RE: Crise de (1383-85)- Revolução

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Crise de (1383-85)- Revolução

#115888 | artur41 | 05 abr 2006 17:17

Caros Confrades,

Estou a fazer um trabalho sobre a crise de 1383-1385. Gostaria de saber a vossa opinião.

A título de exemplo deixo aqui a perspectiva do General Vasco Gonçalves: para ele assistiu-se a uma Revolução!


Com os meus melhores cumprimentos

Artur Camisão Soares

"O ensaio do general Vasco Gonçalves que resistir.info hoje divulga foi publicado em 11/Dez/1983 num suplemento do jornal «o diário», comemorativo da Revolução de 1383-85.
Transcorrido mais de um quarto de século não perdeu actualidade. A invasão de Portugal pelo capital financeiro espanhol e a posição hegemónica assumida pelas empresas do pais vizinho no conjunto das relações comerciais portuguesas configuram, num contexto histórico muito diferente, uma situação de ameaça à identidade nacional. Na área do Alqueva — um exemplo recente da gula espanhola — a maioria das terras próximas da grande barragem foram já, em algumas freguesias, adquiridas por agrários da Andaluzia.
Por que recordar o trabalho de Vasco Gonçalves? Seria ridículo admitir que a Espanha representa hoje uma ameaça militar. Entretanto, no âmbito da União Europeia a ofensiva avassaladora do capital espanhol (que extravasa para a frente da cultura) exige reflexão. Numa época em que banqueiros e outros homens de negócios portugueses voltam a agitar as bandeiras do iberismo, é oportuno chamar a atenção para a lição de historia contida no ensaio do ex-primeiro ministro.
Ao iluminar o quadro das lutas sociais em Portugal quando D João de Castela invadiu o pais, o autor lembra que a recusa de um rei estrangeiro e a proclamação do Mestre de Aviz se inseriram num violento antagonismo de classes. Enquanto a nobreza — a classe dominante — aderiu maciçamente ao invasor, para defender os seus privilégios, a burguesia urbana e rural, e os camponeses, ao tempo progressistas, uniram-se contra a ameaça exterior.
O confronto transcendeu o problema militar. A batalha foi a consagração de uma revolução nacional. Ao exército de Aljubarrota aplica-se a definição de Bolívar. Ele foi o povo em armas.
resistir.info não confunde o nacionalismo de raiz fascista, patrioteiro, xenófobo e agressivo, com o sentimento revolucionário do nacional. Temos presente que o internacionalismo humanista não deve ser dissociado da defesa de uma diversidade que faz a grandeza dos povos e contribuiu poderosamente para o avanço da civilização.
Nestes dias em que, pelo poder do dinheiro, as forças retrogradas da Espanha tentam conseguir aquilo que não conseguiram em oito séculos pela força das armas, o importante ensaio de Vasco Gonçalves é um tema para meditação.


A Revolução de 1383-85
por Gen. Vasco Gonçalves


A guerra entre Portugal e Castela nos fins do Séc. XIV não é apenas uma guerra entre dois Estados, ou mais uma guerra entre dois Estados.

Da parte dos portugueses é uma guerra nacional e popular, uma guerra que mergulha as suas raízes nas lutas sociais, nas lutas de classes que se vinham desenvolvendo e intensificando ao longo do Séc. XIV.

Estava-se processando o declínio do sistema feudal causado, fundamentalmente, pela liquidação da servidão da gleba nos Séculos XIII e XIV e pelo surgimento da pequena produção baseada no trabalho do proprietário dos meios de produção e da produção baseada no trabalho assalariado.

A expansão dos concelhos está ligada ao desenvolvimento desta produção: é sua consequência e é seu estímulo, na medida, por exemplo, em que favorecia a libertação dos servos da gleba.

Os servos da gleba dão lugar aos pequenos produtores formando-se, depois, por um lado, uma classe de camponeses ricos, a burguesia rural, e, por outro, uma classe de camponeses sem terra que fornecem trabalho assalariado.

Com a produção mercantil simples, com a pequena produção baseada no trabalho assalariado aumenta a produção em geral, desenvolvendo-se o comércio interior. Surge uma classe de comerciantes que cresce em número e em poder económico.

Por outro lado, o desenvolvimento do comércio externo (que já existia quando da formação de Portugal) conduz ao aparecimento de uma classe de ricos mercadores.

Sendo o comércio externo quase todo feito por mar desenvolve-se a Marinha Mercante e, a construção naval. Nos centros urbanos do litoral forma-se uma burguesia rica, que se organiza na defesa dos seus interesses, e que vão influenciando cada vez mais a política portuguesa. Os portos, em particular Lisboa e Porto, tornam-se centros de poder da burguesia comercial-marítima.

Paralelamente a este progresso, na produção e na troca de produtos, desenvolve-se a produção artesanal, cresce a classe dos mesteirais, cujo papel na Revolução de 1383-85 virá, em certos momentos, a ser decisivo.

Com o desenvolvimento da produção mercantil e do comércio os burgueses concentram na sua mão grande riqueza. Com o seu crescente poder económico a burguesia ligada ao comércio marítimo torna-se o principal inimigo da classe senhorial e vem a estar em condições de, em unidade com as outras classes não senhoriais, disputar o poder político à nobreza latifundiária.

O surgimento das novas classes e camadas sociais, o crescente poder económico da burguesia, cujos interesses se opõem aos da classe senhorial, exercem pressão sobre o poder real e obrigam a que os privilégios da nobreza e do clero vão sendo reduzidos ao longo dos Séculos XIII e XIV.

Contudo, a natureza do Estado não muda com as conquistas que a burguesia vai alcançando. A nobreza latifundiária e militar, de que o rei é o primeiro senhor, continua a ser a classe dominante, continua a dispor da direcção política do Estado.

D. Fernando é obrigado a promulgar leis de protecção ao comércio e à navegação, é obrigado a promulgar, nomeadamente, a Lei das Sesmarias, o que tem o significado de grandes conquistas da burguesia urbana e rural.

Amadurecem as condições para a disputa do poder político à nobreza por parte da burguesia.

Apercebendo-se do perigo que corria e sentindo que não possuía forcas para, por si só, dominar a contestação aos seus privilégios e ao seu poder, a nobreza portuguesa vinha procurando o apoio da nobreza castelhana à qual se unia (sem atender aos riscos que essa união implicaria para a independência nacional) com. o fim de salvaguardar e manter os seus privilégios, de reforçar o seu poder e de contrabater a burguesia ascendente. Foi com este objectivo que se celebrou em 1383 o casamento da infanta D. Beatriz, filha única de D. Fernando e de D. Leonor Teles, com o rei de Castela.

Antes, em 1376 e 1380, o casamento da infanta com príncipes castelhanos estivera para ser realizado, prevendo-se já então a sucessão de um rei castelhano no trono de Portugal.

O próprio casamento de D. Fernando com D. Leonor Teles fora preparado pela nobreza portuguesa em aliança com a de Castela com vista a influenciar mais directamente as decisões do rei no sentido favorável aos interesses da nobreza portuguesa. E de tal modo assim foi que os burgueses e artesãos se revoltaram em vários pontos do País.

O alfaiate Fernão Vasques e os seus companheiros, à frente de três mil mesteirais, besteiros e homens de pé, em 1371, corajosamente, afirmaram o seu protesto ao rei pelo seu casamento com D. Leonor Teles; eles haviam compreendido o significado político desse matrimónio preparado pela nobreza portuguesa em conivência com a de Castela.

Essa revolta dos mesteirais, exprimindo a oposição de interesses entre as classes populares e a nobreza feudal representou uma tal ameaça ao poder feudal que o rei mandou degolar Fernão Vasques e muitos dos seus companheiros.

A propósito do casamento de D. Fernando, Fernão Lopes diz que os populares se juntavam criticando acerbamente os privados do rei e os grandes da terra que lho consentiam.

Nos últimos meses da vida de D. Fernando acentuou-se junto do rei a influência da nobreza mais reaccionária o que fez crescer a tensão social e contribuiu para criar as condições para a insurreição de Lisboa, poucos dias depois da morte do rei.

A morte do rei precipitou os acontecimentos ao colocar o problema da sucessão.

A causa imediata da revolução burguesa é a tentativa por parte da nobreza de entregar o Governo de Portugal à monarquia castelhana. A revolução toma desde logo um carácter nacional, social e popular. A insurreição de Lisboa é secundada por revoltas populares por todo o País (sobretudo a Sul do Tejo) da burguesia rural, dos camponeses, dos assalariados rurais, dos «ventres ao sol».

A luta pela independência nacional funde-se com a luta contra os privilégios da nobreza e pelo poder político, pois a classe dominante à qual era disputado este poder político era a mesma que, para conservar as suas posições, havia provocado a intervenção da nobreza de Castela contra os interesses populares e estava disposta a entregar o Governo de Portugal à monarquia castelhana.

A revolução burguesa identifica-se, assim, com a luta pela independência nacional.

A revolução tem um nítido carácter de classe. Dois campos se afrontam: o da nobreza territorial latifundiária e o das classes não senhoriais: a burguesia urbana e rural, os mesteirais, os pequenos proprietários camponeses, os camponeses sem terra, nesse momento unidos contra o mesmo inimigo, a nobreza portuguesa e castelhana, ultrapassando assim as próprias e naturais contradições de interesses que havia entre essas classes sociais não senhoriais. Foram estas forças que se defrontaram em Aljubarrota.

O facto de, do lado português, sempre ter havido nobres ao lado das classes populares não altera o carácter do afrontamento de classes.

Em todas as revoluções houve sempre elementos da classe dominante que tomaram o partido das classes em ascensão, progressistas, que se opõem ao poder dessas mesmas classes dominantes.

Era restrito o número de nobres que estava com Portugal. E pertenciam aos estratos inferiores da nobreza. Eram dos menos abastados.

Não podemos, pois, afirmar que do lado português, em Aljubarrota, se encontravam todas as classes sociais defendendo a independência nacional.

O facto de, depois da Revolução de 1383-85, a nova nobreza ter ficado na posse de vastos domínios, domínios cuja extensão total era tão grande como a que antes de 1383 possuía a antiga nobreza latifundiária, não invalida a afirmação de que em Aljubarrota a nobreza, como classe, não estava do lado de Portugal.

Estava, sim, um reduzido número de nobres que eram chefes militares das tropas populares. Os comandos militares, os quadros superiores eram, regra geral, nobres que, como se sabe, naquele tempo, eram militares profissionais.

O que aconteceu foi que esses poucos nobres, em consequência dos êxitos na guerra e em virtude da posição que ocupavam no exército, ascenderam à grande propriedade territorial, no lugar daqueles que se puseram ao lado de Castela.

Com efeito, foi com esses nobres leais a Portugal que, dadas as condições objectivas e subjectivas da época, foi reconstituída a grande parte dos domínios senhoriais. O caso mais típico é o de Nuno Alvares Pereira que ascendeu ao primeiro plano da classe senhorial e de tal modo que os seus domínios atingiram uma extensão igual à dos domínios que anteriormente possuíam muitos dos grandes nobres tomados em conjunto.

É Fernão Lopes que nos diz que em resultado da grande crise surgiu uma «sétima idade em que se levantou um mundo novo e nova geração de gentes, aparecendo fidalgos de origem plebeia e erguendo--se pequenos aristocratas à primeira linha da nobreza». Repare-se que, para Fernão Lopes, o aparecimento de um mundo novo não estava ligado, como para nós, hoje, a uma profunda transformação nas relações de produção e distribuição entre as diferentes classes sociais.

As condições objectivas da vida da sociedade portuguesa em fins do séc. XIV não eram de molde a poder colocar à consciência da burguesia e das classes populares a necessidade de uma modificação radical das estruturas socioeconómicas, que liquidasse o poder da classe senhorial. Só séculos mais tarde essa questão será posta pelas burguesias dos diferentes países e com grandes intervalos de tempo entre si.

Com efeito, podemos verificar que nos finais do séc. XIV a Revolução de 1383-85 respeita as estruturas da sociedade feudal. Em 1383-85, do ponto de vista socioeconómico, o objectivo fundamental comum à burguesia e às classes populares era o de limitar os privilégios senhoriais, devendo, contudo, ter-se presente que eram diferentes entre si os objectivos concretos da burguesia e das demais classes populares.

Em Aljubarrota, na realidade, encontravam-se muito poucos fidalgos do lado de Portugal. A principal nobreza portuguesa estava do fado castelhano, quer ali, em Aljubarrota, nas hostes de Castela, quer na chefia de povoações e castelos que se mantinham como ilhas ao serviço do inimigo, quer mesmo em Castela.

Aliás, quando da primeira invasão castelhana, em princípios de 1384, o rei de Castela entrou praticamente sozinho em Portugal, antes do seu exército.

Tal era o apoio que o rei de Castela tinha entre a nobreza portuguesa que o rei chegou à Guarda com a esposa e um pequeno séquito de umas trinta pessoas, sendo recebido processionalmente pelo bispo e clero e acorrendo depois numerosos fidalgos ao paço episcopal onde se hospedou.

Em Aljubarrota, além de D. João I, Nuno Álvares e de mais uma dezena de grandes senhores haveria cerca de uma centena de nobres de modesta hierarquia.

Ora, o número de membros da nobreza portuguesa é estimado, nos fins do séc. XIV, em 4000 a 5000 pessoas, não incluindo os membros da família real que seriam algumas centenas (Armando Castro, «História Económica de Portugal», II vol.).

A nobreza que combatia contra os Portugueses em Aljubarrota tinha bem a noção do carácter de classe da guerra que fazia. Fernão Lopes dá-nos vários testemunhos:

— Por meados de 1384 quando o nobre Gonçalo Mendes de Vasconcelos, senhor do castelo de Coimbra, entreviu por uma seteira do seu castelo, o exército de Nuno Álvares, que partia para Tomar, comentou para os seus privados o género de combatentes que compunham essa hoste, espantado que tais homens pudessem defender o reino contra um grande senhor como o rei de Castela, «salvo se Deus fosse seu capitão».

— Quando o rei de Castela reuniu o conselho para decidir se devia dar batalha ou não, poucas horas antes do início desta, houve entre os seus conselheiros quem fosse de opinião que não se desse batalha pois se o rei de Castela fosse vencido teria sido derrotado «por um pouco número de pobre gente».

— A covilheira do rei de Castela defumava os fidalgos com algumas defumaduras «para perderdes os maus cheiros destes chamorros, das casas onde vivem e aldeias onde moram».

— Após a derrota de Aljubarrota, o rei de Castela, em fuga, ao chegar a Santarém lamenta-se de ter sido derrotado pelos «chamorros».

«E se vós dizeis que outro tal e tanto aconteceu a meu pai verdade é que assim foi. Mas (...) de que gentes foi meu padre vencido? Foi-o de ingleses que são o frol da cavalaria do mundo, em tanto que, vencido por eles, não deixava de ficar honrado (...) E de que gentes fui eu vencido? Fui-o de chamorros que ainda que me Deus tanta mercê fizesse que a todos tivesse atados em cordas e os degolasse por minha mão, minha desonra não seria vingada».



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Como dissemos atrás, a Revolução de 1383-85 tomou, desde a sua eclosão, um carácter nacional, de luta peta independência, posta em perigo pela aliança da nobreza portuguesa com a de Castela. D. Leonor Teles manda alçar pendão por D. Beatriz, rainha de Portugal e de Castela. A rainha viúva pede a intervenção de Castela, a cujo rei entrega, em Santarém, a regência do reino, em Janeiro de 1384, com o apoio da alta nobreza portuguesa.

Tem havido quem procure justificar o comportamento antipatriótico da aristocracia portuguesa afirmando que nessa época o sentimento nacional e patriótico seria inexistente.

Mas a verdade é que esse sentimento já existia nessa época em Portugal e já existia de longa data. Não se terá esse sentimento de independência começado a definir partir da auto-proclamação de Afonso Henriques como rei de Portugal?

O que se verificou é que não era essa nobreza feudal, como classe, a portador desse sentimento patriótico.

A história mostra que não pode formar-se uma nação como uma comunidade de indivíduos que vivem no mesmo território e que, para além de relações económicas estáveis, estão ligados por uma língua comum e pelas particularidades da mentalidade, da cultura, do modo de vida, fixadas nos seus usos, costumes e tradições, sem que, na sua raiz, estejam classes produtivas directas e as demais classes populares.

Os interesses destas classes, nos graves momentos de crise nacional, identificam-se com os interesses da Pátria.

O mesmo não acontece quanto as classes privilegiadas: em determinadas condições históricas, para defenderem os seus interesses e as suas posições frente à acção revolucionária das massas populares, elas sacrificam o sentimento patriótico, são capazes de comprometer a independência do seu país em troca do auxílio estrangeiro, para se manterem no poder.

Na tão grave situação de 1383-85, o sentimento nacional, a solidariedade activa entre as mais largas camadas de portugueses foi reforçada, mas este facto foi devido à luta das classes, não privilegiadas contra a nobreza feudal.

A própria solidariedade activa entre a grande maioria da população atesta que já havia nessa época um arreigado sentimento pátrio. São muitas as referências de Fernão Lopes a esse sentimento pátrio:

«o povo meúdo» quando a aristocracia, após a morte de D. Fernando, erguia o pendão por D. Beatriz, mulher do rei de Castela, respondia com «Arraial, arraial, por Portugal».

Alguns exemplos:



Os representantes do concelho de Alenquer dirigem-se ao Mestre de Avis afirmando o seu patriotismo, «somos portugueses e todos naturais destes reinos».


Quando o Mestre de Avis se despede, em Coina, de Nuno Álvares Pereira, que marcha para o Alentejo como fronteiro dá-lhe o apoio de algumas dezenas de escudeiros, dizendo-lhe serem «verdadeiros portugueses».


Os homens bons de Cerveira, Caminha e Monção enviam mensagens a Nuno Alvares Pereira: declaram-se «verdadeiros portugueses» e entregam-lhe voluntariamente essas povoações.


Os partidários do Mestre de Avis contra a candidatura ao trono de Portugal do infante D. João, filho de D. Pedro e D. Inês de Castro, argumentavam que o infante D. João fizera guerra contra Portugal ao lado de Castela.


Domingues Peres das Eiras afirma a determinação dos moradores do Porto em defenderem a sua terra «para nunca sermos em poder dos castelhanos».


A designação que o «povo meúdo» dava aos aristocratas portugueses que combatiam ao lado de Castela era a de «traidores».


Na descrição da batalha de Aljubarrota, Fernão Lopes refere-se aos «maus portugueses que vinham na vanguarda dos castelhanos».

A acusação de traidores e maus portugueses não foi criada por Fernão Lopes: encontra-se em dezenas de documentos da época em que esses epítetos são dados sistematicamente aos aristocratas que se colocaram ao lado de Castela.

«Para o comprovar basta percorrer, por exemplo, o tomo 2º dos Documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa». (A. Castro, EEP séc. XII a XV, vol. 11.-, pág. 300.)

A consciência, entre portugueses, de que pertenciam a uma nação autónoma é já assinalada nos dizeres inscritos na parede ao lado da epístola que pertencia à capela instituída na Sé de Lisboa por Bartolomeu Joanes que viveu nos tempos de D. Afonso III e D. Diniz. Instituiu cinquenta libras para cada capelão («que em esta capela sempre cantem dezasseis capelões por dia») e ainda dois soldos cada sábado por ofícios religiosos nesses dias acrescentando que «os capelões hão-de ser portugueses bons e legítimos se os acharem, senão tomem outros» (ver Júlio de Castilho, Lisboa Antiga, 1885, vol. III págs. 329-331, citado por A. Castro, em EEP séc. XII a XV, vol. 11º, pág. 425).



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Pelo seu carácter nacional e social a guerra de Portugal contra Castela foi uma guerra justa. Ela foi uma guerra conduzida pelo povo em defesa da liberdade e do progresso social (a opressão e exploração senhoriais entravavam o desenvolvimento económico e social), em defesa da independência nacional contra o domínio estrangeiro. Este era o conteúdo político da guerra. Ele resultava do carácter de classe da guerra, das razões pelas quais eclodiu, das classes que a faziam e das condições históricas e histórico-económicas que a provocaram.

O conteúdo político da guerra determina o seu papel histórico na vida da sociedade.

O papel histórico da guerra contra Castela e contra a nobreza feudal de Portugal foi progressista.

A vitória da burguesia permitiu:

— o fortalecimento do poder político do país;

— o fortalecimento do poder político e económico da burguesia que conduzirá ao desenvolvimento da navegação e do comércio marítimo e à gesta dos Descobrimentos.

A natureza de classe da guerra exprime-se também na sua característica moral.

São os fins almejados pêlos beligerantes, fins progressistas ou reaccionários, fins de libertação ou de conquista que distinguem as guerras justas das guerras injustas.

O poderoso conteúdo moral das guerras justas exerce uma influência decisiva na consciência, no ardor combativo, na coragem, na valentia, no espírito de sacrifício, na solidariedade e na unidade dos combatentes. E, deste modo, o carácter justo da guerra exerce uma influência determinante na correlação de forças entre os beligerantes.

Em Fernão Lopes podemos verificar como, para as classes não senhoriais (e para o reduzido número de nobres que junto com eles combatem e de que Nuno Alvares é o maior exemplo) a guerra era profundamente justa e, portanto, sentida como sua.

Veja-se, por exemplo, a narrativa dos assaltos populares aos castelos de Portalegre e de Estremoz ou dos levantamentos de Lisboa, de Beja, de Évora, do Porto: «Desta guisa que haveis ouvido, se levantaram os povos em outros lugares, sendo grande cisma e divisão entre os grandes e os pequenos».

«O qual ajuntamento dos pequenos povos, que então assim se juntaram, chamavam naquele tempo, arraia miúda. Os grandes, à primeira, escarnecendo dos pequenos, chamavam-lhe povo do Messias e Lisboa, que cuidavam que os havia de remir da sujeição de el-rei de Castela.»

«Era maravilha de ver que tanto esforço dava neles (na arraia miúda) e tanta cobardice nos outros, que os castelos que os antigos reis por longos tempos jazendo sobre eles com força de armas não podiam tomar, os povos miúdos, mal armados e sem capitão, com os ventres ao sol, antes de meio-dia os filhavam por sua força.»

A população rural da região de Alcobaça matou mais castelhanos, em fuga após a batalha de Aljubarrota, do que aqueles que perderam a vida na batalha:

«um rústico aldeão prendia e matava sete castelhanos e oito e dez e não tinham poder de lhe contradizer, tanto homens de pequena condição como pessoas de boa conta» quer fossem castelhanos, quer fossem portugueses que com eles vinham na hoste de Castela.

Foram os camponeses, os mesteirais, os elementos das classes produtivas que sofreram o maior peso da guerra. Quer sozinhos, quer sob o comando dos poucos nobres que aderiram à causa nacional ou dos cavaleiros-burgueses, quer ainda com o auxílio de pequenas forças militares eles assaltaram castelos, levantaram povoações e sofreram a pilhagem e a violência do exército de Castela, por onde quer que este se deslocasse.

As vitórias dos portugueses em território nacional foram sempre alcançadas em grande inferioridade quanto a efectivos, armamento e equipamento.

Nas vésperas da batalha de Aljubarrota, Nuno Álvares procura que as suas tropas não tenham conhecimento da enorme superioridade do inimigo.

A arrogante nobreza castelhana chama aos portugueses «desesperados que não receiam a morte», «um pouco número de pobre gente».



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As vitórias dos portugueses não podem ser explicadas, simplesmente, pela arte militar.

A própria táctica inovadora estava intimamente relacionada com a composição social e o número de efectivos de que dispunha Nuno Álvares. Só homens altamente moralizados, sentindo de todo o seu ser a justeza e a razão moral da guerra em que estavam empenhados poderiam obter tais vitórias, sendo tão poucos.

O carácter de luta popular e nacional é numerosas vezes assinalado em Fernão Lopes:



A burguesia rural, os camponeses engrossam espontaneamente as hostes de Nuno Álvares Pereira e de D. João I durante os deslocamentos destas em território nacional.


Quando em Fevereiro de 1385 o Mestre de Avis levanta o cerco de Torres Vedras para seguir para as Cortes de Coimbra acorre muito povo da região implorando que o deixasse partir juntamente a fim de não ficar à mercê dos malfeitores dos inimigos. O Mestre acede, saindo com os pobres moradores da região, suas mulheres e filhos.


Em Outubro de 1384, Nuno Álvares Pereira com o apoio da população local toma o castelo de Portel.


Em Coimbra, o Mestre é acolhido por grande recepção popular, muitos «cachopos» «sem que ninguém os mandasse» aclamaram o Mestre como rei.


Os concelhos representados em Coimbra decidem fazer um pedido de 400 mil libras para pagamento dos soldos dos combatentes.


Em Abril de 1385 Nuno Alvares Pereira antes de partir para o Porto dirige-se aos seus soldados recomendando-lhes que na sua marcha não deviam ferir, matar ou roubar os lavradores, pois eles não eram senhores das vilas e dos castelos ao serviço do inimigo e que se mais não faziam pela causa de Portugal era porque não podiam.


A batalha de Trancoso, em Junho de 1385, é ganha por uma pequena hoste portuguesa, com poucos de «criação», ou seja, fidalgos, mas «com muitos dos concelhos da região e lavradores da comarca».


Em Agosto de 1385 as hostes de Castela, tendo invadido Portugal pela Beira Alta, praticam ao longo do seu itinerário as maiores violências e pilhagens, mutilam, decepam, matam lavradores e camponeses, e incendeiam igrejas (o rei de Castela era pelo Papa de Avinhão enquanto o rei de Portugal era pelo de Roma).


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Mas há ainda um outro aspecto a salientar acerca do conteúdo político da guerra, do seu carácter justo e popular.

A guerra de Portugal contra Castela foi, até à vitória de Aljubarrota, uma guerra defensiva, para os portugueses, não obstante as operações ofensivas empreendidas pelas nossas tropas. Até esse momento a guerra foi travada no território português. Era uma guerra nacional e popular. Mas a partir do ano de 1385 a influência crescente dos dirigentes militares das forças portuguesas que eram aristocratas (havia também chefes militares burgueses), possuidores de uma consciência social moldada nos quadros da ideologia medieval, cavaleiresca, leva a que a continuação da guerra seja feita, em grande parte, nos antigos moldes, próprios dessa nobreza: incursões em terras de Castela, assédios a castelos inimigos, desafios entre cavaleiros, tomadas de despojos, aliança com o duque de Lencastre, de Inglaterra, para apoiar as pretensões deste ao trono de Castela, etc.

A guerra perde o seu carácter social e de defesa da independência nacional. Deixa de ser uma guerra justa e popular. Os nossos combatentes, fora da sua Pátria, não sentiam a guerra como sua.

Por outro lado, agora para o povo de Castela, a guerra passava a ser justa. Foi o que se verificou, por exemplo, quando do cerco de Cória, em Castela, em 1386: ao fim de três semanas de inútil cerco, D. João I e Nuno Álvares Pereira retiram para Portugal à frente do maior exército de que até aí dispuseram, 22 mil homens entre cavaleiros, besteiros e peões, todos bem armados e equipados, graças aos despojos colhidos nas campanhas anteriores.



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Procurámos atrás apontar, embora de um modo sumário e simplificado, (o que não quer dizer falta de rigor histórico), as linhas de fundo, as principais condicionantes e determinantes políticas, socioeconómicas e morais, sem cujo conhecimento não é possível compreender o que se passou em Aljubarrota nem a vitória dos portugueses.

Vamos a seguir referir-nos, também de um modo sumário e simplificado, aos principais aspectos militares da batalha de Aljubarrota, sem perder de vista as suas relações com os elementos políticos, socioeconómicos e morais que condicionam e determinam a guerra.



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A composição do exército português e a táctica adoptada estão directamente relacionados com o carácter social da luta que se travou em 1383-85.

O exército era formado, quase todo, por elementos das classes não privilegiadas. O grosso das lanças de Portugal era formado por cavaleiros-vilãos (proprietários rurais e urbanos de maior abastança). Alguns deles foram grandes chefes militares como Gil Fernandes de Elvas e Antão Vasques (herói de Aljubarrota).

Em pequeno número eram os nobres que estavam com Portugal. Além de D. João I, Nuno Álvares e uma dezena de grandes senhores, seriam uma centena em Aljubarrota. Eles eram os chefes militares do exército português, juntamente com cavaleiros burgueses.

A cavalaria era mal armada. O seu equipamento era ligeiro, o que se explica pelos extractos sociais de que era constituída.

