produtos simples, reflexo de uma sociedade colonial ainda
fechada para o mundo que importava pouca coisa e produzia quase tudo
que consumia.
Esses primeiros anúncios tratam de aluguel de cavalos e carroças,
venda de terrenos e casas e alguns serviços básicos, como aulas de
catecismo, língua portuguesa, história e geografia. Exemplo de
anúncio publicado em 1808: "Vende-se um bom cavalo mestre de andar em
carrinho. Quem o pretender comprar procure Francisco Borges Mendes,
morador da esquina do Beco de João Baptista por cima de uma venda".
De 1810 em diante, o tom e o conteúdo dos anúncios mudam de forma
radical. Em vez de casas, cavalos e escravos, passam a oferecer
pianos, livros, tecidos de linho, lenços de seda, champanhe, água-de-
colônia, leques, luvas, vasos de porcelana, quadros, relógios e uma
infinidade de outras mercadorias importadas. Na edição de 2 de março
de 1816 da Gazeta, o francês Girard se anuncia como "cabeleireiro de
Sua Alteza Real a Senhora D. Carlota, Princesa do Brasil, de Sua
Alteza Real a Princesa de Galles e de Sua Alteza Real a Duquesa de
Algouleme". Em seguida, oferece os seguintes serviços: "Penteia as
senhoras na última moda de Paris e de Londres; corta o cabelo aos
homens e às senhoras; faz cabeleiras de homens e senhoras; tinge com
a última perfeição o cabelo, as sobrancelhas e as suíças, sem causar
dano algum à pele nem à roupa; e tem uma pomada que faz crescer e
aumentar o cabelo". Em 13 de novembro do mesmo ano, Bellard, na rua
do Ouvidor, número 8, avisa ter recebido "um novo sortimento de falsa
e verdadeira bijuteria, chapéus para senhoras, livros franceses,
vestidos e enfeites de senhoras modernas, cheiros de todos os
gêneros, pêndulos, espingardas e leques".
A indumentária e os novos hábitos transplantados pela corte eram
exibidos nas noites de espetáculo do teatro São João ou nas missas de
domingo. Nessas ocasiões, um símbolo indiscutível de status era o
número de escravos e serviçais que acompanhavam seus senhores. Os
mais ricos e poderosos tinham as maiores comitivas e faziam questão
de exibi-las como símbolo de sua importância social. O prussiano Von
Leithold diz que até as meretrizes de primeira classe - "que não são
poucas" - exibiam orgulhosas suas escoltas pelas ruas. Quem não
dispunha de criados particulares os alugava para as funções dos dias
santos ou missas. "É um ponto de honra apresentarem-se com um
numeroso séquito. Caminham solenes, a passos medidos, pelas ruas."
Apesar do crescimento acelerado, em 1817, nove anos depois da chegada
da família real, o naturalista austríaco Tomas Ender ainda registrou
uma tribo de índios na localidade de São Lourenço, numa das
entrâncias da baía de Guanabara, não muito distante do palácio de São
Cristóvão, onde morava o rei D. João VI. Era, provavelmente, o último
reduto nas imediações da capital de um Brasil sertanejo, ermo e
inexplorado, que num espaço de apenas 13 anos, entre a chegada e a
partida da corte, se transformou de uma colônia atrasada e ignorante
num país independente. Quando a corte retornou para Portugal, em
1821, um novo país estava pronto para caminhar sozinho, sem a tutela
portuguesa. O resultado foi a independência, em 1822.
Ironicamente, ao mudar o Brasil, D. João VI perdeu-o para sempre.
Editora Abril
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