Os besteiros (do conto) foram criados como milícia municipal no reinado de D. Diniz. Combatiam com a besta que disparava virotões a cerca de 70 m, que podiam trespassar as cotas de malha dos cavaleiros inimigos.

Eram «do conto» por serem em número certo recenseado em cada concelho.

Do ponto de vista social os besteiros eram formados por pequenos lavradores e sobretudo por mesteirais, homens de ofício, cada vez mais numerosos pelo progresso que tinha a produção artesanal. Tinham de possuir alguns bens para a aquisição e a manutenção da besta. Alguns, poucos, possuíam até cavalo, no qual se deslocavam durante as marchas (os besteiros do rei, por exemplo). A criação dos besteiros no reinado de D. Diniz atesta a crescente importância dos artesãos.

Os mesteirais, na Revolução de 1383-85 tiveram papel decisivo, em momentos críticos, em que salvaram a Revolução. Foi, por exemplo, no dia 16 de Dezembro de 1383 na assembleia do Mosteiro de São Domingos em Lisboa, em que obrigaram o Mestre de Avis a tomar o cargo de Regedor e Defensor do Reino. É Afonso Eanes Penedo que, no dia seguinte, impõe decisões revolucionárias aos burgueses ricos, que estavam hesitantes, dizendo: «Quereis ou não outorgar o que vos dizem? Se dizeis que não, eu vos digo que em tudo isto não aventuro mais que esta garganta e quem não for conosco, pagá-lo-á com a sua antes que daqui parta». Este facto faz-nos compreender a importância que tinham os besteiros-mesteirais na hoste portuguesa.

Os peões eram pequenos camponeses, artífices de menores recursos económicos que os besteiros, pequenos comerciantes, trabalhadores assalariados. O seu armamento e equipamento variava consoante os bens que possuíam: lança, cutelo, adaga, machado curto, espaldeira, gorgeira, escudo. Mas, muitas vezes, era armamento de ocasião: chuços, machado, etc. Era raro possuírem armamento completo, dispunham apenas de peças isoladas. Em Aljubarrota, por exemplo, os peões estavam fracamente armados» muitos deles descalços:

«pobremente e mal armados, porque o que tinha cota não tinha coudel e o que tinha panceira não tinha bracelotes, e muitos deles bacinetes sem caras, assim que todas as suas armas, sendo repartidas como cumpria, não armariam o terço da gente, em tanto que dizem aqueles que os viram que não pareciam os nossos acerca deles senão um pouco de escáneo de ver».

O que caracteriza a composição do exército português não é o facto de os chefes militares serem nobres (cujo sentimento patriótico os levara a ficar do lado de Portugal). É a sua composição de classe não privilegiada, popular.



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A táctica que caracterizou a actuação do exército português na Revolução de 1383-85, foi a de «pé terra» ou «pé em terra».

Na táctica de «pé terra» empregada pela primeira vez na batalha dos Atoleiros, em 6 de Abril de 1384, os combatentes apeados ofereciam à cavalaria inimiga os ferros das lanças bem fincados na «terra». As lanças suportavam o embate da cavalaria inimiga. Os cavalos espetavam-se nelas e eram derrubados com os cavaleiros que, de pesadas armaduras, não têm mobilidade frente aos combatentes inimigos apeados e, em consequência, são por estes desbaratados, esmagados, aniquilados.

A disposição dos combatentes era em quadrado: o dispositivo táctico pretendia anular todo o ímpeto da cavalaria inimiga.

Os lados do quadrado eram guarnecidos à frente pela vanguarda, atrás pela retaguarda e carriagem ou curral, e aos lados pelas alas.

Nuno Alvares mandava apear a maior parte da sua cavalaria. Esta guarnecia a vanguarda, as alas e a retaguarda. A cavalaria portuguesa combatia como a peonagem.

Pelas alas e pela retaguarda eram distribuídos os besteiros e os archeiros que, umas vezes à frente, outras vezes por detrás dos homens de armas, (cavaleiros apeados) lançavam os seus virotões e frechas.

Os peões eram distribuídos pelos quatro lados do quadrado.

A vanguarda, se a frente era rompida pela potência do choque da cavalaria pesada inimiga, procurava recompor-se, rapidamente, fechando-se sobre as tropas inimigas que tivessem penetrado no quadrado, a fim de separar estas do resto da vanguarda inimiga.

Então as alas e a retaguarda caíam sobre o inimigo que estava dentro do quadrado.

Para melhor utilização do tiro dos besteiros e archeiros sobre a vanguarda inimiga, as alas podiam estar salientes em relação às linhas da frente ocupada pela vanguarda do lado amigo. Assim, os besteiros e archeiros podiam cruzar o tiro, ou seja, as frechas e os virotões, sobre a vanguarda inimiga que avançava contra o quadrado.

O quadrado defendia-se também em todo o seu contorno contra ataques do inimigo, quer pelos flancos quer pela retaguarda (ataques da cavalaria ligeira).

Empregando esta táctica, a batalha que as forças portuguesas impunham ao inimigo era muito diferente das grandes batalhas da Idade Média, caracterizadas pelo formidável choque dos cavaleiros, logo divididos em duelos e recontros parciais de cujas vitórias individuais dependia a vitória comum.

A nova táctica era profundamente revolucionária, era fruto da mobilização armada das classes populares, das classes sociais ascendentes contra o poder feudal.

A nova táctica exigia a subordinação a um comando único. (Não podemos, aqui, deixar de fazer o paralelo entre o fortalecimento do poder do rei, apoiado pela burguesia ascendente e o comando único em campanha, O poder feudal era um poder descentralizado, mais ou menos dividido entre os senhores. Os exércitos feudais eram hostes de diferentes senhores; as batalhas da cavalaria feudal rapidamente se transformavam num somatório de recontros.)

A nova táctica exigia a disciplina das marchas e dos acampamentos, a escolha cuidada do terreno e do dispositivo e o hábil emprego das tropas.

Era o progresso táctico da peonagem (infantaria) e das armas de arremesso e a decadência da cavalaria medieval.

Mas estas profundas mudanças da táctica militar não foram pura consequência de um progresso interno, autónomo, da arte militar, com base no aparecimento de novos materiais de guerra, por exemplo. Elas foram um produto do surgimento de novas classes sociais, desenvolvimento da burguesia, da produção artesanal, da luta de classe entre a nobreza territorial, latifundiária e as classes não privilegiadas, da luta armada que estas classes tiveram de travar contra as forças do Estado feudal.

Se a táctica de «pé terra» surge, antes, na Inglaterra não é por acaso. Ela corresponde ao ascenso das camadas burguesas da sua população.

O facto da própria cavalaria portuguesa combater apeada na batalha de «pé em terra» não nos deve induzir em erro sobre a permanência da cavalaria medieval. A nossa cavalaria era empregada como infantaria, não usava lanças de 4 metros nem pesadas armaduras. Era uma cavalaria de cavaleiros-vilões, cavaleiros-burgueses. A própria cavalaria inimiga, nas batalhas de Trancoso e Aljubarrota, por exemplo, viu-se obrigada a apear-se. Os cavaleiros entregavam os cavalos aos seus pajens e cortavam as lanças para combater as tropas portuguesas. Mostravam, assim, que receavam atacar a cavalo (o que caracterizava, precisamente, o poder da cavalaria feudal) e ser derrubado pelos peões, pela tropa apeada. Os cavaleiros feudais eram, deste modo, obrigados a aceitar as condições de combate impostas pelo exército burguês e popular, mas em condições desvantajosas, pois a cavalaria feudal combatia a pé, com lanças improvisadas, pesadas armaduras e reduzida mobilidade.

A cavalaria a pé significa o predomínio da infantaria, das armas e armaduras ligeiras, das armas de tiro, fruto dos progressos do trabalho artesanal, manobradas pelos homens das milícias municipais (antepassados das tropas do contingente dos exércitos de conscrição).

A cavalaria a pé era a cavalaria transformada em infantaria.

Nuno Alvares foi o primeiro chefe militar que entre nós fez batalha de «pé terra» e venceu (Fernão Lopes).

A táctica do «pé terra» surgiu do próprio carácter social, de classe, da Revolução de 1383-85: as classes não privilegiadas não dispunham de cavalaria para opor aos nobres.

Depois da insurreição de 1383 as classes populares, por todo o Portugal, combatiam os nobres, espontaneamente, de «pé terra»: Quando o conde de Viana saiu com quarenta de cavalo do castelo de Penela «para tomar mantimentos contra a vontade dos seus donos», «juntaram-se contra ele os das aldeias e comarcas de redor para lhes defender todos pé terra».

«Emborilando-se eles com eles remessaram-lhe o cavalo e caiu com ele em terra; e foi um vilão rijamente que chamavam de alcunha Caspirre e cortou-lhe a cabeça e assim morreu. E os seus, como o viram morto, fugiram todos e os da vila tomaram logo voz por Portugal».

Esta descrição dá-nos uma imagem correcta do que era a táctica de «pé em terra» empregada pelos portugueses, em Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota. É de admitir que Nuno Alvares Pereira (e alguns dos seus companheiros) tenha tido conhecimento da táctica de «pé em terra», do emprego da infantaria, antes de 1383. Com efeito, já há dezenas de anos que os ingleses empregavam a infantaria e os archeiros contra a cavalaria feudal. A Guerra dos Cem Anos deu aos ingleses grande prestígio na arte militar. Tropas inglesas estiveram em Portugal no reinado de D. Fernando. Nuno Alvares Pereira disporia, assim, de uma base de conhecimentos teóricos que lhe teria permitido tirar o maior aproveitamento do modo espontâneo como os camponeses combatiam os cavaleiros feudais, os senhores dos castelos.

O modo de combater a cavalaria feudal de «pé em terra» surgiu espontaneamente entre os nossos camponeses como terá surgido em Inglaterra, em condições de luta social que teriam as suas semelhanças.

Nuno Alvares Pereira não tinha outra alternativa eficaz para o emprego das tropas e dos poucos meios de que dispunha. (Quando falamos de Nuno Alvares Pereira, grande capitão, não devemos esquecer os chefes militares seus companheiros e entre estes, os chefes militares burgueses.)

Nuno Alvares Pereira soube ligar a táctica de «pé em terra», ao estudo cuidado do terreno e ao seu hábil aproveitamento, obrigando o inimigo a adoptar um dispositivo de ataque que não lhe permitisse aproveitar toda a sua superioridade, como por exemplo, estreitando a frente de combate, como o fez em Aljubarrota.

Os combates que Nuno Álvares Pereira travou foram, em geral, contra um inimigo muito superior em número e armamento. Essas circunstâncias adversas exigiam a nova táctica, adequada aos meios de que as forças populares dispunham, e um elevado moral dos combatentes. Desse elevado moral deram os portugueses sobejas provas.

Ele alicerçava-se na justiça da sua causa.

Nuno Alvares empregou uma táctica revolucionária numa guerra que, para a burguesia e para as classes populares, era uma verdadeira guerra revolucionária.



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Mas para Nuno Alvares, membro destacado da classe nobre, a guerra pela independência nacional não era simultaneamente uma guerra revolucionária. Nuno Alvares Pereira foi o maior chefe militar da Revolução de 1383-85. De uma coragem indómita ele arriscou constantemente a vida nas batalhas da Revolução. Mas os objectivos da sua luta, para além da defesa da independência nacional, não eram muitas vezes os mesmos, que os da burguesia.

Em 1395 Nuno Alvares pretende constituir seus vassalos alguns seus companheiros de armas e amigos, ao que se opõem D. João I e os grandes burgueses, cujos representantes faziam parte do governo do rei. Trata-se de um verdadeiro afrontamento de classe entre o condestável, de um lado, e o rei e a burguesia, do outro. Para Nuno Alvares a guerra não podia, pois, ter um carácter social revolucionário.



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Em estreita ligação com a táctica de pé em terra e com o emprego de armas de arremesso o exército português organizava defensivamente o terreno, criando obstáculos (fossos, trincheiras, abate de árvores, paliçadas) à penetração do inimigo com o fim de lhe retardar os movimentos, quer da cavalaria, quer das tropas apeadas, e ainda para o fixar debaixo do tiro dos besteiros e archeiros.

A organização do terreno, ou seja, escavar trincheiras e fossos, abater árvores, construir paliçadas, é um trabalho humilde que só poderia ser feito por homens pertencentes às classes populares. De novo se evidencia o carácter popular do exército português.

A BATALHA

Após a invasão de Portugal pela Beira Alta, a 8 de Julho, e conhecida a 13 em Abrantes, os movimentos estratégicos das forcas portuguesas (as hostes de D. João I e de Nuno Álvares Pereira) são feitos com o objectivo de, conhecida com segurança a linha de penetração do inimigo, a interceptarem, obrigando-o ao combate. A batalha foi imposta pelos portugueses.

O combate foi travado duas léguas a norte da aldeia de Aljubarrota.

No dia 12 de Agosto os castelhanos estavam provavelmente em Leiria e os portugueses em Porto de Mós. Nestes pontos estacionaram os exércitos.

Nuno Álvares, a 13 de Agosto saiu em reconhecimento do inimigo e deve ter escolhido nesse reconhecimento a posição que no dia 14 viria a ocupar para cortar a marcha dos castelhanos. A posição era situada num pequeno planalto a sul da ribeira de Calvaria, que podia ser atravessada a vau sem grande dificuldade. Ladeavam a posição os ribeiros do vale de Madeiros e do vale da Mata, respectivamente à esquerda e à direita de quem está voltado para norte.

O exército português ocupou o lado norte do pequeno planalto o qual apresenta muitos esporões praticamente inacessíveis. Entre dois deles passava a estrada por onde os castelhanos haviam de vir. De forma geral, só se pode subir da várzea pantanosa da ribeira da Calvaria para esse pequeno planalto pelos vales que o ladeiam.

Estas condições do terreno limitavam muito a frente em que o inimigo podia lançar o ataque e ainda permitiam que ele fosse batido de flanco, por tiros cruzados de atiradores (besteiros e archeiros) postados nos esporões e colocados nas alas esquerda e direita.

As encostas dos flancos eram impróprias para o emprego da cavalaria pesada de Castela.

Às dez horas (solares) da manhã do dia 14, os portugueses estavam instalados na posição sobre a ribeira de Calvaria. Ao meio-dia, a testa da coluna castelhana «chega acerca dos portugueses» a 1250 metros na crista da encosta fronteira.

Reconhecendo a força da posição portuguesa, o exército castelhano decide ladeá-la pelo oeste e às 13 horas estaciona onde hoje existe a povoação de Calvaria, que era visível da posição portuguesa.

Em face do movimento do inimigo, o exército português começa a abandonar a primeira posição. Inverte a frente e desloca-se para o sul o suficiente para assegurar o espaço de manobra à retaguarda e à carriagem, indo ocupar uma nova posição mais a sul.

«Passou a vanguarda pela retaguarda» relata Fernão Lopes. Quer dizer, a retaguarda abriu para dar passagem à vanguarda, mas as alas não cruzaram, ficaram dos lados em que estavam na 1ª posição.

Andados 2100 metros foi encontrada uma boa posição: o flanco esquerdo coberto por bons obstáculos; o flanco direito apoiado num áspero declive.

Às 12 e 45 começa a instalação da frente. Duas horas depois a nova posição estava ocupada.

Às 15, o trem estava em posição, 1500 metros a sul da primeira posição que ocupara. A frente do exército português estava, agora, virada ao sul.

Alcide de Oliveira, no seu livro «Aljubarrota Dissecada», 1979, propõe a seguinte fita de tempo para os movimentos dos dois exércitos, no dia 14 de Agosto, até ao início da batalha:

EXÉRCITO DE PORTUGAL


Partida de Porto Mós 05:15
Chegada à 1ª posição 06:45
Fim da instalação, começo de armar cavaleiros, alocuções às tropas 10:00
Aparecimento dos castelhanos no horizonte 11:45
Paragem da testa da coluna castelhana em Jardoeira (a norte da rib. de Calvaria) 12:00
Recomeço da marcha da col. castelhana, inflectindo para oeste 12:15
Começo do abandono da 1ª posição pela tropa portuguesa 12:30
Começo da ocupação da 2ª posição 12:45
Fim da instalação na 2ª posição 14:45
Chegada do reforço dos cavaleiros da Beira 15:00
Diálogo com os parlamentares do rei de Castela 16:30
Recepção da espada mandada pelo conde D. João Afonso Teles, que vinha na hoste de Castela, a Nuno Alvares 17:00
Deserção de um grupo da segurança do trem 18:15



EXÉRCITO DE CASTELA

Chegada da testa à Jardoeira 12:00
Chegada da testa à Calvaria e paragem 13:00
Prosseguimento da marcha após reconhecimento da base de ataque 14:00
Começo da ocupação da base de ataque 14:30
O rei chega a Chão de Feira (a sul de Calvaria) 15:45
Saída dos parlamentares 16:00
Regresso e início do Conselho 17:00
Chegada da testa do trem (trons) 17:15
Apear e recolher das montadas 17:30
Fim da reunião do Conselho 17:45
Fim da instalação a pé na zona de partida da 1ª batalha (1° escalão de ataque) 18:45
Recolha das montadas da 2ª batalha (2º escalão de ataque), chegada da testa da coluna de besteiros e lanceiros (tropa apeada do 1º escalão de marcha) ao escurecer depois das 19:15 (não chegam a tempo do combate) após
19:15




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As tropas que se iriam defrontar eram muito diferentes em efectivos. Os dados disponíveis correspondem a avaliações prováveis:

A hoste portuguesa terá a seguinte composição aproximada:


MONTADOS
Cavaleiros portugueses (lanças) 1 100
Cavaleiros ingleses e gascões 100
Besteiros (escolta do rei) 100
Archeiros ingleses 100

APEADOS Homens de armas (lanças «não bem corrigidas») 500
Besteiros 700
Peões 3 900
SOMA DOS COMBATENTES 6 500
Não combatentes (cerca de 1/3 dos combatentes) 2 500
TOTAL 9 000

O estandarte indicava a localização do chefe que devia ser visto pelos combatentes. Capturar ou matar o chefe era um objectivo de primeira prioridade do inimigo. Por isso o chefe devia ser bem protegido. Tinha a sua escolta (do rei, do condestável) que era uma pequena força militar montada. A escolta de D. João I era constituída por 100 besteiros a cavalo. Os não combatentes não estavam desarmados, e quando a situação o impunha combatiam.

Os efectivos nacionais seriam acompanhados de 200 carros, 1300 azêmolas de carga e tiro e cerca de 1500 solípedes de sela.

Os valores propostos para os efectivos de pessoal são aproximados, com um erro de 500 a 1000.

Do estudo do dispositivo provável e do terreno conclui-se que admitir efectivos superiores conduziria a uma aglomeração de pessoal incompatível com as dimensões da posição e a densidade de ocupação incoerente com as habituais na época.

Ao contrário do que diversos autores admitem, o número de estrangeiros não seria superior a 200 (de acordo com Fernão Lopes).

«Nos portugueses a protecção consistia apenas numa espécie de elmo que lhes cobria a cabeça e o pescoço — os bacinetes de camal, e uma indumentária de couro ou de pano acolchoado para defesa do tronco, chamado solha ou laudel.

«Os privilegiados possuíam cotas de malha de ferro — as panceiras, e fraldões para proteger, respectivamente, o ventre e o corpo da cintura para baixo.

«Armaduras de chapa de ferro não foram utilizadas pelos portugueses pelo que nada distinguia os cavaleiros dos outros combatentes.

«Por armamento fundamental tinham a lança, a facha de ferro e a espada.

«A peonagem trazia chuços, machados, dardos, fundas, etc» (Alcide de Oliveira, ob. cit.)

Do lado de Castela seriam:



MONTADOS
Cavaleiros (lanças) 5 300
Cavaleiros franceses (lanças) 800
Besteiros (escolta do rei, do condestável, etc.) 500
Ginetes (cavalaria ligeira) 1 900

APEADOS
Besteiros 7 500
Peões 15 000
SOMA DOS COMBATENTES 31 000
Não combatentes (1/3 dos combatentes) 11 000
TOTAL 42 000

Das guarnições e praças portuguesas que estavam por Castela deveriam vir 500 lanças, 300 besteiros e 1000 peões.

O número de castelhanos era tal que não se deslocavam numa só coluna de marcha, mas em duas, uma coluna montada e outra apeada.

A coluna montada compreendia 17 400 combatentes e 6000 não combatentes. A coluna apeada 13 600 combatentes e 5000 não combatentes.

A coluna de marcha do exército português necessitava de 3 ½ a 4 horas para se desenvolver de modo a ocupar a posição.

Cada uma das colunas dos castelhanos de cinco horas e meia.

Quando a batalha teve início, ao cair da tarde, as tropas castelhanas ainda estavam a chegar à sua posição. A 2ª coluna de marcha, ainda na Azoia, a norte do local da batalha, quando soube da derrota, retomou o caminho de Castela.

DISPOSITIVOS

Do lado português a frente teria 350 a 400 metros, do lado castelhano 750 metros, porque o terreno, o pequeno planalto se espraiava para sul da actual capela de S. Jorge (mandada construir por Nuno Álvares Pereira no local onde estivera a sua bandeira durante a batalha). O perfil longitudinal do terreno descia do sul para norte. À frente da posição portuguesa foram criados obstáculos: — uma linha de abatises diante das faces (alas) que flanqueavam a vanguarda para garantir uma boa actuação (e defesa) dos besteiros e archeiros e evitar que sobre a pressão do inimigo aqueles fossem atirados para as encostas dos vales que ladeavam a posição; — uma vala frontal ou fosso de uns 300 a 400 metros para contrariar a progressão inimiga e o obrigar a combater debaixo do tiro dos besteiros e archeiros das alas. Há ainda notícia de que a posição portuguesa seria protegida por uma paliçada de madeira, o arraial de tavoado da Cumieira de Aljubarrota doado em 15 de Agosto de 1385 por D. João I.

Quanto ao que se julgou ser «covas de lobo» encontradas em escavações feitas no fim da década de 50, as suas dimensões e disposição em relação à frente de combate, bem como o tempo e pessoal que havia disponível para as abrir, levaram Alcide de Oliveira a uma investigação no local, da qual concluiu: «Não se trata, repetimos, e obras de organização do terreno mas sim covas feitas pelos oleiros ou telheiros da época para colheita de barro, e que o Condestável aproveitou para apoiar a asa oriental da sua ala esquerda, condenada a instalar-se na aba do esporão de São Jorge cujo terreno possuía um valor militar manifestamente mais fraco.

«Era um obstáculo ocasional, inteligentemente aproveitado e que bastaria dissimular... As covas foram, pois, uma determinante da escolha da posição e não uma sua consequência.»

Os obstáculos criados ou aproveitados diminuíam a frente de ataque do exército castelhano.

O dispositivo português [Figura 1] constituía (aproximadamente) um quadrado, tendo a frente e a retaguarda cerca de 350 metros de extensão e os lados cerca de 400 metros. À frente, a vanguarda, sob o comando de Nuno Álvares Pereira era formada por 600 lanças (cavalaria apeada) dispostas em três linhas, mais 50 peões da escolta do Condestável. De cada um dos extremos da vanguarda estava formada uma ala, imediatamente contígua à vanguarda, formando com ela um corpo único, a chamada 1ª batalha, porque era a que estava à frente.

As alas tinham a forma de um V com o vértice voltado para o inimigo e os lados do V guarnecidos por tropas. Eram como que dois «baluartes» (em linguagem da fortificação permanente), salientes em relação à linha da vanguarda. Os salientes teriam uma extensão de 100 a 130 metros. Estes salientes permitiam que, pelo lado de dentro, os besteiros e archeiros fizessem tiro cruzado sobre o inimigo à frente da vanguarda do exército português quando aquele assaltasse a posição portuguesa. Do lado de fora, o saliente permitia a defesa contra os ataques de flanco sobre a vanguarda do exército português.

A ala direita, do lado ocidental, era constituída por 200 lanças (das quais 100 estrangeiras) 100 archeiros ingleses, 100 besteiros e 750 peões.

A ala esquerda, a ala dos Namorados, do lado oriental, era formada por 200 lanças, 200 besteiros e 650 peões,

As alas eram formadas em quatro linhas: besteiros na 1ª, peões nas 2ª e 3ª e cavaleiros (apeados) na 4ª. Os besteiros atiram, quer colocando-se à frente (e recolhendo-se ao quadrado no momento porventura necessário), quer pelos intervalos entre as lanças.

Atrás da vanguarda e suas duas alas (a 1ª batalha), a cerca de 200 metros, no interior do quadrado, formava a retaguarda, cujo alinhamento era paralelo ao da vanguarda. Ocupando os lados do quadrado, duas guardas de flanco no lado oeste, duas guardas de flanco no lado este.

A retaguarda e as guardas de flanco, laterais, constituíam a 2ª batalha. Era comandada pelo rei D. João I.

A 2ª batalha era formada por 700 lanças (apeada), 300 besteiros (dos quais 100 da escolta do rei) e 1050 peões.

A retaguarda era formada por três linhas sendo a 1ª de peões, 250, e as 2ª e 3ª de lanças, 500. As guardas de flanco eram formadas pelos restantes combatentes da 2ª batalha, dispostos em três linhas, sendo a linha interior e a linha exterior (em relação ao quadrado) ocupadas pelos peões. Em cada flanco 100 lanças, 100 besteiros e 400 peões.

A missão das guardas de flanco era não só não permitir ao inimigo que entrasse no quadrado pelos lados perpendiculares à frente, isto é, pelos flancos do dispositivo defensivo, como também fechar o cerco ao inimigo e cair sobre ele, caso este tivesse penetrado no quadrado rompendo a frente, a vanguarda.

Atrás da retaguarda, a uns 150 metros, a carriagem ou o «curral» fecham o quadrado. Compreendia o trem de acompanhamento. Era guarnecida por 200 besteiros e 1400 peões. Os carros estacionados, uns junto dos outros, com os animais desatrelados, os próprios cavalos e muares de reserva constituíam um obstáculo à penetração do inimigo por detrás do dispositivo.

No total as nossas tropas combatentes estavam todas instaladas na posição.

A missão da vanguarda era a de suportar o choque principal do assalto inimigo. Nela formavam os melhores combatentes.

A missão principal das alas e das guardas de flanco foi referida atrás.

A missão da retaguarda era a de reforçar a vanguarda, colmatar as brechas feitas pelo inimigo na frente e, se possível, o contra-ataque.

Alguns cavaleiros inimigos, apresentando-se como parlamentários, tentaram reconhecer a posição portuguesa antes do combate. Nuno Alvares Pereira repeliu-os. Mas devem ter verificado que a posição portuguesa era muito forte. Quando o rei de Castela reuniu o conselho para decidir sobre dar ou não dar batalha, as opiniões dividem-se em três correntes:



não dar batalha mas conservar-se no terreno aguardando a defecção dos portugueses, desmoralizados perante o grande número de inimigos e esgotados pela marcha de aproximação da posição e por nela aguardarem há tantas horas, debaixo de sol escaldante o ataque do inimigo;


não dar batalha e prosseguir a marcha sobre Lisboa, objectivo que, conquistado, significaria a conquista do reino;


dar batalha imediatamente.
Os cavaleiros mais experientes, que tinham estado noutras batalhas, eram de opinião que não se travasse combate, por várias razões:



a posição portuguesa era muito forte;


as alas tinham dificuldade em tomar parte no combate porque a frente da posição era estreita e eles eram obrigados a desdobrar-se sobre as encostas que ladeavam a posição;


era o cair da tarde e eram necessárias ainda horas para que as tropas se pudessem ordenar sobre a posição e estavam cansadas da marcha de aproximação.
Mas os cavaleiros mais inexperientes e arrogantes, entre os quais se encontravam os nobres portugueses, menosprezando o valor e a posição defensiva do inimigo, bem como as condições do terreno, defenderam que se devia dar batalha, pois era manifesta a inferioridade portuguesa. Há um documento escrito pelo rei de Castela, poucos dias após a batalha, em que ele afirma ter dado ordens para que não se ferisse o combate. Mas os cavaleiros da vanguarda (entre os quais se destacava o conde João Afonso Telo, irmão de D. Leonor Teles) iniciaram o ataque pouco depois das seis horas da tarde. Há aqui que apontar a falta de unidade de comando do lado de Castela o que, para além das fracas qualidades pessoais do rei, não é de estranhar num exército de tipo senhorial, constituído por hostes do rei, dos grandes senhores e das ordens militares.

Que os castelhanos atacassem era o que pretendia o comando português. Os movimentos estratégicos e tácticos da tropa portuguesa haviam tido o objectivo de cortar o caminho ao inimigo, provocando a batalha.

D. João I e Nuno Alvares apresentavam a sua hoste ao invasor, provocando-o.

A manobra de contorno, por oeste, da 1ª posição portuguesa ameaçou deitar por terra o ambicioso plano do comando português. Mas este insistiu, fez inverter a frente do seu exército e de novo se apresentou aos castelhanos com o objectivo de lhe cortar a penetração.

Nuno Alvares Pereira tinha consciência da desproporção dos efectivos e dos seus efeitos sobre a moral das tropas: nos dias que precederam a batalha procurou evitar que os seus homens conhecessem a enorme superioridade do inimigo, para que não desmoralizassem. No dia 14 de Agosto, D. João I e Nuno Alvares Pereira andavam constantemente entre os seus homens, moralizando-os. De facto, o moral dos portugueses, de tão grande importância no desfecho da batalha, era grande: quando as tropas viram o inimigo contornar a 1ª posição, furtando-se ao combate, os portugueses exclamaram: «o pesar do demo, já se vão e não querem pelejar».



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Enquanto o dispositivo português era defensivo, o castelhano era atacante. A frente de ataque tinha cerca de 750 metros. À frente da vanguarda, 16 trons, com 50 bombardeiros (artilharia primitiva) e uma linha de 200 besteiros, para uma acção de fogo e tiro das bestas, precedendo o ataque da cavalaria.

A 1ª linha de batalha era formada por 1600 lanças na vanguarda e 700 em cada uma das alas. As. alas estavam alinhadas com a vanguarda. A 1ª linha estava dividida em 2 escalões. O escalão de reserva tinha uma profundidade de 120 metros e postava-se 150 metros atrás da vanguarda. 100 metros atrás da reserva a 2ª linha formava a massa de manobra. Era constituída por 3000 lanças (cavalaria pesada) e 2000 ginetes (cavalaria ligeira). O rei doente e a sua escolta de 150 homens a cavalo não se integraram no dispositivo. O total era de 8250 combatentes. O comando do exército castelhano, ao verificar que o inimigo combatia a pé e de que era pequena a frente de que dispunha, ordenou que a cavalaria pesada apeasse e combatesse a pé.

Os ginetes, massa de manobra, não apeavam, Avançavam a galope, lançavam dois, três dardos sobre o inimigo, espadeiravam e, se estes não cediam, retiravam.

Se compararmos o número de combatentes do dispositivo defensivo português e do dispositivo atacante castelhano, ou seja, 6500 contra 8250, verificamos que Nuno Álvares Pereira, pela escolha da posição e pelo tempo de manobra para ocupar o dispositivo conjugado com o adiantado do dia, reduziu muito a desproporção dos efectivos combatentes e a superioridade estratégica do exército castelhano.



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O ataque foi iniciado a pé, o que representava uma grande desvantagem para a cavalaria atacante cujas lanças (de 4 metros) haviam sido cortadas e cujas pesadas armaduras lhe reduziam a mobilidade.

Os trons deram o sinal de partida (e fizeram apenas três mortos entre a hoste portuguesa), mas rapidamente ficaram inoperativos, rebentaram.

A 300 metros da linha portuguesa a cavalaria castelhana acelera o passo.

A vanguarda portuguesa, bem alinhada, inicia um movimento lento, de avanço, sobre uma dezena de metros. Por razões de ordem psicológica a vanguarda na defensiva e no combate apeado não aguardava o inimigo a pé firme. No último momento avançava «passo a passo». A cavalaria castelhana depara com o fosso à sua frente. Progride a custo sob o tiro dos besteiros e archeiros do exército português. Os homens das filas do interior da massa atacante progrediam sob a protecção física dos que junto com eles avançavam na periferia dessa massa. A massa atacante perde os seus alinhamentos e distâncias. Torna-se compacta, informe e afunila.

A vanguarda portuguesa avança. Choque. O combate é um corpo a corpo à lançada e espadeirada.

Os dois blocos de combatentes sofrem pressões desiguais das suas respectivas retaguardas. A frente portuguesa cede entre o centro e a esquerda, no sector onde se encontra Nuno Alvares Pereira, provavelmente por ter sido em direcção ao estandarte do Condestável que maior esforço fizeram os castelhanos, pois capturar ou aniquilar o comandante inimigo era um objectivo prioritário.

Metade das forças atacantes entra de roldão no quadrado português, progride em direcção ao rei. Então as alas portuguesas dobram-se sobre o inimigo e ficam entre a vanguarda e a retaguarda portuguesas. O rei D. João I lança-se sobre o inimigo. As guardas de flanco da 2ª linha portuguesa completam o cerco. Besteiros, archeiros e peões das alas mantêm as suas posições.

A 2ª linha castelhana, em organização, ao longe, avança.

A vanguarda portuguesa consegue restabelecer a frente. O inimigo que penetrara no quadrado português é cercado, submerge ante a enorme superioridade do número de lanças, besteiros e peões que o envolvem e é esmagado.

Quinhentos castelhanos conseguem escapar ao envolvimento, vêm ao encontro da reserva do seu exército ainda não completamente organizada.

Contra-ataque de Nuno Alvares Pereira com o que resta da 1ª linha portuguesa, 2300 homens. Exploração do sucesso até ao trem do inimigo. A perseguição é feita a cavalo.

Os ginetes de Castela tentam um ataque sobre a retaguarda do quadrado português mas são repelidos.

O pânico gera-se entre os castelhanos: de um lado entre os cavaleiros apeados da 1ª linha, que recuam; do outro, no seio das unidades mais atrasadas na coluna de marcha e que só agora se aproximavam da frente. O dispositivo castelhano não foi restabelecido. Os castelhanos fogem desordenadamente em todas as direcções, a cavalo e a pé.

O rei de Castela foge a caminho de Santarém.

Os ginetes aguardam a noite para, a coberto dela, retirarem em segurança. Juntam-se-lhe mais de 1000 homens a cavalo.

A população rura

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115900 | artur41 | 05 abr 2006 18:53 | Em resposta a: #115888

(Continuação)

"...da infantaria. Estava ligeiramente armada e equipada.

A peonagem da retaguarda sob o comando de D. João I (que combateu a pé) teve papel decisivo no aniquilamento da vanguarda castelhana que havia penetrado no quadrado português.

Embora tenha sido possível que os oficiais ingleses presentes em Aljubarrota tenham aconselhado a execução da fortificação de campanha, o certo é que já em 1384 o Condestável, acampado junto a Estremoz, mandara «abrir trincheiras e construir defesas à volta do arraial». Deve, portanto, considerar-se que a conjugação do dispositivo das tropas com as obras de fortificação de campanha era já uma aquisição da arte militar portuguesa antes de Aljubarrota.

Depois de Aljubarrota, as praças fortes e povoações ocupadas por partidários do rei de Castela entregaram-se quase todas.

A esquadra castelhana que pairava diante de Lisboa, aguardando a chegada do exército, parte, levando vários fidalgos portugueses, entre os quais alguns que desempenhavam os cargos de Alcaides de castelos ao serviço do inimigo.

A vitória de Aljubarrota representou uma viragem decisiva na guerra contra Castela, que se prolongou, entremeada de combates e de tréguas, até 1411.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A batalha de Aljubarrota foi uma expressão concentrada das características políticas, socioeconómicas, militares, morais, da Revolução de 1383-85.

Em Aljubarrota esteve bem patente a luta pela independência nacional empreendida pela burguesia, pelas classes populares e por alguns nobres patriotas.

Esteve patente a traição a Portugal pela classe dominante de então, a nobreza territorial e latifundiária, que não hesita, para defender as suas posições privilegiadas, a sua riqueza, em pedir o auxílio da nobreza castelhana, do estrangeiro, comprometendo de modo decisivo a independência da sua Pátria.

No exército castelhano vinham, à frente, os maiores senhores da nobreza portuguesa. E foram precisamente estes que, com o maior desprezo pelo exército português, mais incitaram o rei de Castela a dar batalha.

Em Aljubarrota esteve, também, patente a luta contra a opressão feudal: os humildes componentes do exército português viam, diante de si, nos nobres traidores que estavam com o rei de Castela, os mesmos que os oprimiam, exploravam e violentavam, havia gerações e gerações.

A batalha de Aljubarrota é o momento mais alto da arte militar de Nuno Álvares Pereira e dos seus companheiros, dos chefes militares da Revolução de 1383-85, uns deles pequenos nobres, outros de origem plebeia (burgueses do campo e da cidade).

Uma arte militar que tinha uma grande inspiração das lutas populares, que por todo o Portugal eclodiram a partir de Dezembro de 1383, uma arte militar que, fundamentalmente, era a maneira de fazer a guerra das classes sociais ascendentes contra o poder feudal em decadência.

Aljubarrota é o confronto entre a infantaria portuguesa, de pobre gente, dos ventres ao sol e a aristocrática cavalaria feudal. Aljubarrota impôs definitivamente, entre nós, o triunfo da infantaria sobre a cavalaria medieval (por esta razão o dia 14 de Agosto foi consagrado como o dia da Infantaria Portuguesa).

A importância da consciência da justiça da guerra está bem patente no moral das tropas portuguesas, no seu espírito de sacrifício, na serenidade de que deram provas diante de tão grande número de inimigos, bem montados e armados.

A justiça da guerra que os portugueses faziam, alicerce da unidade entre o povo e o exército está patente ainda na determinação de que as populações rurais deram provas ao perseguirem e aniquilarem os fugitivos do exército castelhano, incluindo os traidores portugueses que com ele tinham vindo a Aljubarrota.

Deve também salientar-se a unidade e coesão entre os combatentes portugueses. Esta coesão e unidade tinham por base objectivos nacionais e sociais comuns; independência da Pátria, a defesa dos bens e haveres, a limitação dos privilégios dos nobres, a luta contra a opressão feudal.

A justiça desses objectivos comuns era também a base da unidade entre o comando e as tropas. A batalha de Aljubarrota é por todas as razões apontadas atrás, um marco dos maiores da História de Portugal.

Ela contém, como expressão concentrada que é da Revolução de 1383-85, lições de grande actualidade acerca da luta pela independência nacional, acerca da luta de classes e da guerra.



- x -

De todas estas lições uma das mais pertinentes, neste momento, é, sem dúvida, a da posição das classes dominantes face à defesa dos seus privilégios e à independência nacional.

Em 1383-85 a nobreza portuguesa procurou a intervenção da nobreza de Castela na política portuguesa, oferecendo ao rei castelhano o trono de Portugal e combatendo ao lado das forças invasoras.



- x -
A classe dominante de hoje, a burguesia monopolista e latifundiária foi profundamente abalada, no seu poder económico e político, depois do 25 de Abril pelas conquistas democráticas alcançadas pelo Povo português.

A política de restauração capitalista, de restauração dos privilégios da grande burguesia, conduzida pelos sucessivos governos constitucionais, tem sido uma política de subordinação, dia a dia mais grave, da política e da economia portuguesas ao grande capital internacional, à banca internacional privada, às empresas transnacionais, à CEE, à política diplomática e militar dos EUA e da NATO, etc.

Que significado tem esta política?

A grande burguesia procura no estrangeiro o apoio de que necessita para se manter no Poder, para restabelecer os seus antigos privilégios. Mas o apoio que procura e obtém junto dos meios imperialistas e da grande burguesia internacional faz correr graves riscos à capacidade de os portugueses decidirem da sua própria vida, do seu próprio presente e futuro.

Como a nobreza portuguesa em 1383-85, a grande burguesia monopolista dos nossos dias não hesita em comprometer a independência nacional à restauração, conservação e reforço dos seus interesses de classe, que são o seu enriquecimento e o seu domínio da sociedade portuguesa, tendo por base a opressão e a exploração das mais amplas camadas do nosso povo, ou seja, das camadas não monopolistas.

Hoje, são a classe operária, os trabalhadores, as camadas não monopolistas da nossa população os legítimos herdeiros da tradição patriótica dos burgueses, dos mesteirais, dos camponeses sem terra, dos assalariados que lutaram pela independência da nossa Pátria contra a classe dominante do seu tempo, a nobreza de Portugal e de Castela, e venceram.

Bibliografia


Crónica de D. João I, Ferrão Lopes.

História do Exército Português, Ferreira Martins.

Portugal Militar, Carlos Selvagem.

Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão.

A Revolução de 1383, António Borges Coelho.

As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média, Álvaro Cunhal.

De Estremoz a Aljubarrota, Augusto Botelho da Costa Veiga.

Aljubarrota, A. B. Costa Veiga, G. Mello de Matos e Afonso do Paço.

A Evolução Económica de Portugal, Séculos -XII a XV, vol. XI, Armando de Castro.

História Económica de Portugal, II vol., Armando de Castro.

Aljubarrota Dissecada, Frederico Alcide de Oliveira.

Os esquemas dos dispositivos são os propostos por A. de Oliveira em «Aljubarrota Dissecada»."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115906 | Ricardo de Oliveira | 05 abr 2006 20:42 | Em resposta a: #115900

Ganhamos muitas batalhas e perdemos muitas outras ao longo da nossa história.

No inventário da história ganhamos muito mais do que perdemos !

Mas se tivéssemos perdido essa batalha certamente não estaríamos hoje aqui escrevendo nessa língua.

É a Mãe de Todas as Batalhas da Língua !

Enquanto houver língua portuguesa haverá rumores de Aljubarrota !

Saudações
Ricardo

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115958 | artur41 | 06 abr 2006 11:17 | Em resposta a: #115906

Caro Ricardo,


Concordo consigo. Aljubarrota constituí um "algo" que se tem que preservar: a Língua. Faz-me impressão quando ouço e vejo determinadas pessoas a ostracizá-la; não é raro, não havendo necessidade, fazerem-se comunicações em Inglês, p.e., em certas "Conferências Internacionais"!

Convido-o a dar a sua opinião sobre a temática em questão, agradecendo desde já a sua resposta.


Saudações

Artur

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115976 | artur41 | 06 abr 2006 14:01 | Em resposta a: #115958

Caros Confrades,

Do «Portal da História", de Manuel Amaral, transcrevo (com a devida deferência) o seguinte:

"A Revolução de 1383 - 1385 segundo Veríssimo Serrão.

Joaquim Veríssimo Serrão critica a tese social, ou revolucionária, de explicação da crise, defendendo que «em 1383 não houve uma luta de classes, mas apenas o choque entre pessoas de vários estratos que tomaram posições ideológicas diferentes», e que se opunham pelo «ideal patriótico, pelo sentimento efectivo e por ódios ou interesses.» É sobretudo «testemunho claro de um sentimento nacional».
Este texto resume a tese nacionalista, quando afirma que «não houve classes a guerrearem-se, mas apenas portugueses que a incógnita do destino da Pátria cruelmente separou.»

Mas, interessantemente, propõe uma investigação dos documentos existentes nas Chancelarias Régias dos reis D. Pedro a D. João, para se poder ter uma hipótese explicativa definitiva sobre a crise de 1383 - 1385.

É o que será realizado por Maria José Pimenta Ferro Tavares.

História de Portugal,
Volume I: Estado, Pátria e Nação (1080-1415)
II Parte – O Sentimento Nacional (1300-1415

A crise de 1383-1385
Como deve encarar-se a profunda alteração política e social que marcou o período compreendido entre a morte de D. Fernando e a elevação de João I ao trono? Qual o verdadeiro carácter dessa crise no quadro da história nacional?

Com base na admirável reconstituição de Fernão Lopes, posterior de meio século aos acontecimentos, tem-se procurado uma explicação social para essa grande viragem da nossa história. Se a tradição reduz a crise a um simples movimento de carácter popular, há quem veja nela o termo de um longo processo de desagregação da nossa sociedade e, ainda, quem a considere o exemplo marcante da luta de classes que criou novas estruturas ao País. O fundamento patriótico não é dado como suficiente para avaliar em toda a sua extensão um acontecimento que, mais do que a aurora de uma nova dinastia, teria dado origem à «septima hidade do Mundo» no dizer do cronista:

fazemos aqui a septima hidade; na quall se levantou outro murado novo, e nova geeraçom de gentes; porque filhos dhomees de tara baixa condiçom que nora compre de dizer, per seu boom seruiço e trabalho, neste tempo forom feitos cavalleiros, chamandosse logo de novas linhagees e apellidos. Outros se apegarom aas antigas fidallguias, de que ja nora era memoria, de guisa que per dignidades e homrras e offiçios do rreino em que os este Senhor seemdo Meestre, e depois que foi Rei, pos, montarom tanto ao deamte, que seus desçendentes oje em dia se chamam doões, e som theudos em gram conta. E assi como o Filho de Deos chamou os seus Apostolos, dizendo que os faria pescadores dos homees, assim muitos destes que o Meestre acreçemtou, pescarom tanto pera ssi per seu grande e homrroso estado, que taaes ouve hi que tragíam comthinuadamente comssigo vinte e tricota de cavallo; e na guerra que sse seguio os acompanhavom trezentas e quatrocentas lanças e alguüs fidallgos de linhagem 161,

Para a compreensão da crise importa distinguir entre as razões que a justificam e as consequências a que deu lugar. O seu movimento durou apenas 16 meses e teve forçosamente causas políticas, económicas e sociais. Tudo o que se passa depois da elevação do novo monarca e que ressalta da última parte do testemunho do cronista é a explosão de um processo que toma outras variantes e já não corresponde ao motor do grande movimento. Sucede que a explicação da crise de 1383-1385 se coloca muitas vezes para além do seu quadro temporal, o que falseia a análise histórica, pois confundem-se os seus móbiles e aproveitamento 162.
Deve-se a António Sérgio uma nova interpretação sobre a crise. As origens desta mergulhavam no abalo económico provocado pela grande peste de 1348, na fuga de populações rurais para as cidades e no desemprego que então ocorreu no mundo agrícola. Os lavradores e «donos das herdades» procuravam lutar contra a falta de mão-de-obra, forçando os serviçais em dificuldade a fixar-se nos campos e a receber os mesmos salários. Assim se criou uma situação de conflito que veio a eclodir com a morte de D. Fernando, quando os burgueses de Lisboa e Porto aproveitaram o descontentamento para financiar a revolta e para modificar o quadro estrutural do País 163.

A hipótese de Sérgio é difícil de manter na sua ligação à «grande pestenença» e ao papel da burguesia, que as fontes coevas deixam no silêncio. Data das Cortes de 1372 a última referência conhecida às sequelas da epidemia. O mal-estar das populações vinha sobretudo das guerras com Castela que causaram um profundo desgaste nas energias do País. Também a população de Lisboa sofreu, em 1373, a ocupação castelhana durante três meses, e nove anos mais tarde a dos Ingleses, ambas causando à capital os maiores prejuízos e vexames. As razões da crise nacional mergulham, pois, na política de D. Fernando, tanto a externa, que foi desastrosa, como a interna, em que o comportamento da rainha concitou os maiores ódios entre a população. Se o perigo dinástico tivesse ocorrido dez anos mais cedo, não faltavam já as condições para idêntico desfecho; apenas que havia então um rei e a legalidade não estava em perigo. O quadro político tem assim uma importância fundamental na crise da Independência, pelo que «as origens desta encontram-se no reinado de D. Fernando» (Marcello Caetano).

As carências do mundo agrícola tinham evidentes reflexos na vida urbana, mas sempre as houve em anos de crise e não foram motivo bastante para a eclosão de um movimento social. Como justificar também que houvesse uma ambição dos povos em hostilizar os «senhores feudais» ou em se apoderar dos bens dos «homens honrados» e proprietários terrenais? 164 Se tal aconteceu com os adeptos do partido castelhano, não consta que tenham perdido os seus bens móveis e de raiz os que seguiram a causa do Mestre ou esperaram, para o fazer, o desenvolvimento da crise. A grande clivagem deu-se com a posição que cada um tomou no pleito dinástico, bastando ela para definir o futuro em termos de pessoas e bens.

Em 1383 não houve uma luta de classes, mas apenas o choque entre pessoas de vários estratos que tomaram posições ideológicas diferentes. Não se poderá mais repetir que a nobreza e o clero seguiram a primeira facção e o povo inteiro a segunda. Tão-pouco o confronto se deu entre abastados e desfavorecidos, porque no seio dos grupos sociais e das famílias houve terríveis divisões perante o magno problema que se punha à consciência da Nação. Duas páginas de Fernão Lopes elucidam a tal respeito:

Quamta descordamça pemssaaes que era de pais com filhos, e de irmaãos com irmaãos, e de molheres com os maridos! A ne huü era ouvida rrazom nem escusa, que por sua parte dar quisesse; mas como huú fallava: E Foaão delles he, nom avia cousa que lhe desse vida, nem justiça que ho livrasse de suas maãos; e isto era espeçiallmente comtra os melhores e mais homrrados que avia nos logares; dos quaaes muitos forom postos em gramde cajom de morte, e rroubados de quamto aviam 165.
E ainda com maior vigor dramático:
E das fortellezas que tiinham voz por Castella, sahiam os alcaides portugueeses a fazer gramdes roubos e cavallgadas nos termos dos que tiinham a parte do Meestre, premdemdo e rroubando e matamdo em elles, como se lho devessem per contrairos mereçimentos; assi que os que deviam seer seus deffensores, e os livrar das maãos dos emmigos, aquelles os matavam e perseguiam, husamdo comtra eles de toda cruelldade. Oo que forte cousa e mortall guerra de veer, huús Portugueses, quererem destruir os outros! e aquelles que huú vemtre geerou e huüa terra deu criamento, desejarem de sse matar de voomtade, e esparger o samgue de seus divedos e paremtes! 166
Houve conflitos de vizinhança regional que encontraram então o momento propício para o deflagrar de paixões abertas ou veladas. Bastava que um alcaide tomasse voz pelo rei de Castela e que uma terra próxima se mantivesse no apego ao Mestre de Avis. Elucidativo é o caso de Borba e Vila Viçosa, estudado por Fernando Castelo-Branco, em que os dois castelos mantiveram escaramuças nos campos vizinhos, tendo procurado Nuno Álvares conquistar a segunda e mais valiosa povoação 167. Não deixa de ser expressivo o caso de Garcia Rodrigues Taborda, escudeiro e alcaide de Leiria, que recebeu o castelo de Porto de Mós, com as suas rendas, direitos e foros 168. Em outros pontos do Reino se passaria o mesmo, numa luta que não apenas dividiu as populações, mas também as próprias famílias.
É assim que o livro 1 ° da chancelaria régia apresenta o caso de filhos que receberam os bens dos seus progenitores «que andavam em deserviço destes regnos e senhor», e de irmãos e familiares por completo desavindos. Sancho Gomes do Avelar, que esteve na defesa de Lisboa, obteve a Quinta de Marim, no termo de Faro, e o castelo e lugar de Cascais que seu pai Gomes Lourenço do Avelar recebera de D. Fernando 169; a Gonçalo Vasques Carregueiro couberam os bens de Senhorinha Afonso, sua madrasta «por quanto steve é terra de seus imigos em deserviço deste regno e senhor» 170; o nobre D. Pedro de Castro recebeu os castelos, terras e coutos que pertenciam a seu pai D. Álvaro Pires de Castro 171; João Lourenço da Cunha, antigo marido de D. Leonor Teles, teve uma casa de mestre Cochicho, na freguesia de São Nicolau em Lisboa, e outras de Afonso Martins, antigo escrivão de D. Fernando e genro de «Palha Vãa», em vários pontos do Reino 172; Gomes Garcia de Foios dispôs da fortuna de seus irmãos Gomes Mendes e Álvaro Botelho, na vila de Arronches, «por seerem em consentimentos de se dar a dita villa a seus inimigos» 173; Álvaro Fernandes Turrichão, cavaleiro de Sant'Iago teve os bens de seu pai Fernão Peres Turrichão, que foram confiscados pela coroa 174.

Poderiam multiplicar-se os exemplos para demonstrar que, enquanto não se proceder a uma análise cuidada do primeiro livro da chancelaria do monarca, as hipóteses explicativas da crise de 1383-1385 têm de avançar-se com cautela. No grupo fiel ao Mestre de Avis não houve apenas a «arraia miuda» de Lisboa, Porto e dos principais lugares. Como já demonstrou o Doutor Francisco José Caeiro, o conceito de povo possuía uma conotação mais ampla, abrangendo os elementos do corpo municipal (cavaleiros, peões, mesteirais), assim como os trabalhadores agrícolas e domésticos, vivendo ou não com os respectivos patrões 175. Não houve classes a guerrearem-se, mas apenas portugueses que a incógnita do destino da Pátria cruelmente separou: os que consideravam legítimo, à face do Direito, obedecera D. Beatriz ou não viam que a «legal» submissão a Castela pusesse em causa a Independência; e os que, num primário impulso de consciência nacional, sentiam a ameaça que pairava sobre o Reino.

Não é possível documentar a participação da burguesia, como António Sérgio pretendeu fazer. O cronista fala de um João Ramalho, «mercador do Porto, bem rico e mui atrevudo no mar» 176, mas o exemplo não excede o quadro da adesão pessoal. A chancelaria refere um João da Veiga, mercador, a quem o Mestre deu em foro umas casas na Rua Nova de Lisboa, que poderia transmitir por morte a duas pessosa, por 100 libras anuais 177. Mas o caso mais expressivo respeita a Álvaro Pais, de que não se conhece qualquer mercê, o que significa que o velho chanceler e inspirador da morte do Andeiro ou foi ultrapassado pela crise ou entretanto faleceu. Que houvesse pessoas que colocassem os seus bens à disposição do Mestre de Avis, aceita-se; mas um movimento concertado da alta burguesia não é possível de provar com os dados de que o investigador ainda dispõe.

Desde o início do cerco que o Mestre premiou muitos dos seus criados e escudeiros, assim como gente dos mesteres, com bens de adeptos de Castela ou de pessoas refugiadas naquele reino. Teve em conta os serviços de Rui Pereira, pois concedeu a sua viúva, Violante Lopes, e aos herdeiros umas casas que possuía junto da porta da Alfândega e na Rua do Inferno em Lisboa 178. O tanoeiro Afonso Eanes Penedo foi nomeado vassalo e alcaide de Lisboa, obtendo mais tarde o reguengo de Alconena, no termo da mesma cidade 179. O Mestre também não esqueceu a gente do Porto que o havia auxiliado no socorro a Lisboa. Foi assim que dois mareantes daquela cidade, Salvador Domingues, mestre da nau Palombeta, e Nicolau Domingues, mestre da barca Santa Maria, receberam a título de doação hereditária umas casas na Rua das Congostas; o segundo era também mestre da barca de um Gil Vicente, pelo que teve uns pardieiros situados na mesma rua 180. Curioso ainda referir que o almoxarife do Porto, Lopo Fernandes, perdeu em favor da coroa todos os seus bens móveis e de raiz, que vieram depois a ser pertença de Vasco Martins da Cunha 181; e que Lourenço Eanes recebeu umas casas «a par do atenazem» do Porto, em que morava Pedro Geraldes, tendeiro, «para que dellas use como de cousa sua propria» 182.

É no clero que se torna mais difícil apurar a actuação dos seus membros no desenrolar da crise, pois muitos nomes citados pelo cronista não constam da chancelaria régia. Tem-se notícia de padres e clérigos que receberam apresentações e outras mercês, sobretudo nas terras da província, pelo contributo que deram à causa nacional. O arcebispo de Braga, D. Lourenço, recebeu o senhorio e a alcaidaria da Lourinhã e seu termo, assim como os bens que Gonçalo Vasques de Azevedo possuía na mesma vila; e Fernando Afonso, clérigo, foi apresentado na igreja de Santa Ovaia daquele arcebispado 183.

Para quem tome à letra o testemunho de Fernão Lopes, de que surgiu uma outra nobreza à custa do património da que se refugiou em Castela, importa esclarecer as condições em que se formou o novo estrato social. Nem todos os bens foram sujeitos a confisco, na medida em que houve uma transferência para outros membros da família, quase sempre os filhos segundos, que abraçaram o partido do Mestre. Este não se mostrou avaro em recompensar os feitos de D. Pedro de Castro, Álvaro Pires Cabral, Gonçalo Vasques Coutinho, Vasco Martins da Cunha, João, Mem e Rui Mendes de Vasconcelos, não referindo ainda o condestável do Reino, que se viu largamente contemplado. As casas nobres refizeram-se em muitos casos, com o património acrescido, na pessoa de outros familiares, o que não invalida que uma pequena nobreza tenha igualmente surgido com base nas doações recebidas. Mas a sua quase totalidade foi posterior à Batalha de Aljubarrota e não se relaciona com a crise. O mesmo sucedeu com a elevação da classe mesteiral. Era já o monarca quem, na atribuição das suas prerrogativas, estava a moldar a nova sociedade a que o cronista se refere.

A revolução teve o valioso apoio dos docentes e escolares da Universidade, que não abandonaram o Mestre durante o longo assédio. Não o esqueceu o defensor do Reino, que em 3 de Outubro de 1384 assinou vários documentos a confirmar os privilégios e liberdades do Estudo Geral: determinando que este ficasse para sempre em Lisboa; autorizando os doutores, licenciados e bacharéis em Direito Civil e Canónico a exercerem a advocacia; renovando o estatuto de que ninguém podia ensinar sem prévio exame na Universidade; e restituindo a esta o direito a rendas de algumas igrejas 184. Essas medidas apenas se compreendem como recompensa do apoio dispensado pela instituição nas horas difíceis que Lisboa acabara de viver. Marcello Caetano pôde assim sustentar que a Universidade foi «o centro intelectual da Revolução» 185. E foram ainda doutores legistas, como João das Regras e Martim Afonso, o letrado Gil d'Ossem, o bacharel João Afonso de Azambuja e outros docentes e escolares que ajudaram a fundamentar os direitos do candidato que as Cortes de 1385 vieram a elevar ao trono.

Repete-se que a crise de 1383, sendo de carácter nacional, apenas em torno de pessoas e ideias tomou uma feição social. O choque não foi de classes antagónicas, mas de homens e grupos que se opunham pelo ideal patriótico, pelo sentimento afectivo e por ódios ou interesses. Que o povo das cidades e campos fosse em maior número do partido do Mestre não causa espanto, na medida em que fora o grande sacrificado das guerras de D. Fernando e a parte da Nação que melhor sentia, pela dureza do seu mister e pelo espectro da fome e do desemprego, a necessidade de uma vida estável. Mas a sua participação fez-se por um espírito de ligação à terra e de raiva contra o invasor que o partido de D. Beatriz, apesar da sua base legalista, para muitos representava. Havia uma real consciência do perigo, como o próprio Nuno Álvares confessou, antes de seguir ao encontro do Mestre de Avis: «Amigos, eu vos quero dizer hna cousa: eu vejo amte mym hü poço muito gramde, e muito furado e escuro, o qual quem em ele emtrar, será gramde marauilha escapar: porem eu me não poso ter em nenhua maneira que nora emtre em ele.» 186

Testemunho claro de um sentimento nacional que a guerra contra Castela e o perigo que ela permitiu vencer acabou por transformar em consciência de um povo.

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161 Fernão Lopes, Crónica de D. João I, ed. Prefaciada por António Sérgio, vol. I, Porto, 1945, cap. CLXIII, p. 350.
162 São de aproveitar muitas sugestões de Fernando Castelo-Branco, «Aspectos e problemas da crise de 1383», in Anais da Academia Portuguesa da História, II série, vol. XIX, Lisboa, 1970, pp. 11-26.
163 Id., ibid., vol. I, prefácio, pp. XI-XL. «Sobre a revolta de 1383-1385», in Ensaios, t. VI, Lisboa, 1946, pp. 153-204.
164 Como defendem Joel Serrão, O Carácter Social da Revolução de 1383, Lisboa, 1946. António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Lisboa, 1965.
165 Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. I,, cap. CLXVI, p. 94.
166 Id., ibid., vol. I, cap. LXVIII, p. 134.
167 Fernando Castelo-Branco, «Borba e Vila Viçosa, na crise de 1383», in Revista Portuguesa de História, t. XIV, Coimbra, 1970, pp. 305-317.
168 Lisboa, 10 de Junho de 1384. A. N. T. T., livro 1, fol. 49.
169 Lisboa, 19 e 20 de Março de 1384, A. N. T. T., livro 1, fols. 2 e 43.
170 Lisboa, 8 de Outubro de 1384. Id., livro 1, fol. 64.
171 Alenquer, 15 de Novembro de 1384. Id., livro 1, fol. 66.
172 Lisboa, 18 a 20 de Junho de 1384. Id., livro 1, fols. 15 e 16 v.°
173 Santarém, 26 de Agosto de 1385. Id., livro 1, fol. 90.
174 Torres Vedras, 12 de Janeiro de 1385. Id., livro 1, fol. 75.
175 «Móbeis do Povo Português na Revolução de 1383-1385», in Anais da Academia Portuguesa da História, II série, vol. XXII, Lisboa, 1973, pp. 11-12.
176 Crónica de D. João I, vol. I, cap. CXXXI, pp. 256-257.
177 Lisboa, 7 de Setembro de 1384. A. N. T. T., Chancelaria de D. João I, livro 1, fol. 55.
178 Lisboa, 14 de Outubro de 1384. Id., ibid., livro 1, fol. 74.
179 Santarém, 28 de Agosto de 1385. Id., ibid., livro 1, fol. 89 v.°
180 Lisboa, 20 de Agosto de 1384. Id., ibid., livro 1, fol. 26. Porto, 29 de Abril de 1385. Id., ibid., livro 1, fol. 103.
181 Lisboa, 3 de Outubro de 1384. Id., ibid., livro 1, fol. 48 v.°
182 Lisboa, 6 de Outubro de 1384. Id, ibid., livro 1, fol. 53 v.°
183 Lisboa, 10 de Outubro de 1384. Id., ibid., livro 1, fol. 54 v.° Arraial de Chaves, 7 de Fevereiro de 1385. Id., ibid., livro 1, fol. 155.
184 A. Moreira de Sá, Chartularium Universitatis Portugalensis, vol. II (1377-1408), Lisboa, 1968, pp. 116-123, docs. 375-380.
185 «O concelho de Lisboa na crise de 1383-1385», in Anais da Academia Portuguesa da História, II série, vol. IV, Lisboa, 1953, p. 200.
186 Chronicas dos Senhores Reis de Portugal por Christovão Rodrigues Acenheiro, Collecção de Inéditos de História Portuguesa, t. V, Lisboa, 1926, p. 177.

Fonte:
Joaquim Veríssimo Serrão,
História de Portugal, Volume I: Estado, Pátria e Nação (1080 - 1415),
2.ª ed., Lisboa, Verbo, 1978 (1.ª edição, 1976)
páginas 298 a 304."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115977 | Ricardo de Oliveira | 06 abr 2006 14:04 | Em resposta a: #115958

Infelizmente alguns falantes do castelhano procuram sempre menosprezar, desconsiderar e esquecer maldosamente a nossa língua. Mentem dizendo que o português é um dialeto do "espanhol", no caso o castelhano deles. Mentem sobre a história desavergonhadamente e sem o mínimo escrúpulo.
Somos uma das maiores línguas mundiais em número e também em participação na internet (tenho dados atualizados sobre as proporções de cada país e língua).
Eu escrevo sempre em português em qualquer Forum Ibérico ou Latino Americano em que o Brasil e Portugal participem. Escrevi há pouco em outro forum mundial, ao ser provocado por alguns castelhanohablantes (sempre escrevo em português), que o português não é galego, não é catalão, não é basco, não é asteca, não é inca e afixei a imagem de Aljubarrota e de um Bandeirante para que se lembrem de nos respeitar !
Ficaram quietos !
Nessas horas é que a energia de Aljubarrota é renovada em nossos corações !

Um abraço
Ricardo

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115981 | artur41 | 06 abr 2006 14:27 | Em resposta a: #115977

É um facto. Faz muito bem!!


Renovado abraço

Artur

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115982 | camisao65 | 06 abr 2006 14:33 | Em resposta a: #115977

Caro Ricardo,

Não posso deixar de concordar a 100%


Abraços

Luís Camisão

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115983 | camisao65 | 06 abr 2006 14:35 | Em resposta a: #115976

Caro Primo,

Acho muito bem esta transcrição!
Ainda por cima, de uma Pessoa com créditos firmados, e um ilustre irmão do nosso amado moderador.

Abraço

Luís

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115984 | artur41 | 06 abr 2006 14:37 | Em resposta a: #115976

Caros Confrades,

Também do «Portal da História» transcrevo o seguinte:

"A Revolução de 1383 - 1385 segundo António Borges Coelho.

António Borges Coelho defende Fernão Lopes dos seus «detractores». E porque é que são «detractores» ? Porque «o que a muitos dói é o conteúdo revolucionário da crónica que é a história da primeira revolução burguesa nacional.»
O tom inquisitorial do prólogo é muito típico dos textos dos intelectuais comunistas desta época, logo a seguir ao 25 de Abril. Em 1985, 10 anos depois, durante as Jornadas de História Medieval, a postura de Borges Coelho será muito mais dialogante.

Porquê esta defesa tão apaixonada de Fernão Lopes ? Possivelmente porque, como Álvaro Cunhal tinha afirmado, «o testemunho de Fernão Lopes é uma contribuição decisiva para a compreensão do carácter de classe da revolução».

PRÓLOGO DA 2.ª EDIÇÃO

Podado o estilo da III Parte – O Mundo Contemporâneo, inchada com as longas palavras deste Prólogo e um apêndice, «A Revolução de 1383» inicia uma segunda viagem convocando novos leitores ao diálogo, rompendo o capuz de silêncio em que quiseram envolvê-la.

Mas o livro não quer falar de si próprio. Aproveita a oportunidade que os leitores lhe ofereceram para fazer um balanço da situação e levantar alguns problemas novos.

A – A VALIDADE DA CRÓNICA DE D. JOÃO I

1. Em que base se apoia «A Revolução de 1383»? No poço sem fundo em que mergulharam e beberam todos os comentadores: a Crónica de D. João I de Fernão Lopes. E não se envergonha do facto. Não tem complexos por isso. Quem desdenha da Crónica ou é tolo ou tem medo das cargas explosivas que transporta no seu ventre.

Mas o livro não enjeitou outras informações nem fugiu, muito menos, à contraprova documental. Embora não tivesse hibernado nos arquivos, utilizou os cinco livros da Chancelaria de D. João I conservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo; analisou numerosos documentos laboriosamente recolhidos por Silva Marques nos Descobrimentos Portugueses; por Gama Barros na História da Administração Pública em Portugal, por José Soares da Silva nas Memórias para a História...; por Caetano de Sousa na História Genealógica da Casa Real Portuguesa – Provas... E não só.

Bebeu ainda, contestando, nos diferentes autores que abordaram o que alguns ainda hoje designam, pudicamente e por hábito, como «crise». Cito, em especial, as Crónicas de Pedro Lopes de Ayala e Jean Froissart, A História da Sociedade em Portugal no século XV de Costa Lobo, As Lutas Sociais em Portugal na Idade Média de Álvaro Cunhal, a História da Cultura em Portugal de António José Saraiva, o prefácio à Crónica de D. João I de António Sérgio, O Carácter Social da Revolução de 1383 de Joel Serrão, etc.

2. Que confiança nos merece o texto de Fernão Lopes? Não haverá ingenuidade, cegueira até, em aceitar a sua validade quando não dispomos de uma edição crítica e alguns autores, como Oliveira Marques no Dicionário da História de Portugal, levantam reservas, sugerem partidarismo e subserviência e declaram mesmo - é o caso de Oliveira - que a Crónica é mais um romance histórico?

3. A Crónica de D. João I está aí. Resistiu ao perigo dos séculos, ao roubo dos cronistas desonestos, ao ataque dos seus detractores.

Que caminho seguir na abordagem crítica? Rejeitar, de antemão e em bloco, o testemunho medieval ou seguir o caminho inverso: aceitar que a Crónica ou outro texto vale enquanto não se provarem falsidades, esta e aquela falsidade, enquanto não se firmarem falsidades em número significativo, persistindo, apesar disso, como índice, como referência?

Tendo em mente a raridade das fontes testemunhais na época medieval, com todas as cautelas e reservas, trilho sem hipocrisia o segundo caminho. Antes -de uma crítica mais profunda e tendo em conta o apreço que lhe dedicaram gerações de investigadores, a Crónica vale até prova em contrário e, sempre, como documento ideológico e como documento histórico.

4. Existiu Fernão Lopes? Escreveu ele a Crónica de D. João I ?

Testemunhos de contemporâneos seus e documentos autênticos provam sem margem para dúvidas que Lopes foi tabelião geral do reino, cronista, escrivão da puridade do infante D. Fernando, escrivão da puridade do infante D. João (1), escudeiro de D. Duarte em cujo serviço se deslocou a Aragão (2) , servidor do rei Afonso V. Residiu em Lisboa numa casa sua perto da igreja de S. Miguel em Alfama.

Quanto à autoria da crónica, ninguém a põe em dúvida. Em 1434 D. Duarte encarrega-o de «pôr em crónica as história dos reis que antigamente foram em Portugal e os feitos do rei D. João». As cópias mais antigas do livro que nos restam são dois manuscritos do século XVII. Seguem provavelmente o original ou cópias do século XV.

5. António José Saraiva, admirador entusiasta de Fernão Lopes a quem dedica um estudo pioneiro, escreveu, no entanto, que o historiador, funcionário da Casa de Avis, relatou os acontecimentos revolucionários de maneira favorável à nova dinastia, favorável à dinastia que o sustentava. O ataque à partidarite do cronista generalizou-se. Oliveira Marques fala, por exemplo, em subserviência de valido do Paço.

Contestamos

a) Quantos funcionários públicos tomaram atitudes, por actos e escritos, contra os governos de quem recebiam o salário?

b) O retrato do fundador da dinastia de Avis – porventura o mais espantoso do romance e da pintura portuguesas nada tem de laudatório, de escrito de conveniência e, muito menos, de prosa mercenária. Não esconde as hesitações, o medo, as cóleras, a inteligência vulgar do chefe nominal da revolução. Não hesita em colocá-lo na posição mais insólita para púrpura de rei: de joelhos, pedindo perdão a Leonor Teles pela morte do Andeiro ou emborcando uma tigela de mijo para incitar um seu amigo, ferido, a fazer o mesmo e se salvar.

c) Há de facto uma figura com a qual Fernão Lopes não se sente à vontade. Essa figura é a de Nuno Álvares Pereira. Aqui a prosa esborrata-se em iluminura, doura em panegírico mas a verdade ilumina-lhe as rugas do rosto, estala-lhe o óleo. Era dos Braganças – e não da família real, isto é, do Regente Pedro – que vinha, na época em que Fernão Lopes escrevia, o perigo fundamental. Além disso, como escrivão da puridade do infante D. João e servidor, portanto, da neta estremecida de Nuno Álvares, mulher daquele, Fernão Lopes sentia, pois, natural constrangimento (constrangimento de servidor, de servidor amigo, constrangimento de homem-escritor-vassalo-amigo?)

d) O discurso de João das Regras não engana ninguém acerca da legitimidade de João, mestre de Avis, o tal «rei eleito e quase parlamentar, nem Fernão Lopes quer enganar com ele. Conta com verdade e naturalmente o que se passou: A nobreza da Beira prefere João, filho de Inês de Castro e é ameaçada à espada por Nuno Álvares. Por sua vez, os procuradores dos concelhos dirigem-se às Cortes de Coimbra já com instrumentos e poderes para elegerem rei o mestre de Avis. João das Regras encarrega-se tão só de enquadrar a eleição revolucionária numa legitimidade jurídica: feita a «demonstração» de que o trono se encontrava vago, o mestre surgia, pois, como o rei legítimo e natural dos portugueses.

e) Como todos os historiadores, como todos nós, Fernão Lopes não é inocente, toma partido, mas sem comprometer a verdade a esse partido. O seu partido é o da cidade de Lisboa, é o da arraia-miúda, o dos ventres ao sol, o do bom Portugal e, também, o de João, mestre de Avis, chefe eleito, rei de boa memória dos revolucionários de Aljubarrota. Foi por tomar este partido sem comprometer a verdade; foi por se ter situado neste horizonte social que o génio de Fernão Lopes ultrapassou o seu tempo e não mais se apagará.

6. Na década de 60 formularam a Fernão Lopes uma acusação considerada grave: teria faltado à verdade na descrição da batalha de Aljubarrota. Os arqueólogos identificaram no chão da batalha covas de lobo, abertas pelo exército português, covas de lobo que o cronista sorrateiramente teria deixado na sombra.

– Aqui del-rei que Fernão Lopes mente! Abaixo o romance histórico!

Confesso. Se esta acusação não abalou em nada a minha confiança, inclinou-me, porém, a aceitar que, aqui, Fernão Lopes se deixara arrastar pelo nacionalismo e, pelo menos, calara. Agora, ao escrever as linhas deste prólogo, procurei pôr à prova essa acusação que serviu de rastilho a todo um desacreditar, não das outras crónicas lopeanas, mas precisamente da Crónica de D. João I. Foram estes os resultados da devassa:

a) Comecei por ler Ayala. Que diabo, não é Ayala um combatente de Aljubarrota, castelhano e, para mais, chanceler-mor e cronista dos acontecimentos? Pois Ayala, como Fernão Lopes, ignora pura e simplesmente as covas de lobo que a arqueologia descobriu e a que aludia a carta do rei João de Castela a Múrcia. Porque não se acusa Pedro Lopes de Ayala e somente Fernão Lopes?

b) A descrição da batalha, feita pelo cronista castelhano, confirma, nos traços gerais, o relato do historiador português, ajustando-se até aos pequenos pormenores como o dos peões de Portugal encurralados e impedidos de fugir e outros.

c) Fernão Lopes desmente Ayala. Com razão. Em Aljubarrota não havia vales que impedissem os castelhanos de atacar as alas do exército português. Como se pode verificar «ali não havia melhoria de campo que os portugueses tivessem escolhido, nem montes nem vales que estorvassem seus contrários». «Tudo era campina igual sem nenhum estorvo a ambas as partes, a qual o trilhamento das bestas e passear dos homens tornou assim rasa e tão chã como plano rossio sem nenhuma erva.» Os ribeiros que ladeiam a charneca plana eram em Agosto, parece-nos, obstáculos irrisórios. Ayala esquece-os. A carta de João de Castela a Múrcia fala em arroios (desculpa evidente que não destrói o campo raso da batalha); fala num monte talhado até à altura da cintura; e numa cava que atingia a «garganta» de um homem... (3)

d) Afirmações de Ayala e de Lopes encerram, em minha opinião, a chave do enigma. Referindo-se aos cavaleiros espanhóis que vieram falar a Nuno Álvares antes da batalha, Ayala escreve: «catarom e avisaromse bien de la ordenanza que teniam los de Portugal.» (4) E noutro passo: «ou sairão daquela ordenança e vantagem que tomaram»... Por sua vez, Fernão Lopes: «a vantagem que os portugueses tinham era esta: quando a alva do dia começou a crescer, já el-rei tinha suas batalhas de todo ordenadas.» E noutro passo: «E se a eles mui mal ordenaram, como alguns por suou escusa escrevem, culpa de quantos bons aí vinham e de todos as estrangeiros que Pero Lopes gabou ao Conde (Nuno Álvares) que tão sabedores eram da guerra.» Concluo: Ayala e Fernão Lopes não referiram expressamente as covas de lobo porque elas estavam implicitamente contidas na ordenança das batalhas.

e) A existência das covas de lobo é também postulada por este facto, relatado por Lopes e só por ele: «E se em este passo achardes escrito que os castelhanos cortaram lanças e as fizeram mais curtas do que traziam, havei que é certo e não duvideis, porque muitos, cuidando de pelejar a cavalo, quando viram a batalha pé terra...»

Mesmo que tivesse calado, invalidava tal facto, numa vírgula, a Crónica de D. João I ?

As acusações, apontadas a Fernão Lopes, voltam-se contra os seus acusadores. O que a muitos dói é o conteúdo revolucionário da crónica que é a história da primeira revolução burguesa nacional.

7. A Crónica é testemunho. Como tal exige a comparação com testemunhos contraditórios; exige ouvir os porta-vozes dos partidos adversos. Ouçamos Pedro Lopes de Ayala, o capitão espanhol de Aljubarrota, o chanceler de João I de Castela. A descrição de Ayala, mais pobre, notarial, confirma, nas grandes linhas e nos pormenores, todo o relato do processo revolucionário: as broncas na aclamação de Beatriz; o levantamento popular de Lisboa com seus episódios; a fuga de Leonor; a entrada do rei de Castela pela Guarda; a aclamação do Mestre de Avis como Regedor e Defensor do Reino; os Atoleiros; o cerco de Coimbra; o cerco do Porto e a frota; os personagens e terras por Castela; o cerco de Lisboa e a peste; o cerco de Torres Vedras e a tentativa de assassinato do Mestre; o cerco de Elvas; a batalha de Trancoso; Aljubarrota, etc., etc.

Ayala teria, no entanto, sugerido dois factos incómodos que não constariam no relato de Fernão Lopes. Após a morte do rei Fernando, o mestre de Avis teria sido o primeiro, entre os grandes de Portugal, a escrever a João de Castela para entrar no reino. Verdade ou simples calúnia, como parece mais provável pelo contexto dos acontecimentos, em nada altera a verdade dos feitos relatados e o seu encadeamento.

Um outro facto, este grave: Fernão Lopes omitira que João, mestre de Avis, fora proclamado Regedor e Defensor do Reino por seu irmão, o infante João, filho de Inês de Castro. Muitas cidades e vilas e filhos de algo usariam mesmo um pendão em que, às quinas de Portugal, se juntava a imagem do infante em cadeias.

Como se pode ver, designadamente no Livro I da chancelaria de D. João I, conservado na Torre do Tombo, as cartas do Regente começavam desta maneira: «Dom João, pela graça de Deus filho do mui nobre rei dom Pedro, mestre de cavalaria da ordem de Avis, Regedor e Defensor dos reinos de Portugal e do Algarve, a quantos esta carta virem», etc. Se alguém mente ou é menos exacto não é Fernão Lopes. Aliás, com outro pormenor e verosimilhança, o cronista português informa-nos: à morte do rei Fernando, os povos recusaram-se a aclamar Beatriz e, numas terras, exclamavam: de quem for o reino, levá-lo-á; e noutras aclamavam o infante João; filho de Inês. E que os dois partidos continuaram no movimento revolucionário, embora o mestre não fosse regente por seu irmão, mostra-o ainda o historiador nas discussões que se travaram nas cortes de Coimbra de 1385.

8. Fernão Lopes trabalha como qualquer de nós. Procura as fontes escritas, critica-as, compara-as; recolhe as fontes orais, põe-as em confronto. Só depois constrói o fio condutor e dita. No apêndice final deste volume, o relato breve dos acontecimentos revolucionários, por nós respigado na obra lopeana, vai muitas vezes acompanhado do documento comprovativo. Entre os documentos usados por Fernão Lopes, lembramos aqui, ao acaso: o instrumento de eleição do mestre de Avis em Coimbra; o perdão ao mestre, já rei, por ter casado com Filipa de Lencastre sem dispensa do papa (como mestre era frade e sujeito ao celibato, embora tivesse já dois filhos de uma madre abadessa); documentos vários dos privilégios concedidos à cidade Lisboa e transcrição até ipsis verbis do elogio que o mestre rende aos serviços prestados pela cidade; documento instituindo a Casa dos 24, de que o próprio cronista, como tabelião-geral, passa treslado a pedido dos artesãos; documentos e tratados com a Inglaterra, etc., etc. Poucos personagens, mesmo os do último plano do tal «romance histórico», poderão escapar ao registo dos documentos ainda hoje existentes. Basta consultar os já publicados...

Ora se Fernão Lopes se baseia nos documentos, se nos fala dos seus processos de trabalho, se discute connosco as fontes, se pede a nossa opinião, o mesmo não fazem os seus detractores. Alguns houve já que entraram pelo caminho da falsificação para refutar Fernão Lopes. Um tal Infortunato falsificou infortunadamente um documento para provar que o almirante Lançarote Pessanha, justiçado pelo povo de Beja, inequivocamente justiçado, teria continuado a viver para refutar Fernão Lopes...

9. O historiador serve-se de relatos anteriores e transcreve-os. Cita, designadamente, Martim Afonso de Melo, Ayala, o dr. Christophorus... Onde começa Fernão Lopes e acabam os autores em que se fundamenta?

Ayala está ai à nossa disposição. E que nos mostra? Que Fernão Lopes se situa num outro plano como historiador, e também como estilista, e também como contador de histórias. Entre Ayala e Fernão Lopes, um abismo.

Quanto ao dr. Christophorus, fonte portuguesa principal, pelo que podemos avaliar dos discursos que Fernão Lopes conserva nalguns pontos, discursos mimosos em latim, parece-nos que o doutor se aproxima já da eloquência afectada que será o enlevo de Zurara.

10. A Crónica de D. João I, como qualquer outra obra escrita, constitui um todo e este possui uma coerente estrutura interna. Os factos, os planos, as interpretações integram-se, sem contradição, no seu todo; cabem sem contradição no contexto histórico.

Companheiros do rei João, de Gil Fernandes, de Nuno Álvares ou seus filhos viviam ainda, e garantiam, no mínimo, que a interpretação dos acontecimentos correspondia à de um grupo social decisivo.

Mas só um tolo pode imaginar que episódios como os da morte de Andeiro, o pedido de perdão à rainha e tantos outros se podem inventar a seco, sem um mínimo de base testemunhal ou documental.

11. Fernão Lopes inaugura, ao menos na história de Portugal, a histórias crítica. É vulgar considerá-lo o primeiro cronista do seu tempo, colocá-lo acima de Ayala, Froissart e outros. Como historiador, coloco-o também acima de Ibne Caldune, o grande pensador islâmico de raiz hispânica.

O mérito de chamar a atenção para o Prólogo da Crónica de D. João I e para a metodologia que ele encerra, cabe a António José Saraiva. Desmontemos esse pequeno texto e vejamos as regras que Fernão Lopes se propõe.

Baseado numa citação de. Cícero: «Uma parte de nós tem a terra, outra os parentes -não somos nados a nós mesmos» (não nos nascemos), o historiador aponta que esta relação ou, ainda nas suas palavras, «esta conformidade e natural inclinação» leva o historiador ou cronista a:

– favorecer os senhores em cuja mercê e terra vive;

– a não «racontarem direitamente» os feitos de uma terra aqueles que nela foram criados.

Esta natural inclinação provém, pois, de «não nos nascermos a nós mesmos», isto é, provém de sermos um produto, um resultado em que intervêm a terra, os parentes, a «semente do tempo da geração» (as qualidades inatas, portanto), a ânsia de «fama», etc.

A tarefa do historiador é, pois, extremamente complexa, de tal modo que «todo o nosso cuidado não basta para ordenar a nua verdade» (a verdade está sujeita. a uma ordenação, a uma estrutura, diríamos nós hoje).

O seu propósito é ordenar a nua e «simples» verdade; alcançar «clara certidão de verdade», deixando «o fingido louvor, não ignorando as coisas contrárias». A verdade ordena-se, exclui a mentira e o erro, envolve as coisas contrárias, persegue-se com trabalho até «não poder haver mais certidão».

O trabalho para a certidão da verdade tem regras

a) Consciência de que a terra, o senhor em cuja mercê se vive, os, parentes, a fama, «a semente no tempo da geração» arrastam o historiador para a «aformosentada mentira».

Por isso é necessário:

b) Consultar «velhas escrituras», «públicas escrituras de muitos cartórios», «em muitos lugares», mas «escrituras vestidas de fé» (crítica documental).

c) Consultar «desvairados autores». «Viu grandes volumes de livros» de diversas linguagens e terras (esteve pelo menos em Aragão).

d) «Não certificar cousa salvo de muitos aprovada.»

e) «Antes nos calaríamos a faltar à verdade.»

f) Há que fugir da formosura e novidade das palavras, entenda-se, dos discursos verborreicos e inchados.

Por tudo o que expusemos até aqui, torna-se claro que o historiador seguiu as regras metodológicas que se propôs com tão alta consciência crítica.

Sessenta anos volvidos sobre os acontecimentos revolucionários, temperado pela revolução de 1438, Fernão Lopes manuseia as fontes escritas – Crónica Geral de Espanha, Martim Afonso de Melo, Christophorus, Ayala, etc. Consulta documentos, inscrições, escrituras. Aponta os relatos contrários. Selecciona, compara, corrige, interpreta, anima, recria, delimita os grupos, estabelece as relações. Só depois dita em voz alta, por vezes com palavras que poderiam ficar gravadas no mármore.

Não é isto história crítica?

12. Jean Froissart confessa no prólogo das suas Crónicas, que o seu objectivo é registar «em memória perpétua» «as empresas de honra, as nobres aventuras e feitos de armas» «para encorajar outros a bem fazer». Talvez o livro «não seja tão correcto e ordenado como o assunto exige» «porque os feitos de armas, que tão caro custam àqueles que os fazem, devem ser lealmente atribuídos aqueles que aí assinalaram a sua proeza».

Froissart delimita assim o campo de classe da sua história, escrita por incumbência do seu «senhor, monsenhor Robert de Namur, senhor de Beaufort»: história de enaltecimento dos feitos de armas da nobreza senhorial, história onde a arraia-miúda só tem o lugar da humilhação.

Quanto às exigências e caminhos da investigação histórica: «todas as ciências são extraídas e compiladas de vários sábios; o que um não sabe, o outro sabe; e assim não há nada que não acabe por ser sabido ou longe ou perto...» Não se alcançou ainda o limiar da história crítica; continuamos presos às glosas das glosas dos autores medievais.

Também Ayala se propõe fornecer-nos «bons exemplos». Decide-se a escrever porque «a memória dos homens é mui fraca e não se pode recordar de todas as coisas que no tempo passado aconteceram». Entende, contudo, escrever «o mais verdadeiramente que puder do que vi, no qual não entendo dizer senão verdade». Para que tal aconteça toma as suas cautelas: onde não esteve, só aceita os factos que «souber por verdadeira relação de senhores e cavaleiros e outros dignos de fé e de crer, de quem o ouvi, e me deram testemunho»...

Nem Froissart nem Ayala nem mesmo Herculano se precaveram contra a tendência de «favorecer os senhores em cuja mercê vivem». A verdade que Ayala se propõe alcançar é a verdade dos nobres e cavaleiros ou dos testemunhos que têm a sua fé.

Froissart, Ayala procuravam agradar aos senhores; Fernão Lopes tomava partido pela arraia-miúda, pela cidade burguesa, marítima e mercantil de Lisboa e ridicularizava o espírito cavaleiresco e as espadeiradas dos fidalgos: «E posto que nós louvamos» fulano e fulano... «não entendais vós que eles sós defendiam as galés sem outrem pelejar por as defender...»

O que incomoda os teus detractores, Lopes, o que incomoda?

13. Vale a pena comparar a metodologia de Fernão Lopes com a de Alexandre Herculano, o monstro sagrado dos historiadores burgueses.

No volume I da sua História de Portugal afirma o grande historiador oitocentista: o «mister da história» é averiguar qual foi a existência das gerações que passaram»; o seu fim é a verdade.

O perigo principal que ameaça o historiador vem do patriotismo, «péssimo conselheiro», e que encarnava, exteriormente, ao tempo de Herculano, naqueles «para quem os séculos legitimam e santificam todo o género de fábulas».

«Quem se ocupar da história – escreve referindo-se ao método – há-de sepultar-se nos arquivos públicos e descobrir entre milhares de pergaminhos»... «Há-de avivar as inscrições, conhecer os cartórios particulares das catedrais, dos municípios e dos mosteiros; há-de ser paleógrafo, antiquário, viajante, bibliógrafo, tudo.»

Que diferença separa Herculano de Fernão Lopes? Não se situam ambos no plano da história crítica, assente no documento recolhido, criticado?

Na época de Herculano, a história anunciava, no entanto, uma viragem de plano. Ligada às outras ciências sociais, à sociologia e, sobretudo, à economia política, começava a instrumentalizar conceitos-base, comuns a outras ciências sociais.

Essa viragem para a história social é já legível em Herculano, quer na prática dos volumes VI, VII e VIII da sua História de Portugal e nalguns Opúsculos, quer na própria teoria: «O homem, assim colocado fora de todas as relações sociais, que lhe modificaram deste ou daquele modo o aspecto moral, podendo representar todas as épocas, pertencer a todos os tempos, tomar todas as fisionomias, nada representa, a nada pertence, nenhuma fisionomia tem» (Carta IV). Herculano tem também consciência de que a história social se opõe à história-batalha; «a história começou a ser coisa mais séria e grave do que a narração exclusiva de dois casamentos, quatro enterros e seis batalhas» (Opúsculos, tomo VI, p. 250).

Fernão Lopes inaugurou a história crítica como águia solitária no céu quatrocentista, sem a dependência de Herculano quando inaugura entre nós a história social. A superioridade de Fernão Lopes liga-se, quanto a nós, ao quadrante social com que se identifica: o povo de Lisboa, a arraia-miúda. Nunca ninguém, antes ou depois dele – os mais próximos são Gil Vicente e Fernão Mendes Pinto – se acercaram tanto das raízes, das classes que tudo sofrem, que tudo afeiçoam com as suas mãos e abarcam, por isso mesmo, um mais largo horizonte. E se ambos os historiadores puderam ver com os seus próprios olhos, porque participantes de duas revoluções – a de 1438 e a de 1832-1834 – os mecanismos sociais que a revolução desmanchava e punha a nu, Fernão Lopes não perde em lucidez: não é só o patriotismo (ou a terra) que cegam o historiador; é a semente, a fama; são os parentes, os senhores em cuja mercê vivem. Além disso, os grupos sociais é que fazem a história, a qual pouco se compadece com a moralidade herculana das pessoas.

Herculano escrevia quando, no horizonte da burguesia do século XIX, se definia agora, no outro extremo social, uma classe mais perigosa do que a velha nobreza. feudal. Essa classe era a classe operária, «coveiro histórico do capitalismo». Por isso, deixou nos gavetões da história matérias incómodas, como confessou de si próprio.

14. Os sublevados de 1383 ganharam a sua causa. Se a tivessem perdido, talvez conhecêssemos tão só chaparros com enforcados, talvez ouvíssemos somente as maldições do poder.

Mas ganharam. Por isso, a Crónica de D. João I é dedicada à narrativa e exaltação da gesta revolucionária. A prosa do cronista arde por Lisboa, pelos ventres ao sol, pelo bom Portugal e, à escala humana, essa chama jamais se apagará.

Chamam-lhe «cronista» numa voz que minimiza. Fernão Lopes é cronista, no sentido de que relata os fastos, os anais, mas principalmente no sentido de repórter das massas populares em seu movimento. Milhares de gritos reúnem-se num só e tremendo brado, numa nuvem de cólera erguida para o céu.

Cronista-repórter do povo de Lisboa, dos vilões de Caspirre, dos ovelheiros, dos comunais armados de estevas aguçadas e dos seus aviamentos, dificilmente encontrará paralelo a sua arte de compor os grandes planos e encadeá-los, o seu poder quase visual de evocar os movimentos colectivos, de encarnar numa figura ou brado toda uma torrente tumultuosa.

Fernão Lopes desafia os contadores de histórias. Os breves contarelos da Crónica de D. Pedro bastavam para o imortalizar. E que dizer do romance de amor e morte entre o infante João, filho de Inês, e Dona Maria, irmã de Leonor Teles? Numa frase Fernão Lopes sugere um ambiente, modela uma figura, enovela ateia das malhas amorosas, põe ao rubro a nossa emoção na chama de belíssimas imagens e vocábulos.

Que dizer do pensador, do filósofo? Mas não escreveu trabalhos teológico-filosóficos... Leitor de Aristóteles e de Cícero, exprime na sua obra uma nova concepção do mundo. No campo específico da criação filosófica, bastariam os Prólogos das Crónicas de D. Pedro e D. João I para o erguerem e individualizarem.

Em estatura, o historiador é, entre nós, o primeiro. Inaugura, de facto e em consciência, a história crítica, a história assente na metodologia científica moderna. A sua Crónica de D. João I continua como a obra, mais apaixonante de toda a cultura portuguesa.

Na sua filosofia da história, assinale-se:

A evolução dos grupos humanos não é um movimento anárquico e cego ou, como pretende Herculano, a materialização de um plano divino em que os motores são a liberdade e a desigualdade. Percorre a história todo um fio explicativo. São os homens, embora condicionados, que fazem a história.

O dinheiro é o nervo de todo o negócio. Quando um país é rico, o rei é rico. A atenção dispensada ao económico, designadamente a defesa da acumulação de tesouros e capital identificam a sua classe. E que dizer das páginas de táctica militar revolucionária?

Mas o mais espantoso é o prumo social com que, a par e passo, vai aferindo os acontecimentos colectivos. O historiador sente e sabe que há diferentes e antagónicos grupos sociais que surgem como os autores da sua história revolucionária. Continuamente nos informa: aqui intervêm os honrados, os melhores, ali nem são dos maiores nem dos mais pequenos; acolá é a arraia-miúda, os comunais; Álvaro Pais age com os seus aliados. Evidentemente, esta anotação situa-se ainda a um nível empírico. Nem poderia ser de outro modo.

Esta agudeza na visão da realidade social leva-o a escrever repetidamente que a revolução de 1383 inaugurou uma nova era, uma sétima idade. Alguns historiadores contemporâneos continuam a interpretar esta afirmação como sugestiva imagem literária. O horizonte de classe destes tais não lhes permite ver para além da, ponta do seu nariz conservado e conservador.

Vilão, isto é, homem de vila, isto é, povo, vilão até ao tutano. Pretender encontrar na sua obra um sentimento de oposição à burguesia é não compreender os seus escritos, é errar o seu papel na história da cultura, é não acertar com as estruturas sociais em que se integra. Como escritor dos vilões e, portanto, também do seu estrato dirigente, a burguesia (a do comércio, a dos mesteres, a da pesca, a agrícola), Fernão Lopes personifica a ascensão desta classe na sociedade portuguesa e europeia.

(...)

--------------------------------------------------------------------------------

(1) Documentos do Arquivo Histórica da Câmara Municipal de Lisboa, vol. I, p. 76.
(2) Monumenta Henricina, vol. III.
(3) Coleccion de Ias Cronicas de Castilla, t. II, apêndice.
(4) Coleccion de tas Cronicas de Castilla, t. II, p. 230.

Fonte:
António Borges Coelho,
A Revolução de 1383,
Lisboa, Seara Nova, «Seara Nova, 20», 1975,
(1.ª Ed., 1965)
páginas 11 a 26."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115986 | camisao65 | 06 abr 2006 14:48 | Em resposta a: #115984

Caro Primo,

Fora do tópico e apenas de relance, sabes que um tal José Maria de Araújo Camisão era filho de um Lázaro Moreira Landeiro Camisão, e irmão de um tal Amaro, sendo neto de um Lázaro Moreira Landeiro Camisão, e de uma tal Francisca, neta mais que legítima de uma tal de Luísa?
E mais não escrevo...pois já escrevi tudo!

Abraços

Luís

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José Maria de Araújo Camisão: off-topic

#115989 | artur41 | 06 abr 2006 15:16 | Em resposta a: #115986

Caro Luís,

Estás-te a referir a um irmão de Amaro José de Araújo Camisão, não é?
Os restantes identifico, nomeadamente «uma tal de Luísa». Espero que, em breve, surjam novidades.

Abraços

Artur

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115995 | artur41 | 06 abr 2006 16:42 | Em resposta a: #115984

Caros Confrades,

Do «Portal» eis o seguinte:

"A Revolução de 1383 - 1385 segundo António Sérgio (1).

António Sérgio defende que o que Fernão Lopes descreve na Crónica de D. João I é a luta de classes, causada pela Peste Negra de 1348, e que por isso a crise de 1383-1385 deve ser considerada uma «revolução burguesa».

Prefácio à Crónica de D. João I de Fernão Lopes.

Fernão Lopes, na Crónica de D. Fernando, transmite aos leitores a impressão que tinha de que após as guerras daquele monarca «nasceu outro mundo novo, muito contrário ao primeiro, passados os folgados anos do tempo que reinou seu pai» (cap. I) ; e na crónica do rei seguinte aventa a ideia de que uma nova idade se começou no tempo do Mestre de Avis (cap. CLXIII). O que mais se lhe impõe no primeiro período é a crise económico-social (cujos primórdios, ao que me quer parecer, passaram despercebidos ao seu espírito, só a notando na última fase - na da plena manifestação dos efeitos dela para os homens da corte e das cidades marítimas); e no segundo, a subida ao nível social superior de «uma nova geração de gentes». «Porque » (acrescenta o cronista) «filhos de homens de tão baixa condição que não cumpre de dizer, por seu bom serviço e trabalho neste tempo foram feitos cavaleiros, chamando‑se logo de novas linhagens e apelidos; outros se apegaram às antigas fidalguias, de que já não era memória, de guisa que, por dignidades e honras e ofícios do reino, em que os este Senhor, sendo Mestre e depois que foi Rei, pôs, montataram tanto ao diante que seus descendentes hoje em dia se chamam dões e são teúdos em grande conta » (cap. CLXIII, Da sétima idade que se começou no temo do Mestre).

Ora, a admitir-se a hipótese que me ocorreu, a transformação observada por Fernão Lopes nos últimos tempos de que nos dá relato manifesta‑nos o agravamento e a explosão de uma crise que já havia principiado pelo meio do século: crise que a cheúra do erário real, a ostentação desordenada dos novos-ricos (subitamente abastados por acumulação de heranças) e a prosperidade da burguesia do comércio externo, cosmopolita e marítima (a grande burguesia de Lisboa e do Porto) ocultava aos olhos dos litorâneos.

Quanto a nós, a situação social que tornou possíveis as cenas que se passaram no interior do país e que se descrevem na Crónica de D. João I é a da luta de classes e abalo económico causados pela « mortandade » de ' 48 - a « grande pestenença », como se lhe chamou também. A uma banda, aparece-nos a turba do povinho miúdo, que fora alvoroçada e impelida à contenda pelo acúmulo de heranças que se originou da moléstia; à outra, os aristocratas senhores rurais e a classe média dos « homens-bons » (os « donos das herdades e lavradores »), que, vendo-se falta de serviçais, havia pretendido obrigar os mais pobres a regressarem à situação que precedera a peste, com os salários que vigoravam anteriormente a ela. Este embate de interesses - esta dissensão entre classes - transformou-se finalmente em contendas de morte quando os armadores e mercantes de Lisboa e do Porto (os altos burgueses do comércio marítimo, superiores por natureza a tal crise de braços, que afligia somente o burguês pequeno) se decidiu a desencadear a insurreição política e a assumir a chefia dos negócios públicos, assoldadando para isso alguns homens de algo e incitando o povinho a passar aos actos, -pelo que se entrou finalmente em revolução patente: revolução dirigida, organizada, politicamente aproveitada pelo Burguês dos portos, à sombra dos direitos do Mestre de Avis, que o Comerciante sustentava com razões e com guerra.

Em resumo (e se não estou em erro) quatro factores sobressaem na metamorfose social que deu tema à Crónica de D. João I:

1.º A luta de classe do Servidor e do Artífice, por um lado, contra o Senhor Aristocrata e o Pequeno Burguês (a palavra « burguês » , como quem lê está notando, vai aqui com o significado e com a extensão que tem hoje), luta que se originou do amontoar de heranças consecutivo aos falecimentos pela peste grande e apoiou com uma briga social-económica (a da classe dos operários com a dos « homens-bons » dos concelhos, que alinhavam ao lado dos aristocratas) a revolução dirigida pelos comerciantes dos portos contra a hegemonia política da fidalguia;

2.º A audaciosa abertura da guerra civil pelo Alto Burguês do comércio marítimo, que inicia e dirige o ataque armado ao regime político senhorial, representado pela rainha, pelo rei de Castela e pela gente nobre, cujo cabecilha é o Andeiro e a quem a classe média acompanha;

3.º A introdução da táctica que mais bem se adequava às forças do partido da burguesia, táctica de que Nun'Álvares se serviu a primor, sabendo combiná-la de maneira habilíssima com as formas de terreno em que rendia o máximo;

4.º A iniciação efectiva no direito romano, muito mais condicente com a hegemonia burguesa (quero eu dizer: que mais bem se coadunava com a direcção do Estado pela mentalidade característica do alto burguês dos portos, com o predomínio da economia comercial-marítima, que tão intenso se tornou no nosso viver posterior) do que o direito senhorial e propriamente medievo.

Tal é (com razão ou sem ela) a hipótese que proponho para a interpretação dos fenómenos: e se não está muito errada, justifica-se o título de « revolução burguesa » (da alta burguesia, claríssimo está, em oposição à nobreza e ao pequeno burguês «homem-bom») que tenho dado a essa crise de 1383-85, tão airosamente descrita por Fernão Lopes.

Fonte:
António Sérgio,
«Prefácio»,
in Crónica de D. João I, segundo o códice n.º 352 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
Lisboa, Livraria Civilização, «Biblioteca Histórica - Série Régia», 1983 (1.ª ed., ...)
páginas XXXIII a XXXV."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#115996 | artur41 | 06 abr 2006 16:56 | Em resposta a: #115995

Caros Confrades,

Do mesmo "Portal" mais um registo importante:

"A Crónica de Fernão Lopes segundo Oliveira Marques.

Para Oliveira Marques Fernão Lopes é um dos maiores escritores de todos os tempos. «Mas os relatos dos principais acontecimentos partidários e a caracterização das mais importantes figuras não podem ser tomados como a verdade intocável que a grande massa dos historiadores portugueses lhes têm conferido.»

(...)

A Obra

Antes de 1434 o infante D. Duarte encarregou Fernão Lopes de uma dupla tarefa: 1.ª escrever as crónicas dos reis de Portugal até D. Fernando («poer em crónica as histórias dos reis que antigamente em Portugal foram»); 2.11 Escrever a crónica do monarca reinante, D. João I («isso mesmo os grandes feitos e altos do mui virtuoso e de grandes. virtudes El-Rei meu senhor e padre»). Para essa missão dispunha Fernão Lopes ao seu alcance, além de todo o vasto material arquivístico da Torre do Tombo – é lícito supor que existissem todos os livros de chancelaria desde Afonso II –, de memórias já compiladas dos reinados anteriores a D. Pedro. Não admira, portanto, que tivesse começado pela elaboração das crónicas que requeriam trabalho mais integralmente original. E conseguiu redigir, de facto, as de D. Pedro, D. Fernando e D. João I (1.ª e 2.ª partes). A tarefa foi morosa, pelas preocupações de veracidade que o norteavam («mas mentira em este volume é muito afastada da nossa vontade») e pela deficiência de notícias portuguesas que lhe pudessem servir de apoio: Fernão Lopes utilizou crónicas estrangeiras – Ayala principalmente (vimos grandes volumes de livros, de desvairadas linguagens e terras) – e algumas crónicas parcelares portuguesas hoje perdidas – de Martim Afonso de Melo; do Dr. Cristóvão –, ouviu testemunhos de contemporâneos dos acontecimentos relatados e – resultado da sua formação notarial e da profissão que desempenhava – serviu-se abundantemente de documentos avulsos, quer colhidos nos livros de chancelaria e noutros textos da Torre do Tombo, quer obtidos algures em arquivos do País («vimos [... ] públicas escrituras, de muitos cartórios e outros. lugares»; «Por cuja razão o dito Fernão Lopes despendeu muito tempo em andar per os mosteiros e igrejas buscando os cartórios e os letreiros delas pera haver sua informação»), e deslocou-se em pessoa a vários pontos do Reino onde tivessem ocorrido factos importantes ou vivessem testemunhas idóneas («E assim foi necessário ao dito Fernão Lopes de andar per tôdalas partes do Reino pera haver comprida informação do que havia de começar.»). Parece ter redigido primeiramente as crónicas de D. Pedro e de D. Fernando e passado depois à de D. João I, que não pôde concluir, «assim pela grandeza da obra [...] como pelos avisamentos delo serem caros e maus de apanhar, e isto porque a dita história foi começada tão tarde que muitas das pessoas que verdadeiramente sabiam eram já partidas deste mundo [... ] ». Sabemos que trabalhava na 1ª parte em 1443 e que escreveu ainda a 2.ª parte. É possível que tenha iniciado a 3.ª parte (por certo recolheu para ela muitos, elementos), mas foi já Zurara quem lhe deu o estilo e a elaborou de todo. Quanto às crónicas anteriores a D. Pedro, subsiste o problema e o debate da sua autoria. A forma de tratamento, a linguagem e o estilo (a não ser talvez em alguns capítulos) dificilmente nos permitem atribuí-Ias à lavra de Fernão Lopes. É fora de dúvida que ele as teria utilizado como fontes (como mais tarde fez Rui de Pina) se o tempo lho tivesse permitido. O testemunho de Damião de Góis, único em abono da sua autoria, foi exarado cem anos mais tarde, talvez com apoio na carta régia de 1434 que lhe dava esse encargo ou numa tradição mais ou menos falaciosa. Apaniguado dos príncipes de Avis, é evidente que Fernão Lopes tinha de ser parcial. Vemo-lo com clareza na condenação de um D. Fernando ou de uma Leonor Teles, como, na exaltação de um D. Pedro, pai do seu rei D. João I («E diziam as gentes que tais dez anos nunca houve em Portugal, como estes que reinara el-rei D. Pedro), de um mestre de Avis (apesar de todas as suas fraquezas humanas) ou de um Nun'Álvares (já então tido por santo e tronco da poderosa Casa de Bragança). António José Saraiva demonstrou à saciedade como Fernão Lopes tinha diversos objectivos de carácter político a atingir -todos justificativos da nova dinastia – e como, em geral, o conseguiu modelarmente. É verdade que a sua origem popular, com desconfiança por tudo aquilo que era nobreza ou alto clero, lhe deu um sentido crítico que o fez incomparável no panorama do tempo e lhe temperou as subserviências de valido do Paço. Citando ainda A. J. Saraiva, «pelo senso crítico com que joeirou a sua documentação, pelo método de crítica das fontes, ele vai muito além do seu tempo e se antecipa aos historiadores do século XIX». Mas os relatos dos principais acontecimentos partidários e a caracterização das mais importantes figuras não podem ser tomados como a verdade intocável que a grande massa dos historiadores portugueses lhes têm conferido. Muitos dos episódios afamados da Crónica de D. João I (sobretudo na 1.ª parte) valem antes como romance histórico de alto nível literário (pela movimentação das massas, pela psicologia dos homens, pelo desenrolar dos actos) do que como testemunhos de uma realidade passada. As melhores páginas históricas de Fernão Lopes são talvez as da Crónica de D. Fernando, sobretudo quando se referem a factos controláveis e isentos da possibilidade de partidarismo. Aqui, toda a probidade do cronista-tabelião se revela abonada pelas fontes documentais que persistiram até hoje e se transmuta até – ela própria – em fonte quantas vezes. E pena foi que Fernão Lopes não dispusesse do tempo bastante para refundir por completo as crónicas dos reinados anteriores a D. Pedro, alargando-as com o desenvolvimento proporcional a cada uma e recheando-as dos testemunhos documentais a que ele tinha tão fácil acesso e de que hoje não restam vestígios. Do valor literário de Fernão Lopes não cabe aqui falar. O seu poder evocativo e descritivo, o seu sentido do movimento, sobretudo quando individualiza as massas ou personaliza uma cidade como Lisboa, tornam-no um dos maiores escritores de todos os tempos.

Fonte:
Oliveira Marques, António Henrique de
«Lopes, Fernão»,
Joel Serrão (dir.), Dicionário de História de Portugal,
Lisboa, Iniciativas Editoriais,
páginas 806 a 808.."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#116003 | Luis K. W. | 06 abr 2006 18:00 | Em resposta a: #115900

Caro Artur,
Não imaginava o Vasco Gonçalves a escrever sobre a crise de 1383-5.
Acho que ele tem alguma razão, na sua análise numa perspectiva marxista (luta de classes, etc.).
Tem, no entanto piada, a chamada de atenção para a expressão "verdadeiros portugueses" - usada por ele e por Fernão Lopes - para designar os que eram leais ao Mestre de Aviz, contra o que devia ter sido o nosso legítimo Rei, o D João I de Castela... Vai um pouco contra o "internacionalismo" proletário apregoado pelo marxismo.

O desenrolar da batalha de Aljubarrota parece bem documentada, e está descrita com clareza.

Só que NÃO me parece que a "revolução" fôsse uma mudança assim tão grande. Tenho para mim que, durante a 1ª Dinastia, o poder do Rei se fundava e apoiava muito no Povo (e nos Municípios, nas Milicias populares, etc.) do que nos quiseram fazer crer. A nobreza dependia, mas também rivalizava com o Rei.
A ordem estabelecida impunha que as várias classes deviam viver em conjunto seguindo várias regras. Não quer dizer que a nobreza e o povo não estivessem em permanente antagonismo.

O que se seguiu, talvez não com D João I/Mestre de Aviz, mas com os seus descendentes, foi que uma parte da nobreza mais antiga foi substituída por outra. Sobretudo por muitos dos que se notabilizaram nas batalhas (oriundos, a maioria deles, da nobreza).

O facto de o Condestável (e tri-conde) ter recebido terras como nenhum nobre até entao tinha tido, veio (felizmente?) a estar na origem da poderosa casa de Bragança, que chegaria ao trono 250 anos mais tarde.

Não sei se (em 1401?), quando o D Afonso (filho do Mestre) casou com a Beatriz Alvim (única filha de D Nuno Alvares Pereira), em 1401, o Condestável já era o riquíssimo Conde de Arroiolos, Barcelos e Ourém. Mas suponho que D João I sabia perfeitamente que, ao dar tais enormes benesses ao seu Condestável estava, por herança, a beneficiar o seu 1.º filho (do Rei) - até porque o Rei podia decidir com quem o(s) filho(s) do Condestável casaria(m)...

A propósito: Sabem como se chamava o primeiro marido de Leonor Alvim (que casou 2ª vez com o Condestável)? Era VASCO GONÇALVES!
Isto está tudo ligado... :-)

Um abraço.
Luís K W
Lisboa-Portugal

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#116008 | artur41 | 06 abr 2006 19:13 | Em resposta a: #116003

Caro Luís,

Ora viva. Como tem passado?

Quanto ao General Vasco Gonçalves: é uma constatação. É, de facto, uma perspectiva marxista. Há conflitos entre classes (na minha opinião), mas não uma "Revolução" no sentido moderno da palavra.

Não me parece que se tenha assistido a levantamentos populares (criados e organizados) pela plebe. Admito que o "povo" tivesse um significado mais abrangente!

Em termos de legitimidade: D. João I de Castela levaria vantagem. Mas nunca foi alvo da predilecção popular.
Na Antiga Roma a monarquia acabou quando Tarquínio (o Soberbo), rei etrusco, foi deposto por não ter sido aclamado pela população. Em resultado disso: veio a República.

Concordo com as suas análises posteriores.

Relativamente ao 1º marido de Leonor Alvim: é uma curiosidade... lol lol

Um abraço

Artur

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#116010 | Luis K. W. | 06 abr 2006 19:27 | Em resposta a: #116008

Caro Artur,

Cá vamos, cá vamos. Com trabalho a mais (e dinheiro a menos). :-)

Quanto à "crise" de 1383-5, estou de acordo consigo, claro.

Um abraço

Luís K W
Lisboa-Portugal

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#116591 | artur41 | 14 abr 2006 17:35 | Em resposta a: #116010

Caros Confrades,

Mais uma perspectiva extraida do «Portal»:


"A Revolução de 1383 - 1385 segundo Marcelo Caetano (1).


Para Marcelo Caetano as decisões das Cortes de 1385 apoiaram-se «num sentimento patriótico indiscutível e que para uma parte da população fora pretexto de um movimento de carácter social», mas também se apoiaram num problema de natureza religiosa: «os partidários de D. João I lutavam pela verdadeira Igreja contra os cismáticos» que apoiavam o anti-papa de Avinhão. É uma Revolução Nacional (nacionalista).


AS CORTES DE 1385

INTRODUÇÃO

A composição e o funcionamento

1. - As Cortes que reuniram em Coimbra nos meses de Março e Abril de 1385 têm uma importância capital na história portuguesa por várias razões: a) deram sanção jurídica à revolução popular que em Abril de 1384 alastrara de Lisboa por grande parte do País sob a chefia do Mestre de Avis; b) vencendo escrúpulos legitimistas, elegeram novo rei, instaurando nova dinastia; c) procuraram definir as regras de um regime constitucional.

(...)

CAPÍTULO I

A atribuição da coroa

9. Os partidos em presença. - A data da reunião das Cortes de Coimbra o País encontrava-se dividido em três partidos relativamente à sucessão de D. Fernando. O primeiro, a que poderemos chamar partido legitimista, era constituído por aqueles que considerando D. Beatriz, mulher do rei de Castela, a única herdeira legítima do rei defunto e em vigor a escritura antenupcial de Salvaterra de Magos, sobrepunham o seu dever de fidelidade aos reis castelhanos a quaisquer outros interesses e defendiam a regência de D. Leonor Teles nos termos do pactuado na referida escritura. O segundo partido pode denominar-se legitimista-nacionalista: repugnava-lhe que o Reino corresse o risco de perder a independência pelo acesso ao trono dos reis de Castela e em consequência excluía a sucessão de D. Beatriz, mas, nesse caso, entendia que a herança da coroa portuguesa cabia aos irmãos de D. Fernando, filhos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro, que o rei justiceiro declarara legitimados por casamento clandestino. O terceiro partido, puramente nacionalista, punha de parte quaisquer preocupações de legitimidade operante a supremacia do interesse nacional: a defesa da independência portuguesa requeria um rei que fosse português e estivesse intimamente ligado à causa da Nação, o que excluía D. Beatriz, casada com o rei de Castela, e os filhos de D. Inês de Castro, que viviam em Castela e por ela já tinham combatido contra Portugal. Logo, não restava outra solução senão a de considerar o trono vago e eleger um soberano sem atender às regras tradicionais da sucessão, devendo a escolha recair no chefe popular que era D. João, Mestre de Avis, embora clérigo e bastardo.

É evidente que o partido legitimista, solidário com os castelhanos, não estava representado em Coimbra onde, portanto, só se defrontaram, em «grandes desvairos e debates» como diz a Chronica do Condestabre, os dois partidos nacionalistas. O partido legitimista-nacionalista era chefiado por Vasco Martins da Cunha, o Velho (Cron. do Cond., cap. 42), e por seus filhos, designadamente por Martim Vasques da Cunha (Cron. D. João I, cap. 188), os quais «eram homens de muitas gentes e tinham algumas fortalezas» e defendiam os direitos do infante D. João que se encontrava preso em Castela, em cujo nome, no entender deles, o Mestre de Avis devia continuar a governar como simples regente (cap. 182) . O partido nacionalista compreendia «todo o povo miúdo do reino» e «alguns bons e grandes» à frente dos quais estava Nuno Álvares (Cron. do Cond.).

(...)

15. Eleição do rei. - De quanto acabamos de expor, não é difícil concluir que o objectivo dos legistas nestas Cortes não era deferir a coroa por sucessão legítima ao Mestre de Avis e sim destruir as pretensões de legitimidade, para declarar vago o trono e reconhecer às Cortes o direito de escolherem livremente um novo rei. A tese contrária, apresentada por Alfredo Pimenta 15, não resiste ao mais leve exame crítico. Efectivamente, não só depõem contra ela os termos literais dos documentos 16 e das fontes narrativas, como a lógica da argumentação jurídica: se todo o esforço dos juristas foi dirigido a provar que D. Beatriz e os infantes D. João e D. Dinis não podiam aspirar à sucessão regular da coroa por não serem filhos legítimos, como é que havia de concluir pelo chamamento, à luz das mesmas regras sucessórias, de um filho adulterino, em relação ao qual nem sequer se punha a hipótese de ter nascido de casamento, mesmo inválido como acontecia com os outros, e que, demais a mais, era chefe de uma ordem religiosa, logo, clérigo? Fernão Lopes, por isso, diz bem claramente: «foi entre eles determinado, por mansa e pacifica concordia, uma virtuosa e final intenção, convêm a saber: que elegessem rei» (cap. 191).

Nas palavras que de novo põe na boca de João das Regras acentua-se o afastamento das regras tradicionais da sucessão: «não curemos mais de histórias antigas que a nosso propósito possamos trazer». E invoca-se o estado de necessidade do Reino: «segundo a necessidade em que somos postos requer, a nós convem em tal caso por força elegermos rei», invocação que se encontra repetidas vezes no auto da eleição e nas bulas de 13 91 em que o papa reproduz as razões portuguesas para fundamentar a violação das leis eclesiásticas.

Passa depois o legista a considerar quais os requisitos de elegibilidade para em seguida demonstrar que eles concorriam no candidato da revolução, o Mestre de Avis. Seguiu-se discussão e a deliberação unânime de eleger D. João: «por unida concordancia de todos os grandes e comum povo disseram que o promovessem à alta dignidade e estado de rei.»

Tomada a deliberação, faltava a aceitação do eleito: as Cortes foram comunicar ao Mestre de Avis a escolha e pedir a sua anuência. Ele, porém, quando tal ouviu pôs-se a tremer (nobis cum magro tremore corporis respondit, diz a versão latina do auto da eleição) e esboçou a recusa fundando-se na sua insuficiência, «no defeito da sua nascença», e em ser professo da Ordem de Avis; acrescentando que na guerra com Castela, que ia travar-se, melhor seria correr os riscos como simples cavaleiro cuja derrota não afectaria o País, do que como rei. Por isso recomendava às Cortes que tratassem da defesa do Reino e do seu financiamento e deixassem o resto (auto da eleição e F. Lopes, cap. 192).

A resposta foi recebida com desgosto (maximam desolationem) e logo os três estados insistiram nas suas razões, prometendo todo o apoio e os esforços necessários para obter dispensa pontifícia da irregularidade de nascimento e do impedimento de profissão religiosa para o necessário casamento a contrair 17: perante a insistência, o Mestre, atendendo e considerando as grandes necessidades do Reino e convicto de que tal era a vontade de Deus mostrada .no unânime consenso das Cortes (atque intendens quod placebat Deo ex quo sic placebat rzobis aliis suprarominatis qui cum sic rogabamus et urgebamus ad illud), acabou por aceder mas «reservando sempre e em tudo a honra, reverência, autoridade e superioridade» do Santo Padre e da Santa Sé Apostólica.

Parece, pois, indubitável, à face dos documentos, que: 1.° o trono foi declarado vago, por falta de herdeiro legítimo à coroa portuguesa; 2.° que as Cortes entenderam que em tal caso a escolha de rei lhes pertencia de direito, sem qualquer restrição; 3.° que o Mestre de Avis foi eleito rei atendendo às suas qualidades pessoais e pela sua linhagem (requisitos de elegibilidade) mas exclusivamente em nome do direito que as Cortes reivindicaram a prover de titular a coroa vaga; 4.° que a circunstância de ele ser filho adulterino e mestre da Ordem de Avis levou as Cortes a invocar o estado de necessidade para justificar a eleição antes de ser obtida dispensa da Santa Sé para tais impedimentos, e a reservar a decisão do Pontífice em última instância.

D. João não assumiu o título de rei «por direito próprio»: aceitou-o depois de eleito e instado. De acordo com a doutrina medieval mais corrente, interpretou a deliberação dos três estados em que se traduzia o consentimento do Reino como sinal da vontade de Deus. Por isso logo na carta de confirmação dos privilégios da cidade de Lisboa expedida em 10 de Abril de 1385 em que começa por narrar tudo quanto deve à mesma cidade dirá: «estes reinos... dos quais

nos Deus deu encarrego do regimento...». Todo o poder vem de Deus: a eleição é apenas o modo de designar a pessoa que o há-de exercer.

16. O auto da eleição. - O documento fundamental para o estudo desta fase do funcionamento das Cortes de 1385 é o auto em que ficou registada autenticamente a deliberação de eleger o Mestre de Avis, com as razões que determinaram as Cortes e as circunstâncias que acompanharam a aceitação da eleição. É este auto a fonte principal de que Fernão Lopes se serviu para redigir, com verdadeiro talento de artista, os capítulos 182 a 192 da parte I da sua Crónica de D. João I.

O auto foi redigido em português e vertido em latim 18. O original em português foi selado com os selos pendentes da cidade de Coimbra e dos prelados presentes. A versão latina deve ter sido feita com o fim de ser levada pelos embaixadores que haviam de dirigir-se à Santa Sé a impetrar a ratificação da eleição, feita sem embargo de não ter havido prévia dispensa do defeito do nascimento e da condição clerical. Essa finalidade que teve em vista ao redigir o auto justifica o cuidado em descrever com minúcia a relutância posta pelo Mestre na aceitação e a forma como acolheu a notícia da eleição: in admiratione positus, nobis cum magno tremore corporis respondit. Justifica também que fossem os prelados a subscrevê-lo, assumindo a responsabilidade da resolução imediata enquanto não se pudesse obter a de Roma.

Fr. Manuel dos Santos, na parte VIII da Monarquia Lusitana, e D. António Caetano de Sousa, no tomo I das Provas da História Genealógica, publicaram o texto latino, trasladado não do original mas da cópia exarada a fl. 1 do Liv. 4.° dos «Direitos Reais» (cita o primeiro) ou «dos Reis» (diz o segundo) da Torre do Tombo 19. Quanto ao texto português, Santos fez uma tradução sua do latim (cap. XXXI do livro XXIII) e Sousa reproduziu a cópia que vem também no cit. Liv. de Reis, fls. 4. Só Ayres de Sá deu algumas passagens do texto português original em Fr. Gonçalo Velho, vol. r, pág. 150. Cremos, pois, que pela primeira vez o damos à estampa na íntegra (doc. n.° 1).

Trata-se de um texto manifestamente redigido por legista hábil e sabedor: esse facto e a circunstância de Fernão Lopes o ter tomado para base da reconstituição do primeiro discurso de João das Regras leva-nos a crer ter sido este o seu autor, como aliás é naturalíssimo dado o papel preponderante que o «grão doutor» exercia na corte do Mestre de Avis.

Metodicamente, o auto regista tudo quanto interessava acautelar para uma futura discussão na Cúria romana ou com os demais pretendentes ao trono. Depois de enumerar pelos seus nomes os participantes nas Cortes, examina a questão da vacância da coroa considerando os títulos de D. Beatriz e dos filhos de D. Inês de Castro para concluir que uns e outros eram. filhos ilegítimos sendo a primeira, para mais, cismática. Nessa altura consigna o encargo dado aos bispos do Porto e de Évora para inquirirem destes factos a fim de que desaparecesse qualquer dúvida a respeito deles, e como do inquérito resultou a comprovação da verdade sabida.

Entra-se então na segunda parte: tendo-se chegado à conclusão de que o trono estava efectivamente vago e dado que nesse caso competia ao Reino prover à eleição de um rei, as Cortes, após madura deliberação, escolheram o Mestre de Avis, D. João - omnes concordes in uno amore, proposito, voto, consilio, actu - «concedendo-lhe» que se chamasse rei - et concessimus illi quod ipse nominaret se Regem - com todas as honras, todas as prerrogativas e todos os poderes que « em tal ofício» costumaram ter os reis de Portugal.

Tomado este acordo, o auto dá notícia da diligência feita junto do Mestre para obter a sua aceitação e da recusa dele, bem como da insistência e das razões aduzidas para forçar o eleito ao assentimento, concluindo por registar a final anuência de D. João e os termos em que foi dada.

Estamos, pois, perante um documento do mais vivo interesse histórico-jurídico, porventura o de maior valor para a história do nosso direito público medieval, já que é apócrifa a acta das Cortes de Lamego. Assim resulta dos princípios nele exarados relativamente à sucessão hereditária da coroa, à vacância desta e devolução ao Reino do direito de eleição do rei, à aceitação do eleito e aos poderes da Sé Apostólica no reino de Portugal.

É evidente que na polémica com o rei castelhano os legistas portugueses procuravam tirar todo o partido possível do facto de ele ter reconhecido o antipapa de Avinhão, chamando para a causa do Mestre de Avis, já apoiada num sentimento patriótico indiscutível e que para uma parte da população fora pretexto de um movimento de carácter social, mais um sólido esteio, este de natureza religiosa: os partidários de D. João I lutavam pela verdadeira Igreja contra os cismáticos e beneficiavam das indulgências da cruzada concedidas por Urbano VI a quem combatesse o rei castelhano 20. Convinha, então, obter em cheio o apoio do pontífice romano, para o que não era indiferente, aliás, a amizade inglesa desde o início procurada, já que a Inglaterra estava empenhada em sustentar Roma contra Avinhão 21.

Mas, no fundo, o que se encontra no escrúpulo com que se reserva a última palavra ao Sumo Pontífice é a concepção medieval da respublica christiana que subordinava os príncipes ao juízo supremo do papa em todas as questões tocantes à consciência, como indubitavelmente era esta de afastar uns pretendentes em benefício de outro. Eleito o novo rei, a confirmação da sua legitimidade resultaria da palavra do sucessor de S. Pedro 22. Com a sua sanção e a sua bênção cairia ,a razão de ser dos últimos escrúpulos: mas, entretanto, a necessidade forçava a agir e D. João I, freire militar professo, não hesitou mesmo em casar sem dispensa pontifícia quando o interesse nacional o impôs nem os bispos portugueses tão-pouco hesitaram em elegê-lo, apoiá-lo e... casá-lo.

Tem-se chamado a este documento auto «de levantamento» ou «do alçamento» de D. João I, o que está errado na medida em que estas palavras são sinónimas de «aclamação». O auto, como vimos, limita-se a dar conta da eleição pelas Cortes, respectivos antecedentes, seus fundamentos jurídicos e termos em que o eleito consentiu em aceitar a escolha. Não é um auto que ateste ter-se procedido à cerimónia da aclamação, que é coisa muito diferente da eleição.

Nem mesmo poderá sustentar-se que foi lavrado na reunião das Cortes do dia 6 de Abril em que se teria procedido à proclamação civil, digamos assim. Na verdade, o auto é um documento longo que foi laboriosamente escrito e que pela subscriptio se vê ter sido lavrado na presença de numerosas testemunhas nele mencionadas e autenticado pelos sinais de vários notários públicos. D. Lourenço, arcebispo de Braga, não o subscreveu em pessoa, mas mediante procurador para esse efeito especialmente constituído. Tudo indica, pois, tratar-se de uma acta da deliberação das Cortes, embora datada do dia em que foi solenemente publicada («pùblicamente rezoadas e contadas», ou, na expressão do texto latino, «acta fuerunt et solemniter publicata haec»), ou seja do dia da aclamação.

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15 Em A Crise de 1383-1385 publicada no volume Idade Média, pág. 295.

16 Auto da eleição: «E por ende vendo nos em como os ditos reinos de Portugal e do Algarve vagaram e vagam livremente e sem. embargo nenhum (se encontram) à nossa disposição e que sem rei que sempre acostumaram a i haver que (a) nós E (a)os ditos reinos hajam de manter em direito e com .justiça e nos defenda e faça tudo aquilo que cumpre pera não cairmos em sujeição em mãos dos ditos cismáticos que delo se trabalharam e trabalham quanto podem em cada um dia em dano e perda nossa e deshonra / outrossi da santa igreja de nosso senhor o papa cujos inimigos são / E porque outrossi guardar e amparar estes reinos por nós não podiamos vendo ainda mais que em tal caso e necessidade a nós era compridoiro e pertencia nomear, escolher e tomar e receber alguma pessoa digna e tal qual cumpria pera os ditos reinos reger, governar, defender ... ». Proémio da carta de dezembargo dos capítulos gerais das Cortes de Coimbra: «...sendo Nós por eles (os procuradores em Cortes) requerido para tomar titulo e nome de Rei, porque viamos bem e entencliamos que nos não podiamos partir dello em outra guisa e porque outrossi entendiamos que prazia a Deus pois prazia a todos pelos ditos reinos serem livres e não cairem em sujeição de nossos inimigos, maiormente, cismáticos revéis contra a Igreja de Roma consentimos a ser Rei...»;

17 Efectivamente Bonifácio IX veio a conceder as dispensas, ao mesmo tempo que ratificava o casamento com D. Filipa de Lencastre, pelas bulas Divina disponente clementia de 27 de Janeiro de 1391 e Quia rationi congruit et convenit do mesmo mês e ano. (Veja-se a nota II que segue no fim do presente capítulo.)

18 0 original em português encontra-se no ANTT; pertence à gaveta 13, maço 10, n.º 12, mas tem estado exposto no gabinete do director; a versão latina está no maço I das Cortes, n.º 8.

19 Não existem tais livros: a cópia está no Livro 1.º de Reis. Foi também deste livro de leitura nova que foram extraídas as cópias, aliás muito imperfeitas, publicadas por Soares da Silva na Coleçam dos Documentos com que se authorizam as Memorias para a vida delrei D. João I, 1734. págs. 20 e 36. Lopes Praça, no tomo I da sua apreciável Collecção de leis e subsidios para o estudo do Direito Constitucional Português, copiou os textos da Monarquia Lusitana (ver ref. Colecção, I, pág. 45).

20 Pela epístola Regimiúi sacrosanctae de 27 de Março de blasfemo a D. João Henriques, rei de Castela. Vem na íntegra na Monarquia Lusitana, VIII, págs. 322 e segs.

21 Cf. o livro fundamental de Perroy, L'Angleterre et le grand schisme d'Occident. Veja-se, porém, adiante, a nota n, sobre a Ratificação pontifícia da eleição de D. João I.

22 D. João de Castela, por seu lado, também no testamento celebrado em Celorico da Beira, em 21 de Julho de 1385, apelou para a arbitragem pontifícia quando recomendou a seu filho primogénito, Henrique (filho do seu primeiro casamento, com D. Leonor de Aragão), que não assumisse o título de rei de Portugal em prejuízo da madrasta, D. Beatriz, «sin primeramente ser declarado y determinado por sentencia de muestro señor el Papa que el dicho Reino pertenesca a el como a primogenito heredero». (Ver o testamento na Monarquia Lusitana, VIII, pág. 735).


Fonte:
Marcelo Caetano,
«As Cortes de 1385»,
Revista Portuguesa de História, tomo V (1951),
páginas 5 a 86."


Melhores cumprimentos

Artur Camisão Soares

Resposta

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#116716 | artur41 | 17 abr 2006 14:50 | Em resposta a: #116591

Caros Confrades,

Mais uma do "Portal":


"A Revolução de 1383 - 1385 segundo Álvaro Cunhal.

Para Álvaro Cunhal, «é a agudização dos múltiplos conflitos de classes e a ascensão da burguesia que conduzem a sociedade portuguesa a uma crise revolucionária em fins do século XIV». E, ao contrário do que dizem, tanto os historiadores burgueses como os «fascistas», a história da primeira dinastia é a história da agudização da luta de classes, exactamente como tinham afirmado Marx e Engels.

II

O AMADURECIMENTO DA CRISE

As modificações da base económica da sociedade portuguesa nos séculos XIII e XIV tiveram como resultado novos conflitos de classes, que se agudizaram extraordinariamente nos fins do século XIV. A luta entre nobres e burgueses entra então numa fase aguda; os burgueses alcançam decisivas vitórias parciais, equilibram-se as forças e criam-se condições objectivas e subjectivas para que a burguesia passe à luta aberta e armada pela conquista do poder. Tal será a revolução de 1383.

Agudização da luta de classes na 1.ª Dinastia

A história da nação portuguesa nos primeiros séculos da sua existência como estado independente constitui uma evidente confirmação da ideia de Marx e EngeIs segundo a qual

«toda a história passada foi a história das lutas de classes e estas classes em luta são sempre o produto dos modos de produção e de troca, numa palavra, das condições económicas do seu tempo».

Quais as transformações fundamentais que se verificaram durante a 1.ª Dinastia no modo de produção e de troca? Conforme foi dito, a servidão da gleba deu lugar à pequena produção, à economia mercantil simples, e a desintegração desta, com a compulsão ao trabalho e a expropriação dos pequenos cultivadores, à produção com base no trabalho assalariado. A produção mercantil impulsionou o comércio interno e externo e o desenvolvimento do comércio impulsionou por sua vez a produção mercantil e a desintegração da pequena produção. Estas alterações, representando o declínio do sistema senhorial e a transformação da propriedade feudal, ou seja, das relações de produção feudais, determinaram o aparecimento de novas classes e de novos conflitos. Nos campos, aos servos da gleba substituem-se os pequenos produtores, originando a formação de uma classe de camponeses ricos (a que chamamos burguesia rural) e uma classe de camponeses sem terra, antepassados dos proletários modernos. Nas cidades, multiplicam-se os artesãos e fortalece-se uma burguesia comerciante, dedicada especialmente ao comércio marítimo, dispondo de importantes recursos financeiros e com um papel de primeira grandeza em toda a vida económica do país.

Quais os conflitos de classes que aqui se originaram e se tornaram os conflitos fundamentais nos séculos XIII e XIV?

O primeiro grande conflito de classes nos séculos XIII e XIV opôs os camponeses em geral à nobreza latifundiária.

Este conflito, embora existente também em. terras sem organização municipal, tomou o aspecto essencial da luta entre os concelhos e as classes privilegiadas. Na verdade, como nota Gama Barros, as cartas constitutivas dos concelhos (forais) tinham «por fim principal fixar as relações dos municípios para com o senhor da terra», isto é, o que os homens dos concelhos deviam pagar e o que os senhores deviam receber. O rei, os nobres, os bispos, as Ordens militares, todos concediam forais. Os camponeses dos concelhos, independentemente das relações de produção existentes entre si, eram tributários dos grandes senhores da terra. Daqui o conflito principal de toda a Idade Média portuguesa.

(...)

O segundo grande conflito de classes nos séculos XIII e XIV opôs os vilãos mais abastados e os grandes senhores aos pequenos cultivadores e camponeses sem terra.

Como já se disse, este conflito manifestou-se em medidas de compulsão ao trabalho assoldadado e de fixação de salários e de novas condições de trabalho. Já no século XIII ele surge em vários documentos. É porém no século XIV que se agudiza extraordinariamente. A célebre circular de 3 de Janeiro de 1349 (Afonso IV) que constitui uma violenta ofensiva contra os trabalhadores, revela toda a gravidade da situação. Segundo esta circular, deviam tomar-se as seguintes medidas. Primeira: arrolamento, elaborado por dois homens-bons em cada freguesia, dos indivíduos obrigados a trabalhar por conta alheia. Segunda: fixação (também pelos homens-bons) do preço da força de trabalho (taxas). Terceira: sanções penais (multas, açoites, prisão, degredo) para quem desrespeitasse as taxas. Quarta: obrigatoriedade de o criado trabalhar todo o ano para o senhor, se este necessitasse dos seus serviços além do contrato. Quinta: perseguição aos mendigos e vadios, com compulsão ao trabalho e castigos corporais aos prevaricadores.

Toda a evolução económica da época e o conjunto dos factos conhecidos mostram que o conflito vinha muito de trás e que esta agudização da luta se deve ao desenvolvimento da produção mercantil e à desintegração da pequena produção. Todavia, tendo em conta a data da circular (um ano após a «Peste grande») e dado o facto de ela referir que alguns dos que se recusam a trabalhar por conta alheia o fazem porque «cobraram alguns bens por morte de algumas pessoas» (e dado talvez também o facto de haver quem tenha atribuído a revolta camponesa na Inglaterra em 1381 à «Black Death»), já o escritor reformista António Sérgio procurou concluir que o conflito se originara nas mortandades da peste...

«Como sempre acontece (escreve) competia uma forte proporção de vítimas à camada paupérrima da sociedade: e à diminuição do número de servidores, promanada da falta dos que morreram, juntou-se a oriunda dos enriquecidos pela confluência de heranças que lhes couberam e que por isso abandonavam a condição servil. O leitor de agora, conhecedor, da lei que relaciona os preços com a intensidade da oferta e da procura, prevê facilmente o que veio a dar-se: uma revolução dos salários. Faltavam obreiros para o trafegar das glebas e fugia-se a servir pela paga antiga. De aí se origina o conflito económico entre a classe dos empregadores e a dos jornaleiros» ... «A circular que aos concelhos D. Afonso IV enviou é um nítido testemunho desse rebentar da luta, desse início», etc... (sublinhados nossos, A.C.) (1).

António Sérgio, incapaz de compreender o processo de evolução social, procura assim num facto acidental (a peste) as causas do fenómeno intimamente ligado à transformação da propriedade feudal nos séculos XIII e XIV. A. Sérgio falha ao considerar que a entrada em vigor das taxas de salários, destinada a resolver o conflito entre «empregadores» e assalariados, está ligada às calamidades da peste de 1348, quando tal situação se vinha arrastando há cerca de um século (lei de 26 de Dezembro de 1253). A. Sérgio falha de novo ao ver como razão do «início» do conflito uma diminuição do número de assalariadas provocada pela mortandade da peste; nos séculos XIII e XIV o número de assalariados não pára de crescer, em virtude da libertação da servidão da gleba e da desintegração da pequena produção e, no entanto, não cessam também, até ao século XV, as referências à falta de assalariados (Cortes de 1361, 1391, 1395, 1408, 1416, etc.). A. Sérgio falha ainda ao tomar à letra a afirmação da circular acerca do enriquecimento dos assalariados pelas heranças recebidas; nem é de admitir o enriquecimento daqueles que o próprio A. Sérgio, duas linhas antes, chama «a camada paupérrima da sociedade» e, duas linhas depois, «de condição servil», nem o argumento é válido quando é corrente as Cortes do século XIV e muitos outros documentos (que as mais das vezes não são contemporâneos das pestes mortíferas), reflectindo a mentira e hipocrisia das classes exploradoras (em termos de que podemos encontrar eco em documentos dos nossos dias), citarem exigências de salários de valor superior ao serviço, e uma vida lauta dos camponeses sem terra (1371), e o «prejuízo» dos senhores ao pagarem altas jornas (1394), e o « enriquecimento » dos criados e a « pobreza» dos amos (1416), etc... A peste de 1348, como outras, pode ter momentaneamente agravado a situação. Porém, só a «ciência» histórica burguesa seria capaz de encontrar nela a causa essencial do estabelecimento de novas relações de produção e do antagonismo e luta de classes.

(...)

O terceiro grande conflito de classes nos séculos XIII e XIV opôs os comerciantes e artesãos às classes privilegiadas (nobreza e clero).

A divergência de interesses em que assentava este conflito manifestava-se de várias formas.

Observem-se, em primeiro lugar, os múltiplos gravames de natureza económica postos pela nobreza fundiária (incluindo o alto clero) à deslocação dos comerciantes e ao exercício da sua actividade. Os grandes senhores das terras obrigavam os comerciantes que circulavam pelo seu território a seguir determinado percurso e impunham-lhes pesados tributos, como portagens, peagens e direitos de entrada.

A segunda razão do conflito são as violências e rapinas exercidas pelos senhores feudais sobre os comerciantes, seja obrigando-os a vender-lhes as mercadorias por preços que eles próprios impunham, seja assaltando-os à mão armada e roubando-lhes quanto levassem. A insegurança do trânsito era tal que os forais asseguravam expressamente protecção aos comerciantes no território concelhio; mais ainda, uma lei de Março de 1261 autoriza os mercadores a andarem armados «per caminho per defenderem seu aver».

A terceira causa do conflito reside no monopólio dos senhores feudais da compra ou venda da produção agrícola nas terras do seu senhorio, o que directamente dificultava e agravava a actividade mercantil.

Em quarto lugar, sobretudo a partir da segunda metade do século XIV, os comerciantes entram em concorrência directa com os nobres e o clero. Com efeito, embora a lei proibisse expressamente as classes privilegiadas de comerciar, embora todo o nobre ou cavaleiro que exercesse o tráfico de mercador fosse considerado desonrado, os senhores especulavam com os géneros comprados aos comerciantes pelos preços taxados na almotaçaria e o rei, a rainha, os mestres das Ordens, os bispos, os clérigos, o conde, os cavaleiros, os almoxarifes, os contadores, os escrivãos, os corregedores, todos compravam para vender e todos se faziam mercadores e regatões (Cortes de 1371 e 1372) .

Nas lutas contra os obstáculos postos directa ou indirectamente à actividade comercial pelos senhores feudais e o seu Estado, lutas essas que iam desde reclamações respeitosas a violentas revoltas, os comerciantes tinham o apoio dos artesãos, igualmente interessados no desenvolvimento do comércio e dos centros urbanos.

Toda a história da primeira dinastia, com a centralização progressiva do poder nas mãos da realeza, é um testemunho gritante destes conflitos de classes. Todas as acções dos reis contra o clero e a nobreza, ou seja, todas as medidas que os governos tiveram de tomar contra os senhores feudais, por muito que historiadores burgueses tão bem documentados como Herculano procurem atribuí-los a incidentes secundários ou pessoais, documentam a pressão progressiva da burguesia sobre o poder central. Contra os privilégios feudais, as arbitrariedades, violências, extorsões e crimes dos grandes senhores, os burgueses, aproveitando-se das divergências de interesses entre os senhores feudais (e particularmente entre o maior deles, o rei, e os restantes), souberam forçar o poder central a limitar as prerrogativas das classes privilegiadas, souberam fortalecer a autoridade do rei e torná-lo (segundo as próprias palavras dos burgueses do século XIV) «o maior da justiça». Foram assim os obreiros de um poder centralizado. Quanto mais independente se mostra o rei em relação à nobreza e ao clero, mais ele acusa a pressão das classes dominadas, e nomeadamente da burguesia urbana e rural, na sua luta contra a aristocracia. Esta é a verdade da tão falada «monarquia popular» e da não menos falada «aliança entre a Coroa e o povo».

Quando Antero de Quental, num texto muito conhecido, afirmava que na Idade Média peninsular; «nobres e populares uniam-se por interesses e sentimentos e diante deles a coroa dos reis era mais um símbolo brilhante do que uma realidade poderosa», ou quando um ano mais tarde insistia em que « a aristocracia, durante séculos, não esmagou nem sufocou o espírito das populações inferiores, nem entre nós nem em parte alguma», antes «as civilizou», negava toda a história e toda a evolução, em palavras que não têm outro mérito que não o de acentuar a impotência ideológica do reformismo. Ao contrário do que afirmava Antero de Quental, toda a história portuguesa da primeira dinastia é claramente dominada e determinada pelos conflitos de classes e particularmente por aqueles que opunham a burguesia à nobreza.

É a agudização dos múltiplos conflitos de classes e a ascensão da burguesia que conduzem a sociedade portuguesa a uma crise revolucionária em fins do século XIV. Organizada fortemente nos concelhos, possuidora de grande poder económico e de maior poder financeiro que a própria nobreza, a burguesia comerciante, assim como a burguesia rural aliada aos artesãos e camponeses, pôde conseguir pela luta a satisfação de algumas das suas reclamações fundamentais e pôde finalmente opor-se decididamente à ordem feudal e reclamar uma participação directa no governo.

(...)

III

A REVOLUÇÃO DE 1383

A insurreição burguesa de 1383, acompanhada por amplas e profundas revoltas camponesas e «proletárias» que abalaram de alto a baixo a sociedade portuguesa, não triunfou apenas sobre a nobreza do país. Teve também de vencer a intervenção reaccionária castelhana, preparada e provocada por aquela. A revolução burguesa identificou-se com uma luta nacional pela independência. A vitória da nação portuguesa foi assim uma grande vitória das forças progressivas sobre as forças reaccionárias de Portugal e Espanha.

A revolução burguesa, luta nacional

Os historiadores burgueses têm apresentado sempre o casamento da filha única de D. Fernando com o rei de Castela, em 1383, como «erro» de um rei inconstante e imprevidente. A verdade é ter sido tal casamento uma manobra política da nobreza, manobra maduramente reflectida e de efeitos cuidadosamente previstos e desejados. Que não foi insensatez de um rei no leito de morte prova-o o facto de, já em 1376 e 1380, ter estado à beira de realizar-se o casamento da mesma infanta com príncipes castelhanos e de já então se prever explicitamente a sucessão de rei castelhano no trono de Portugal.

Sentindo o terreno a fugir-lhe debaixo dos pés, incapaz de suster com os seus recursos próprios o movimento revolucionário ascendente, a nobreza procura deliberadamente a entrada em acção contra .a revolução ascendente, do aparelho militar da aristocracia territorial de além fronteiras. Nessa sua política, a. nobreza de então seguiu o caminho que sempre têm seguido as classes dominantes, quando sentem em perigo a sua existência.

Ante a ameaça de serem desapossadas dos seus privilégios as classes parasitárias preferiram sempre; a uma vitória das forças nacionais progressivas, a dominação do seu país por um estado estrangeiro que abafe a revolução e lhes mantenha esses privilégios. Política de traição nacional - tal foi no século XIV a política da nobreza territorial contra o movimento revolucionário ascendente da burguesia, como hoje o é a política da burguesia monopolista contra o movimento ascendente do proletariado.

O recurso da nobreza a um estado estrangeiro foi porém demasiado tardio. A crise revolucionária amadurecera., Quando, pela morte de D. Fernando, os nobres e seus lacaios aclamaram o rei castelhano casado com a infanta, a insurreição contra a aristocracia precipita-se, identificando-se com a luta pela independência da nação. Enquanto os nobres aclamam Castela, a burguesia, os artesãos e os camponeses aclamam Portugal. Então como sempre, os patriotas dedicados foram os combatentes revolucionários e a traição ao país encontrou-se nas forças da reacção. A insurreição burguesa, aliada a extensos e violentos levantamentos camponeses, tomou assim; desde a primeira hora, uma orientação política geral, polarizando as aspirações da população laboriosa no objectivo da -defesa da independência contra um estado estrangeiro e contra a classe que de Portugal (a nobreza) provocara deliberadamente a sua intervenção. A luta pela independência não foi mais que um aspecto revestido pela revolução burguesa, dado o recurso da aristocracia ao auxílio estrangeiro. Por isso mesmo, a defesa vitoriosa da independência é o melhor certificado da vitória interna da burguesia contra a aristocracia reaccionária.

Ocultando o carácter de classe do movimento revolucionário e insurreccional dos fins do século XIV, os historiadores burgueses têm-se esforçado sistematicamente por apresentá-lo como uma luta comum de todas as camadas da população. É tão grosseiro apresentar uma época de crise e de luta armada entre classes como um momento de particular colaboração e harmonia entre elas, que a mistificação dos historiadores burgueses !se torna clara por si só. É no entanto útil examinarmos mais de perto as suas «explicações», porque assim se evidenciam as limitações da «ciência» histórica burguesa em geral e as falsificações dos «historiadores» fascistas em particular.

O liberal Jaime Cortesão, embora aceitando que a revolução de 1383 foi «uma revolução social»,. afirma que ela «se apresenta como... o resultado da colaboração, ainda que em proporções diferentes, de todas as classes» (2) pois «todas as classes, ainda que em diferentes graus, estavam interessadas no género de vida nacional» (3). Jaime Cortesão confunde assim) a participação individual dos membros de uma classe na revolução de outra classe com a natureza de classe de uma revolução. Em todas as épocas de crise revolucionária há um sector das classes dominantes (particularmente entre os mais esclarecidos e os mais jovens) que toma o partido das classes revolucionárias, isto é, que toma partido contra a sua própria classe de origem. Tais atitudes individuais em nada modificam o carácter de classe da revolução, ou seja, em nada se altera o facto de haver classes que a fazem e outras que defendem contra. ela os, seus privilégios. É tão absurdo concluir da participação de nobres na revolução burguesa de 1383 que esta foi o resultado: da colaboração, ainda que em proporções diferentes, de todas as classes, como seria absurdo concluir da participação de filhos das classes burguesas nas revoluções proletárias modernas que estas são o -produto da colaboração de todas as classes, incluindo a dos capitalistas e dos grandes senhores da terra... A revolução de 1383, identificada com a luta nacional pela independência, dirigiu-se directa, clara e inequivocamente contra a nobreza territorial. Nessa luta nacional, a nobreza como classe colaborou, não com as forças populares e nacionais - com a burguesia, com os artesãos, com os camponeses, que contra ela se levantaram - mas sim, com o estado estrangeiro, cuja intervenção deliberadamente provocara.

A burguesia do nosso tempo, como classe dominante e decadente, como classe privilegiada ameaçada por um movimento revolucionário das massas trabalhadoras, rejeita as tradições revolucionárias dos burgueses do século XIV e torna-se a herdeira das tradições dos nobres traidores de então. Hoje o herdeiro das tradições revolucionárias da burguesia não é a burguesia mas o proletariado. A burguesia representa nos nossos dias o que a nobreza representava nessa época: a classe dominante, exploradora e parasitária, capaz de vender a independência do país em troca de um auxílio estrangeiro para se manter no poder. Daqui resultam os esforços desesperados dos historiadores burgueses reaccionários para ocultar o verdadeiro papel da nobreza face à revolução e à luta nacional dos fins do século XIV.

Os «historiadores» fascistas, com o propósito claro, não de esclarecer os factos históricos, mas de fabricar para esses factos «explicações» que melhor sirvam os interesses da camarilha governante e o seu domínio, perdem qualquer espécie de pudor e entram no caminho da pura mistificação. O professor universitário coimbrão Torquato de Sousa Soares apresenta nos seguintes termos a posição da nobreza na revolução de 1383:

«Naturalmente a nobreza territorial, mais exposta às delapidações da guerra e às represálias de um inimigo poderoso, reagiu com mais dificuldade, mas nem por isso se pode afirmar que se alheou do movimento.» (4)

E, noutro escrito, repete as palavras de Jaime Cortesão, sem citar a sua procedência, como convém à desonestidade de um fascista:

«A vitória resultou da colaboração de todas as classes.»

Como se vê, segundo o sr. Soares, a nobreza teria sido a vítima «mais exposta» e mais directa dos intervencionistas castelhanos. É fantástico que se diga isto mas, como vemos, há um professor universitário que se atreve a dizê-lo, acrescentando que, como era para a nobreza mais perigoso lutar contra o inimigo, teria reagido com mais dificuldade (naturalmente!). Apesar de estar assim particularmente exposta ao inimigo, não se teria alheado da luta, antes teria acabado por combater contra os castelhanos. Desta forma, o sr. Soares, de uma penada, faz do criminoso a vítima e adúltera, sem qualquer escrúpulo, todos os factos históricos conhecidos.

A verdade é que, tendo sido a nobreza que provocou a intervenção e invasão castelhana, casando Beatriz com o rei castelhano, apoiando a regência de Leonor Teles, solicitando directamente a invasão armada, ela não se alheara (naturalmente!) do movimento. Desde a primeira hora tomou (naturalmente) a defesa da causa de Castela, que era a sua própria causa, resistindo com fúria à revolução popular e nacional e passando-se, com armas, bagagens e... os castelos que pôde defender, para o campo do exército castelhano invasor. É esta a verdade.

Mas o sr. Soares, vai ainda mais longe. Desejoso de filiar ó ideário fascista nos acontecimentos capitais da nossa história, vê em 1383, não uma luta contra o poder da aristocracia latifundiária, mas precisamente o invés: uma luta pelo fortalecimento desse poder, dada a sua visível fraqueza. Ouçamo-lo:

«Apesar de parecer, em dado momento, uma revolta de pobres contra ricos, de plebeus contra nobres, não é afinal senão a reacção contra a crise do poder central, que a regência de Leonor Teles, com a perspectiva da subordinação a Castela, tornaria insanável sem uma intervenção violenta. Portanto, luta pelo robustecimento da autoridade na base tradicional da organização do poder, isto é, na base de um poder monárquico autónomo em face. da nação, para melhor a poder conduzir e servir.» (5)

1383 foi uma revolução; o sr. Soares diz: foi uma reacção. 1383 foi a luta da burguesia pela conquista do poder; o sr. Soares diz: foi o fortalecimento do poder existente, na sua base tradicional. Em 1383 verificou-se a designação revolucionária de -um monarca pela burguesia e contra o desejo da nobreza; o sr. Soares diz: verificou-se a continuação e fortalecimento do poder monárquico. autónomo. É assim que os fascistas fabricam a história.

Apresentando a grande luta nacional do século XIV como uma luta de todas as classes contra o estrangeiro, os historiadores burgueses dos nossos dias deturpam e escondem o seu carácter essencial: que essa luta 'nacional foi ao mesmo tempo e fundamentalmente uma revolução de classes da sociedade' contra outras classes, uma revolução da burguesia e seus aliados contra a nobreza territorial.

A relação das forças de classe

Mostrado o erro dos historiadores burgueses ao pretenderem que a luta nacional dos fins do século XIV foi obra da colaboração de todas as classes e mostrado que essa luta nacional foi um dos aspectos de uma revolução social, deve considerar-se a posição e participação das várias classes na revolução.

O testemunho do genial escritor que foi Fernão Lopes não deixa qualquer margem a dúvidas de que a revolução de 1383 foi uma revolução profundamente popular que abarcou o país inteiro em levantamentos insurreccionais contra a .ordem feudal. Fernão Lopes conta, numa linguagem viva que traz os acontecimentos até aos nossos dias, como o «povo miúdo» se ergueu para a luta, vencendo os treinados e orgulhosos militares aristocratas e tomando e fazendo ruir muitos dos seus castelos. Descreve-nos como, à revolução dos burgueses de Lisboa e Porto, conduzidos por aguerridos homens dos mesteres, responderam por todo o país os homens bons e os camponeses sem terra. O honrado testemunho de Fernão Lopes é uma contribuição decisiva para a compreensão do carácter de classe da revolução e da posição das diversas classes sociais em 1383.

A revolução de 1383 confirma o ensinamento de Marx e Engels, segundo o qual «no pano de fundo da luta entre burgueses citadinos e nobreza feudal aparece o camponês rebelde e atrás dos camponeses os rudimentos revolucionários do proletariado moderno». E confirma ainda outro ensinamento dos grandes mestres do comunismo segundo o qual «em todos os grandes movimentos burgueses houve explosões independentes da classe que era a precursora, mais ou menos desenvolvida, do moderno proletariado». Em 1383 encontramos, como pano de fundo da luta dos comerciantes e artesãos contra a nobreza, os camponeses rebeldes, os homens-bons e, por detrás destes, os trabalhadores assalariados livres, trabalhadores sem terra e sem senhor, que Fernão Lopes imortalizou com o nome de «ventres ao sol». Lá encontramos as «explosões independentes» dos precursores do proletariado moderno, das quais nos ficou como documento mais circunstanciado a insurreição de Évora, dirigida por Gonçalves Eanes, cabreiro, e Vicente Anes, alfaiate.

(...)

O papel das várias classes na insurreição dos campos não é tão evidente e por isso António Sérgio pôde defender que a burguesia rural (os homens-bons), longe de participar na revolução, combateu contra ela e foi por ela combatida. «A revolução dirigida pelos comerciantes dos portos contra a hegemonia política da fidalguia» teria sido apoiada por «um conflito social-económico (o da classe dos operários com a dos homens-bons dos concelhos que alinhavam ao lado dos aristocratas)» (6).

O que há aqui de fundamental é a posição atribuída à burguesia rural, aos homens-bons. Em que se baseia a opinião de A. Sérgio? Ela assenta exclusivamente numa passagem de Fernão Lopes em que este diz que a revolução era dirigida pelos «meúdos» «contra os melhores e mais honrados que havia nos lugares» (7). A. Sérgio afirma que esta expressão «os melhores e mais honrados» é sinónima de «classe média» ou «homens-bons», que a expressão «meúdos» é sinónima de «operários» e conclui triunfalmente sobre a posição das várias classes na revolução. Ora esta conclusão é demasiado precipitada.

Deve sublinhar-se, em primeiro lugar, que a expressão « os melhores e mais honrados» é utilizada por Fernão Lopes, em numerosas passagens das suas crónicas, para significar não a «classe média», não os vilãos ricos (como supõe sem hesitação ou dúvida A. Sérgio) mas... os nobres; e a expressão «os meúdos» ou «povo meúdo» é utilizada também em numerosas passagens não para designar «as gentes operárias» (como supõe sem hesitação ou dúvida A. Sérgio) mas para designar precisamente os ...homens-bons. E isto invalida por si só a interpretação de A. Sérgio.

Deve sublinhar-se, em segundo lugar, que, noutra passagem muito mais clara, Fernão Lopes aponta, como relação das forças de classe na revolução, de um lado, o lado de Castela, « os ricos e poderosos, assim alcaides de castelos como outros fidalgos» e do outro, do lado da revolução e de Portugal, «os povos todos» (8) . E isto acaba por atirar por terra a interpretação de A. Sérgio, dando novas e boas razões para dar à passagem por ele citada precisamente o sentido contrário do que ele lhe atribui.

(...)

A luta e a vitória

A vitória não se decidiu definitivamente na insurreição de 1383. A intervenção militar de Castela, preparada, solicitada e provocada pela nobreza, deu à guerra civil o carácter de uma luta patriótica contra os invasores estrangeiros e pela independência nacional. Essa intervenção, invocando a legítima sucessão ao trono, complicou extraordinariamente os problemas políticos e militares que se colocavam perante a burguesia, designadamente: primeiro, o de encontrar uma justificação jurídica para a insurreição e para a consequente quebra dos tradicionais direitos da monarquia; e, segundo, o de organizar os seus exércitos e conduzir a sua táctica nas novas condições criadas pela insurreição popular e pela intervenção estrangeira.

Coube a João das Regras encontrar e expor nas Cortes de Coimbra de 1385 uma base jurídica em que assentasse a sucessão do Mestre de Avis a D. Fernando. São célebres os seus argumentos, excluindo um a um os possíveis pretendentes ao trono e concluindo pela legitimidade de D. João. É, no entanto, evidente que não foram os argumentos de João das Regras que decidiram a questão dinástica. Todas as grandes revoluções sabem encontrar uma legitimação jurídica, pois o direito nasce da sociedade e a sociedade da acção dos homens. Assim sucedeu também em 1383.

Nas Cortes de 1385, pela sua composição - representação de cerca de cinquenta concelhos com ampla participação das classes populares e posição favorável ao Mestre, com compromisso anterior na actuação prática, da maioria dos representantes da nobreza - estava de antemão resolvido que D. João seria rei e não o castelhano, nem qualquer dos possíveis pretendentes que ao lado do castelhano combatiam. Seria um absurdo histórico que o novo regime, surgido da insurreição, com dois anos de vida, em guerra vitoriosa com Castela, preparasse e convocasse umas Cortes para aí ver aprovado o triunfo do inimigo. Se os argumentos de João das Regras não tivessem sido aceites pelos nobres legitimistas, os senhores do novo regime teriam acabado por seguir o oferecimento de Nun'Alvares: despachar o Mestre de seu estorvo... A justificação jurídica teve o mérito de alargar o campo dos que apoiavam a revolução burguesa e de arrancar ao inimigo a bandeira da legalidade, do direito e da tradição.

As Cortes de 1385 foram, na sua época, um parlamento revolucionário, surgindo por um momento na história portuguesa como expressão de uma vontade nacional soberana. Não bastou a justificação jurídica de João das Regras para investir o Mestre nos poderes da realeza. As Cortes afirmam expressamente que nomeiam e escolhem D. João para rei e senhor e outorgam que se chame rei.

As decisões das Cortes de 1385 marcam, na sua multiplicidade e autoridade, a decisiva influência burguesa na direcção da política central. São as Cortes que nomeiam o Conselho do rei, impondo uma maioria burguesa: quatro letrados e quatro representantes dos concelhos, num total de catorze membros. Elas decidem a sua própria convocação anual. Estabelecem que nem sisas nem questões de paz ou de guerra possam assentar-se sem sua expressa deliberação. Comprometem-se a obter e dar ao rei 400 000 libras para despesas de guerra. E, numa grande série de questões económicas, políticas, administrativas, dão satisfação às reclamações burguesas atingem gravemente os privilégios da reza e do clero. As Cortes de 1385, embora realizadas já depois do esmagamento dos focos de rebelião camponesa e proletária, são, pelas suas resoluções, uma prova do carácter de classe da revolução e do retumbante triunfo da burguesia.

Uma das preocupações das Cortes foi assegurar, pelas suas medidas, a continuação vitoriosa da guerra. Tal guerra era justamente compreendida como uma causa que interessava às classes populares e particularmente à burguesia. E, na verdade, pela sua natureza de guerra nacional contra a nobreza e seus associados castelhanos e pelas novas soluções tácticas encontradas no terreno militar, tal guerra era bem uma guerra revolucionária da burguesia.

O próprio facto da insurreição alterou o panorama militar do país. A insurreição foi o embate entre as massas populares e as forças militares organizadas, na sua esmagadora maioria contra-revolucionárias. Desse embate saíram vitoriosas as massas populares. Frente aos castelos, «os povos meúdos (conforma conta o cronista) mal armados e sem capitães, com os ventres ao sol, antes do meio-dia os pilhavam por força». E os aristocratas, militares profissionais, foram vencidos pelos vilãos insurrectos. Vencida a nobreza na insurreição, mas não ainda batida na guerra de intervenção de Castela que provocara, o novo Estado português deixou de contar com a cavalaria como força fundamental do seu exército. Doravante, na guerra contra Castela, defrontar-se-ão sempre e sistematicamente, a cavalaria castelhana contra a infantaria dos portugueses, mostrando-se assim, no próprio terreno militar, que a guerra não era senão uma nova fase da luta dos burgueses contra os aristocratas.

Em Portugal, como em outros países, o aperfeiçoamento da arma de infantaria foi um produto das necessidades de a burguesia ascendente fazer frente, no campo da luta armada, às forças do Estado feudal, à cavalaria aristocrática. Já em 1302, na célebre batalha de Courtrai, a cavalaria de Filipe-o-Belo conheceu duramente os méritos da infantaria municipal. E em Azincourt (1415), os senhores feudais franceses virão a sentir na carne a nova táctica burguesa posta em prática pelos guerreiros de Inglaterra. Em Portugal, o desenvolvimento das forças militares da burguesia acompanhou o desenvolvimento da sua importância económica e da sua luta contra a ordem feudal. Nos princípios do século XIII, na batalha de Navas, já se mostrou o valor da pionagem dos nossos concelhos. A importância dos besteiros nas forças armadas portuguesas, quando se verificava que, em vários países, os senhores feudais restringiam ou dissolviam os corpos de besteiros, dava um papel crescente ao elemento popular, designadamente aos mesteirais, criando condições favoráveis para o embate contra a cavalaria aristocrática que se veio a dar na revolução do fim do século XIV.

A táctica militar «pé terra» não foi pois uma descoberta de generais nobres, mas uma criação espontânea das massas populares e seus dirigentes, resultante da própria evolução dos acontecimentos históricos e da natureza de classe da revolução e da guerra.

A composição de classe das forças militares portuguesas ficou imperecivelmente registada na crónica de Fernão Lopes. O inimigo derrotado não viu na sua frente, como vencedores, essa tão cantada Ala dos Namorados. Sentiu bem ter sido derrotado pelos vilãos. Lamenta-se pela derrota e, mais do que pela derrota, pelo facto de os triunfadores terem sido, não nobres e cavaleiros, mas «chamorros», vivendo em tão pobres casas e em tão pobres aldeias que os guerreiros fidalgos de Espanha se fazem perfumar para perderem os maus cheiros...

Em Aljubarrota, enquanto nas hostes castelhanas predominava a cavalaria (falou-se em 20 000 cavaleiros em 30 000 combatentes), nas hostes portuguesas predominava a infantaria (2000 lanças, 800 besteiros, 4000 peões). Tanto pela composição das forças em presença como pelo desenrolar da luta, segundo os relatos que nos ficaram, se pode dizer com justiça que Aljubarrota foi uma vitória da infantaria burguesa contra a cavalaria aristocrática, foi não a batalha de uma nação contra outra nação, mas a batalha dos burgueses revolucionários de Portugal contra a nobreza reaccionária de Portugal e Castela. O carácter de luta pela independência racional, originado pela intervenção castelhana na revolução portuguesa dá a esta batalha um significado muito particular para a nação portuguesa. Há porém razões para que seja celebrada actualmente por todas as forças progressivas e em particular pelo proletariado. Aljubarrota é um dos pontos culminantes da luta de classes na Península e um triunfo das forças progressivas contra as forças reaccionárias.

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(1) António Sérgio, Prefácio à Crónica de D. João I de Fernão Lopes, p. XIV..

(2) Jaime Cortesão, História do Regime Republicano em Portugal, fasc. 3, Lisboa, 1930, p. 85.

(3) Ibidem, p. 93.

(4) T. Sousa Soares, in Gama Barros História da Administração Pública em Portugal, t. V, p. 401. Obs. LX.

(5) T. Sousa Soares, idem, t. III, pp. 369-370, obs. LVIII..

(6) António Sérgio, Prefácio à Crónica de D. João I, ed. cit., p. XII.

(7) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. XLVI.

(8) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. LXXXVIII.


Fonte:
Álvaro Cunhal,
As Lutas de Classes em Portugal nos fins da Idade Média,
Lisboa, Estampa, 1975, (1.ª Ed., 1967)
páginas 33 a 95.

Resposta

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#116727 | artur41 | 17 abr 2006 18:05 | Em resposta a: #116716

Caros Confrades,

Uma outra, do mesmo «Portal»:


"A Revolução de 1383 - 1385 segundo Jaime Cortesão.

Jaime Cortesão introduziu a questão social na visão da crise de 1383-1385. Para este autor a revolução de 1383 é nacional nas suas causas, no objectivo, e no seu âmbito, mas é também uma revolução social, «urbana e popular», devido à parte que as massas dos grandes centros urbanos têm nela e porque «as classes populares adquirem de súbito um incontestável ascendente». O artigo é publicado logo a seguir ao golpe militar do 28 de Maio de 1926 e já no exílio.


«A Revolução de 1383 e as suas consequências ...».

Não nos propomos fazer o relato histórico da revolução, que terminou com a batalha de Aljubarrota e a subida ao trono de D. João, Mestre de Avis. Cabe-nos apenas apontar-lhe os objectivos e definir-lhe o carácter e as consequências sociais – o que, se nos afigura, ainda não foi suficientemente esclarecido. A revolução de 1383, nacional nas suas causas próximas e no objectivo directo, evitar a usurpação estrangeira, nacional ainda porque se apresenta em conjunto (e nisto vamos contra a opinião geral) como a obra da maioria da nação e não duma pequena parte; e o resultado da colaboração, ainda que em proporções diferentes, de todas as classes, foi, pelas causas remotas, o predomínio das cidades entre os elementos decisivos, e as consequências, uma revolução social, caracteristicamente urbana e popular. As massas dos grandes centros urbanos, ainda que com o predomínio dos elementos mais estritamente populares, a grande maioria dos letrados e legistas, uma grande parte do clero, e, na fidalguia, o escol dos novos, a geração mais completamente evoluída, aderem calorosamente à revolução. Passemos agora a destrinçar, dentre a massa dos factos, aqueles que justificam, a nosso ver, esta interpretação.

A crermos no testemunho do probo Fernão Lopes, a conjura foi urdida por um letrado, Álvaro Pais, que deu o primeiro impulso à revolução, e por dois fidalgos, Rui Pereira e Álvaro Vasques de Góis. Mas, ainda o astuto chanceler, sacrificando o pundonor nas aras da razão do Estado, negociava em Alenquer um entendimento com a rainha, a quem propunha o casamento com o Mestre, e já o povo, que não via com bons olhos tais negociações, levara D. João a ficar em Lisboa e aclamava-o com delírio unânime Regedor e Defensor do Reino. Com delírio unânime, não é de todo exacto. Na assembleia popular de S. Domingos, onde o povo em massa jurou sacrificar vidas e haveres ao serviço do Mestre e da tenção que ele aceitara, não compareceram os principais da burguesia. E resolveu-se que, no dia seguinte, os convocasse à câmara do concelho para os ouvir e lhes pedir assentimento. A hora marcada, e todos juntos na câmara da cidade, perguntou-lhes o Mestre se acordavam no voto do povo que o elegera Defensor. Mas os bons dos burgueses, duvidosos do êxito de tamanha empresa, vacilavam; e, cada um murmurando ao ouvido do vizinho os seus temores, nenhum ousava responder. Então um tanoeiro, que chamavam Afonso Eanes Penedo, vendo que nenhum falava, disse-lhes, pondo a mão na espada:

«...Vós outros que estais assim fazendo? Quereis vós outorgar o que vos dizem? Ou dizei que não quereis, que eu em esta cousa não tenho mais aventurado que esta garganta, e quem isto não quiser outorgar logo há mister que o pague pela sua, antes que daqui parta.»

«E todos os que ali estavam do povo miúdo -acrescenta Fernão Lopes – aquela mesma razão disseram.» E foi, convencidos por estes sólidos argumentos, que os burgueses assentiram e por seu punho firmaram o acto da eleição. Os pequenos, a arraia-miúda, os mesteirais de Lisboa, tinham dado o segundo impulso à revolução. Em breve a eleição do Mestre seria confirmada pelas demais cidades do Reino. Afonso Penedo vingava Fernão Vasques.

Quando Álvaro Pais chegou da corte de Alenquer, com as cartas da rainha, que recusara a proposta do consórcio, mas hipocritamente segurava a cidade, o Mestre, que trabalhava já na escolha dos membros do seu conselho, recusou-se a lê-Ias, e teatralmente - o discípulo aproveitara as lições do chanceler - rompeu as cartas, publicando assim o seu firme propósito de luta. Os acontecimentos precipitavam-se com rapidez tamanha que excedia as previsões dos dirigentes. E pode dizer-se que nos dois meses seguintes a situação se esclareceu inteiramente. Estavam formados e postos frente a frente os dois partidos: dum lado, os que defendiam a independência nacional, chefiados pelo Mestre de Avis; do outro, os que, perdidos os primeiros assomos de pundonor, pois de princípio exigiam o respeito aos tratos, acabaram por bandear-se abertamente com o rei de Castela.

(...)

A leitura dessa obra, genialmente efabulada, que é a Crónica de D. João I por Fernão Lopes, deixa-nos entrever, em pinceladas magistrais, a visão épica e desvairada da revolta. «Os pequenos aos grandes depois que cobraram coração se juntavam todos em um, contra eles, chamavam-lhes traidores, cismáticos, que tinham a parte dos Castelhanos, para darem o Reino a cujo não era... E era maravilha de ver que tanto esforço dava Deus neles e tanta cobardice nos outros que os castelos que os antigos reis por. longo tempo, jazendo sobre eles com força de armas, não podiam tomar, os povos miúdos mal armados e sem capitão, com os ventres ao sol, antes do meio-dia os tomavam por força». Em Elvas já o povo se havia apoderado do castelo, apenas o alcaide mandara lançar pregão por D. Beatriz. Em Beja, a 6 de Janeiro, o povo, incitado por «um que chamavam Gonçalo Ovelheiro», cerca o castelo, põe fogo às portas, irrompe dentro dele, enquanto o alcaide, partidário da rainha, consegue pôr-se a salvo. Ao almirante Lançarote, que se dirigia a Odemira, para se alçar com o castelo e tomar voz pela rainha, vão buscá-lo ao caminho, arrastam-no para a cidade e aí o matam. Em Portalegre, o povo da vila juntou-se na manhã de 7 de Janeiro e começou a combatê-lo tão ardidamente que ao meio-dia estava tomado. Em Estremoz e em Évora, a turba amotinada apodera-se dos castelos com o seguinte estratagema: prendem e amarram as mulheres e filhos dos que estavam a defendê-los, e ameaçam de os queimar à sua vista – «que era um jogo que os povos miúdos em semelhante caso muito costumavam fazer».

Mas em Évora a revolta teve mais trágico desfecho. Tomado o castelo, a arraia-miúda, capitaneada por um cabreiro e um alfaiate, apoderou-se da cidade; e os grandes – pequenos fidalgos e burgueses, todos havidos por suspeitos, foram uns lançados fora, e outros assassinados, sorte que a própria abadessa de S. Bento não poupou. Acusada de partidária da rainha e de lançar insultos contra o povo, foram buscá-la à Sé, onde com as demais freiras assistia à missa. Ouvindo a turba que irrompia clamorosa pelo templo, a monja alucinada, posta. Sobre os ombros uma capa de cerimónia, correu para o altar, tomou da hóstia consagrada e abraçou-se a ela. Mas nem isso a livrou da onda bruta e sanguinária. No Porto, «aqueles que chamavam arraia-miúda disseram a um por nome Álvaro da Veiga que levasse a bandeira pela vila e voz em nome do Mestre de Avis,; e como ele recusasse, crivaram-no de cutiladas, aos gritos de: Traidor! Outro burguês, mais avisado, antes que o convidassem, apressou-se a tomar a bandeira e a bradar o pregão da independência. E a turba, sobre quem havia dezenas de anos pesava a excomunhão - nem os que faleciam se enterravam em sagrado -, mandou alumiar os templos, dobrar os sinos, celebrar ofícios, e foi-se aos cemitérios desenterrar os cadáveres para os sepultar de novo dentro das igrejas. Até aos mortos chegara a sua hora!

E foi assim por quase todo o Reino. A este mesmo tempo, descia o rei de Castela com o seu exército pelo vale do Mondego e a seguir o do Tejo; e nos lugares mais importantes, na Guarda, em Coimbra, em Tomar, onde lhe mataram de noite 60 homens, ele recebeu provas eloquentes de que o povo repelia o seu domínio. Até as mulheres iam buscar aqueles que tomavam o partido do estrangeiro e por suas mãos os acabavam. E, diz o cronista, a fechar a descrição do alevantamento épico: «como alguém dissesse: «Fuão é deles», não havia coisa que lhe desse a vida, nem justiça que o livrasse das suas mãos.» E isto era especialmente contra os mais poderosos ou ricos dos lugares «...e os miúdos corriam após eles, buscavam-nos e prendiam-nos tão de vontade que parecia que lidavam pela Fé» (Cap. 47) (134).

(...)

Que parte coube a cada uma das classes no êxito da revolução? Dentre o povo que explora a terra e o mar, que trabuca na oficina e mercadeja dentro e fora do Reino, avultam como elemento dominante as classes urbanas e as populações marítimas, mas dentre estas o papel da burguesia, a arraia-miúda dos mercadores, foi menos relevante que o da arraia-miúda dos mesteirais, aos quais pertence em quase toda a parte o primeiro arranque. Os homens bons do Porto, de Lisboa e Coimbra abriram sempre generosamente as bolsas para acudir a quantas despesas, e foram imensas, a luta acarretou, até para espertar o gesto tantas vezes tardo ou duvidoso dos fidalgos. Mas os miúdos, dentro do seu tanto, fizeram o mesmo; e os clérigos, por exemplo, em Lisboa, não hesitaram em sacrificar as próprias alfaias preciosas das igrejas. E enquanto Fernão Lopes continuamente atribui não só o principal papel nos alevantes à arraia-miúda, mas nomeia vários dos pequenos que se notabilizaram em Santarém, Lisboa, Évora, Beja e Estremoz, individua um único burguês com acção de vulto, e esse, aliás figura do maior relevo na história da revolução, como era de esperar, cidadão portuense. João Ramalho, «mercador do Porto, bem rico e bem atrevido no mar», dirige de combinação com o Mestre os acontecimentos políticos no grande burgo do Norte; aquando a vinda sobre a cidade do arcebispo de Santiago de Compostela, comanda no rio Leça uma audaciosa operação contra as forças galegas, que põe em debandada; finalmente é ele que se insinua de noite num batel por entre a armada castelhana que bloqueia Lisboa, para ir anunciar ao Mestre a chegada da frota do Porto, combinar com ele as disposições do ataque, e regressar, poucas horas volvidas, a Cascais, onde os navios portugueses esperavam (Cap. 120, 122 e 131). João Ramalho, representante duma classe local que, em bloco, teve parte notabilíssima na revolução, é, todavia, o único mercador que pode apontar-se entre a élite dos chefes. Indirectamente, é certo, a burguesia marítima, preparando a aliança inglesa, que trouxe ao Mestre um forte apoio financeiro e militar, pagando, não obstante, com as mercadorias que tinha nos portos de Inglaterra, parte das despesas do alistamento dos archeiros britânicos, prestou um serviço digno de lembrar-se.

Em proporção é a classe dos letrados, como já vimos, que fornece maior número de elementos dirigentes. Lembremos, para citar apenas os de maior acção, Álvaro Pais, que prepara a conjura inicial, Lourenço Eanes Fogaça, que vai a Inglaterra, acompanhado do Mestre de Santiago, negociar a aliança inglesa, e João das Regras, que nas Cortes de Coimbra, antes da batalha de Aljubarrota, arranca, com uma série de discursos magistrais, aos fidalgos da Beira, renitentemente fiéis ao princípio da legitimidade, os votos que faltavam para a aclamação unânime de D. João, como rei de Portugal. Tudo convence que o clero, cujo prestígio tanto minguara, pelos sucessivos golpes dos monarcas, apoiados no povo, e da profunda decadência do papado, aderiu em maioria à revolução. Nas Cortes de Coimbra, vêem-se, além do denodado arcebispo de Braga, os bispos de Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Lamego e Guarda, isto é, de todas as dioceses do Reino, à excepção de duas. Se acrescentarmos que o prior de Santa Cruz também assistiu às Cortes colectivas e que o prior de Alcobaça, que representava com o anterior as duas mais poderosas dignidades monásticas, esteve sempre, com o castelo e todas as terras da Ordem, ao lado do Mestre; e que os Franciscanos, a mais numerosa e popular das Ordens em Portugal, nos aparecem de contínuo na defesa da causa nacional, supomos haver dito o bastante para convencer do que afirmamos. Quanto às Ordens militares, cujos freires pertenciam ao clero pelos votos e à nobreza militar pela origem e a profissão, o mesmo podemos avançar. Da Ordem de Avis, o próprio Mestre dirige a revolução. Das de Cristo e Santiago, aderem desde o começo os mestres Lopo Dias de Sousa e Fernão de Albuquerque, com as suas gentes e fortalezas, apoio cujo grande valor não há mister realçarmos. Da mesma Ordem do Hospital, ainda que o prior nomeado por D. Fernando, D. Pedro Álvares, irmão de Nuno Álvares, se tenha passado para o inimigo, o comendador Álvaro Gonçalves Camelo, que fora indicado pelo grão-mestre da Ordem, mas não conseguira o assentimento do monarca, para reger o mestrado em Portugal, abraça desde a origem a causa de D. João, ao qual presta os melhores serviços.

Finalmente, da nobreza propriamente dita, se a maior parte dos velhos fidalgos se inclinam para o rei de Castela, e até alguns dos que apoiam o Mestre, quando não o atraiçoam, se mostram por demais remissos em servi-lo, a geração nova lança-se com entusiasmo no partido da independência nacional. Muitos desses generosos moços fogem aos pais, ou àqueles que exercem tal autoridade, para enfileirar ao lado do Defensor do Reino. É Nuno Álvares, o futuro condestável, que abandona o irmão mais velho para vir ter a Lisboa, mal o Mestre é nomeado Regedor, e com ele Fernão Pereira e Rodrigues Álvares, seus irmãos; são Mem de Vasconcelos e Rui Mendes de Vasconcelos, que em breve ocuparão o lugar principal à frente da Ala dos Namorados, e que deixam seu pai, o grande fidalgo Gonçalo Mendes de Vasconcelos, em Coimbra, ainda fiel à rainha, e vão para Lisboa durante o cerco. É João Gomes da Silva, futuro alferes-mor do Reino, que deixa o pai em Montemor-o-Velho, ainda vacilante entre os dois partidos, e se dirige ao Porto, a embarcar-se na frota para Lisboa; é Vasco Martins de Melo, o Moço, que mais tarde morre ao fim da batalha de Aljubarrota, quando temerariamente se propunha prender o rei de Castela, e Afonso Martins de Melo, um dos mais brilhantes e fiéis companheiros de Nuno Álvares e Gonçalo Vasques, filhos de Vasco Martins de Melo, que acompanhara a rainha D. Beatriz ao ir para Castela; é João Fernandes Pacheco, filho de Diogo Lopes Pacheco e organizador das forças que vencem a batalha de Trancoso; são Mice Manuel e Mice Carlos, os filhos do almirante assassinado em Beja; é enfim o próprio chefe da revolta – selecção brilhantíssima à qual não pode recusar-se a parte decisiva na direcção da luta militar.

Nacional como dissemos, no objectivo directo não deixa de sentir-se através dos eventos singulares o carácter nitidamente popular da revolução e como consequência, de começo, certo ambiente anti-clerical, hostilidade que se estende aos nobres e até por vezes aos burgueses. Popular, foi ainda urbana; assinalou-se não só nas grandes cidades marítimas como nos centros urbanos em geral, e, se província houve que se notabilizasse no alevante, foi o Alentejo, onde desde longa data, como vimos, o tipo da aglomeração urbana dominava. A hoste de Nuno Álvares, a que venceu em Atoleiros, em Aljubarrota e em Valverde, compunha-se na totalidade de gente do Alentejo e do Algarve, com alguns poucos de Lisboa (Cai. 88 e 1,59). Froissart, o cronista francês, contemporâneo destes acontecimentos, sobre os quais escutou vários testemunhos directos, não esquecendo o de João Fernandes Pacheco, já assinalara este carácter urbano e popular da revolução, ao dizer que ela fora organizada pelas quatro grandes comunas do Reino, Lisboa, Porto, Coimbra e Évora (137).

(...)

As consequências do triunfo da revolução foram imensas e decisivas. As classes populares adquirem de súbito um incontestável ascendente. Logo nas Cortes de Coimbra, em 1385, os representantes dos concelhos pedem ao novo monarca que se rodeie de bons conselheiros, que os escolha entre as quatro classes que compunham o Reino, prelados, fidalgos, letrados e cidadãos; e vai até indicar-lhe os nomes das pessoas a escolher dentre as três primeiras classes, e ainda de vários cidadãos de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora. D. João escolheu, dentre esses, um prelado, dois fidalgos, três letrados e quatro cidadãos, um de cada uma das cidades indicadas. De golpe, no Conselho do rei ficavam dominando os cidadãos e os letrados. Na mesma reunião reclamam os concelhos igualmente que as Cortes sejam convocadas todos os anos, o que até o reinado de D. João 11 se realiza com certa regularidade. Alegam que «recebem mal e dano dos poderosos e de seus oficiais», e entendem que o Reino tem necessidade de se reformar em direito e em justiça (138). Desde então e durante um século, ouvir-se-ão em Cortes os procuradores dos concelhos insistir, por vezes em termos desabridos e altaneiros, pelas medidas que realizem aquela ideia de Reforma. Apoiado por estas reclamações unânimes e constantes, o rei, rodeado de legistas, que dão expressão jurídica a essas aspirações, começa a grande obra de unificação social, cerceando passo a passo privilégios do clero e da nobreza e sujeitando-os aos ditames da lei comum. Nas Cortes de 1387 são votadas sisas gerais com a determinação expressa de que ninguém, por privilegiado que fosse, nem o rei nem a rainha, ficasse isento desse imposto. Primeiro grande passo no caminho da Reforma. «Data desta reunião das Cortes, escreve Gama Barros, a existência do primeiro imposto de carácter geral e permanente (139).» E para se avaliar bem a importância desse contributo, bastará dizer-se que a quantia assim cobrada representou, durante o reinado de D. João I, mais de três quartos do total das rendas públicas (140). A prova do ascendente que as classes populares haviam alcançado está em que, não obstante as contínuas reclamações do clero e da nobreza, aquele imposto se manteve com o mesmo carácter até o ano de 1498, em que D. Manuel o aboliu em parte e de novo em relação ao clero.

Golpe mais profundo ainda, pois levava a reforma ao âmago da organização social, foi o que D. João I, aconselhado por João das Regras, vibrou contra a nobreza, arrancando-lhe a troco de dinheiro, mas na moeda empobrecida de então, grande parte das terras doadas, e tomando para si os vassalos dos fidalgos, que até aí serviam militarmente sob a bandeira de cada um, e pagando-lhes directamente as contias respectivas.

(...)

Com a revolução de 1383, Portugal entra na maioridade; na sua política interior dominam as tendências laicas e civilistas, condição essencial para a dignificação e liberdade dos povos; e o Estado atinge a forma de organização que lhe permite resolver o grande problema da expansão da Europa e do conhecimento do planeta.

Ao findar o século XV, com o reinado do Príncipe Perfeito, soa para a Nação um momento raro e fugidio na sua história. O princípio da liberdade e o da autoridade atingem um equilíbrio, indispensável à realização das grandes tendências nacionais. Por um lado sem a dignificação do trabalho e das classes populares, desopressas e enobrecidas pelo acesso, ainda que precário, à direcção dos negócios públicos, a Nação não teria atingido, em massa, essa consciência épica que lhe permitiu, sendo tão pequena, realizar a maior façanha de toda a história. Por outro, a obra nacional dos Descobrimentos era e tinha que ser tão secreta nos fins, metódica nos processos, e ávida de abnegações sublimes, que não haveria alcançado o termo sem os rigores duma forte disciplina social e moral, livremente aceite por quase todos e os melhores, e imposta às oligarquias dissolventes, morbo terrível que acaba por destruir as sociedades que o não podem ou não sabem eliminar com energia.

--------------------------------------------------------------------------------

(134) Por brevidade, citamos assim a Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, parte I.
(137) V. sobre o que dissemos em revista Lusitânia, n.º 3.
(138) Palavras textuais dos procuradores. Vide Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa, tomo I, p. 109.
(139) Obra cit., IV, p. 230.
(140) J. Lúcio de Azevedo, Épocas do Portugal Económico, p. 49.


Fonte:
Jaime Cortesão,
«A Revolução de 1383 e as suas consequências: A Reforma democrática da Sociedade e a Organização do Estado Descobridor. Conclusão» in
Os factores democráticos na formação de Portugal,
2.ª Ed., Lisboa, Portugália, «Obras Completas de Jaime Cortesão I - História: Volume 1», 1966,
(1.ª Ed., 1930),
páginas 133 a 158."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#116815 | artur41 | 18 abr 2006 17:33 | Em resposta a: #116727

Caros Confrades,

Mais um ponto de vista, do «Portal»:


"A Revolução de 1383 - 1385 segundo José Mattoso.

Para José Mattoso a polémica sobre a crise de 1383 a 1385 impediu «averiguar o que efectivamente se passou», devido aos objectivos políticos imediatos dos participantes na polémica. Primeiro dos opositores ao regime nascido do golpe militar de 28 de Maio de 1928, salientando as oposições, depois dos defensores do regime, defendendo a harmonia social. É com base em investigações da Professora Maria José Pimenta Ferro Tavares, que José Mattoso concluirá pela inexistência da luta de classes marxista, nem da harmonia social corporativista, mas pela existência de conflitos sociais abertos que não eram de qualquer maneira capazes de explicar a crise revolucionária. A resposta de José Mattoso virá em 1985.


LUTAS DE CLASSES ?

Os contrastes verificados na descrição das estruturas sociais no capítulo anterior [«O contraste entre a cidade e o campo»] mostravam já toda uma série de pontos de fricção entre grupos sociais, de oposições de interesses, de domínio pela economia, pela força ou pelo direito da parte de uns e de submissão passiva ou revoltada de outros. O contraste mais evidente, mais determinante do funcionamento das estruturas, verifica-se entre a cidade e o campo. Este, como é óbvio, não pode evoluir para o conflito aberto, para a revolta dos camponeses contra as cidades, porque o domínio destas se faz por meio da subtil mutação do funcionamento dos sistemas de produção, de circulação e de consumo e porque as cidades aparecem aos olhos dos camponeses com a promessa de uma melhoria das condições de vida e de trabalho, apesar da exploração a que elas os submetem. Mas a posse dos instrumentos de produção; e simplesmente do poder e da riqueza, que garante melhores condições de vida aos mercadores e nobres e leva a penúria aos trabalhadores da terra, aos artífices e a alguns intermediários, cria situações de conflito, umas vezes latente, outras aberto. É aquilo a que se pode chamar o começo da luta de classes, embora esta se processe em termos e condições bem diferentes das que caracterizam o mesmo conflito no mundo capitalista. As lutas entre a burguesia e a nobreza inspiraram já as páginas de Jaime Cortesão e de António Sérgio sobre o fim da Idade Média portuguesa; as que opuseram os camponeses e o proletariado urbano aos detentores dos meios de produção foram acentuadas em obras bem conhecidas de Álvaro Cunhal, de António Borges Coelho e de Armando Castro. O que aparecia demasiado influenciado por esquemas teóricos em todos estes autores, mas sobretudo nos marxistas, ao ponto de se descrever como surpreendente revolução do trabalho contra o capital, ou melhor, como aplicação exemplar dos mecanismos da economia política marxista, levará a tentativas de demonstração oposta, bem tímidas por sinal, da parte da historiografia oficial durante os anos 40 a 60. Estas tentativas propunham-se acentuar a complementaridade harmónica das forças sociais, a arbitragem vigilante e equitativa do rei, a firmeza da autoridade estatal centralizadora e progressista, precursora de um Estado Novo pacificador das tensões sociais, sapiente condutor do povo em direcção à prosperidade material e prudente preservador das suas tradições ancestrais e valores morais. O sucesso político dos governantes de outrora, sobretudo os da Idade Média, faziam de Portugal uma excepção no panorama retalhado de lutas fratricidas e de turbulências feudais, permitidas por reis impotentes na repressão dos privilegiados.

Os objectivos políticos imediatos das escolas interpretativas dos conflitos sociais no nosso país paralisaram a investigação objectiva, impediram de averiguar o que efectivamente se passou, descoberto por comparação com as hipóteses interpretativas do materialismo dialéctico ou com as do idealismo político. Apesar das tentativas, quase sempre apressadas, de muitos principiantes durante os últimos anos, a questão permanece razoavelmente obscura. Não será, certamente, nesta obra que se resolverá, dada a falta de análises aprofundadas sobre questões fundamentais. Aqui apenas poderão apresentar-se alguns dados dispersos que afloram aqui e além, entre os estudos e a documentação já publicados, e traçar umas quantas considerações gerais que parecem condicionar a investigação futura e provavelmente limitam as soluções possíveis.
(...)

Os conflitos abertos

O levantamento mais exacto e objectivo de conflitos abertos durante o século XIV deve-se a Maria José Ferro [Tavares] e abrange o reinado de D. Fernando, isto é, o período que vai de 1367 a 1383. Aproveitando todas as referências a confiscações de bens e castigos de «uniões» populares, encontra-se, na verdade, uma quantidade considerável de factos que manifestam ambiente propicio à revolta e a conflitos violentos. Uma parte das sentenças régias caem sobre indivíduos acusados de terem colaborado com os Castelhanos em tempo de guerra. Mesmo se excluirmos estes actos, cuja interpretação social não é segura, encontramos ainda um bom número de casos que podem ser interpretados seguramente como revoltas, embora não seja fácil medir exactamente a sua extensão.

A mais conhecida é, evidentemente, a de Fernão Vasques, o célebre alfaiate de Lisboa que levantou voz contra o casamento do rei em 1371. À primeira vista, o motivo é um acto da vida privada do monarca; mas tendo os protestos surgido em Lisboa, Santarém, Alenquer, Tomar, Abrantes e outros lugares, como diz Fernão Lopes, tendo-se juntado até 3000 mesteirais, besteiros e homens de pé e considerando finalmente que «muito nom prazia a todollos fidallgos e privados d'el rei deste ajuntamento que o poboo fazia», não pode deixar de se conceber o motivo como mero pretexto e de se atribuir ao movimento uma amplidão que só pode indicar o seu carácter social. De resto, o movimento arrasta-se e até se agrava. Entre 1373 e 1379 encontramos a menção expressa de várias «uniões» (é o termo usado pelos documentos) contra o rei. No primeiro daqueles anos são punidos dois ourives, um mercador, um ex-escrivão dos judeus, um faqueiro, dois carpinteiros e um correeiro de Lisboa, indivíduos de profissão desconhecida em Abrantes, Tomar e Leiria (dois), e catorze revoltosos em Santarém, entre os quais um tabelião, um estalajadeiro e sete sapateiros. Depois documentam-se novas «uniões», designadamente uma em Portel em 1374, outra em Montemor-o-Velho em 1375 e finalmente em Sousel, Valença e Tomar em 1379. Dado que a maioria dos culpados cujas profissões são conhecidas exercem trabalhos artesanais, compreende-se que a autora chame ao seu estudo A Revolta dos Mesteirais.

As uniões deviam dirigir-se mais contra o grupo de nobres que, pelo menos desde o casamento do rei com Leonor Teles, dominava a corte do que propriamente contra o monarca. Personificavam neles os malefícios que assolavam o Reino e oprimiam o povo. Os Teles e os seus protegidos, com o favoritismo (descrito por Fernão Lopes com acinte) que ameaçava desviar em favor deles toda a espécie de recursos, provocavam não só a oposição dos mesteirais, que tentavam verdadeiras revoltas organizadas, como demonstra a palavra «união», as quais se estendiam, espontânea ou concertadamente, a várias cidades do centro do País, mas também dos procuradores dos concelhos que reclamavam contra as abusivas doações do rei e a concessão de jurisdição sobre os concelhos, o que fazia protestar também outros nobres que eram preteridos ou afastados do poder. Dai a revolta aberta de João Lourenço da Cunha em 1379, de Diogo Lopes Pacheco em 1380, do infante D. João em 1383 e logo a seguir dos dois irmãos João Nunes e Pêro Nunes de Aguiar, quer dizer, de membros das mais poderosas famílias do Reino. Acrescente-se a atitude crítica de alguns Pereiras, certamente dos mais jovens, e ver-se-á como a oposição vai alastrando sem cessar e dificilmente poderia deixar de eclodir quando a regência foi entregue a D. Leonor.

Estes dados do problema mostram como devia ser provocatória, numa época de grave crise económica e de contradições sociais, a concentração dos postos políticos mais importantes nas mãos de um grupo restrito e ganancioso. O reinado de D. Fernando., no entanto, não se resume ao abandono a esta facção. Tomou também decisões de grande projecção, mostrou-se capaz de organizar empreendimentos que requeriam tanto investimento material e humano como a construção das muralhas de Lisboa e de outras povoações, deu apoio à bolsa de seguro dos comerciantes marítimos de Lisboa e Porto, revogou alguns dos privilégios concedidos aos nobres em 1371, reduziu a jurisdição senhorial nos casos de crime, aumentou a frota marítima, protegeu os armadores nacionais, promulgou a Lei das Sesmarias e praticou outros actos que só podiam ser inspirados por conselheiros não nobres. O rei via-se, assim, entre duas tendências, e oscilava de uma para outra sem conseguir desenvolver uma política coerente.

O agravamento da revolta contra o partido dos Teles e a intervenção das camadas inferiores da população nos movimentos insurreccionais faziam prever a participação maciça da arraia-miúda na revolução de 1383. Os levantamentos deram-se em muitas povoações alentejanas, nomeadamente em Portalegre, Elvas, Estremoz, Évora, Beja, Odemira e Montemor-o-Novo, além de se terem verificado também em Lisboa e no Porto. Noutras localidades é ainda a plebe que obriga as guarnições dos castelos a negarem obediência à rainha, como acontece em Óbidos, Santarém, Alenquer, Vila Viçosa, Mértola e Braga. Estes factos são importantes para se poder deduzir a importância das forças populares nos conflitos abertos contra os detentores do poder, no momento em que a revolução alastra por todo o país. É evidente, porém, que ela não se pode reduzir a um problema de luta de classes. A arraia-miúda raramente tenta organizar-se para conservar o poder ou subverter a ordem social. Basta-lhe expulsar ou linchar os simpatizantes do grupo que antes dominava o rei ou aqueles que simbolizavam a opressão a nível local. Basta-lhe, a seguir, impedir o regresso da mesma facção, protegida agora por Castela e apoiada pelos nobres exilados. Basta-lhe, no caso de Lisboa, conseguir a intervenção dos mesteres nas principais deliberações respeitantes ao governo da cidade.

Os conflitos abertos têm, portanto, aspectos que não podem deixar de se relacionar com a disparidade social e a oposição de interesses entre os detentores do poder ou dos meios de produção e os explorados, mas dificilmente se poderá compreender a complexidade da revolução sem o recurso a factores de outra ordem.


Fonte:
José Mattoso,
«Lutas de Classes?» in
José Hermano Saraiva (dir.), História de Portugal, Volume 3,
Lisboa, Publicações Alfa, 1983,
páginas 193 a 199."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#117704 | artur41 | 30 abr 2006 20:00 | Em resposta a: #116815

Caros Confrades,

Ainda do «Portal»:


"A Revolução de 1383 - 1385 segundo Joel Serrão.

Joel Serrão defende que houve duas revoluções. A de 1383 realizada pela «arraia-miúda», e uma segunda, em 1385, realizada pela burguesia, e que se dá «pela miragem do ouro, das especiarias e dos escravos ...»


II. A revolução de 1383

( 3 )

Falecido D. Fernando, automaticamente, como ficara estabelecido no acordo entre ele e o rei castelhano, para o sucessor do trono português, D. Leonor Teles assume a regência do reino. Só quando um filho ou filha de D. Beatriz casada com D. João de Castela atingisse catorze anos, cessaria o seu cargo de regente e assim dar‑se‑ia continuidade à independência política da Nação. Os «homens bons» pretenderam logo consolidar a sua posição económico-social pelo pedido da expulsão dos judeus e dos mouros dos cargos públicos por eles ocupados, e da inclusão no conselho régio de dois homens bons» ‑de cada uma das seguintes comarcas – Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes, Beira, Extremadura, Entre Tejo e Guadiana, e a tudo a regente prontamente atendeu. Enquanto a classe dos «homens bons» tinha razões para evidenciar a sua boa disposição para com D. Leonor Teles, o poboo meudo de Lisboa, Santarém, Elvas e muitas outras vilas e aldeias, irrompeu em doestos e em tumultos quando, por mandado da regente, se procedeu à aclamação da rainha D. Beatriz : as classes, de interesses e ideais antagónicos, continuavam a extremar-se.

O conde de Ourém, João Fernandes Andeiro, amante já antigo de Leonor Teles, surge em cena, assumindo perante ela a declarada função de conselheiro, de inspirador da sua política. Os rumores do povo miúdo, aquele povo miúdo, que Fernão Vasques simbolizou; recrescem: murmura-se e conspira-se contra ele – aliás não pela primeira – vez.

Pelo menos cinco vezes, anteriormente, se procurara eliminar o amante da rainha. O irmão de Leonor Teles, João Afonso, D. Fernando, um escudeiro de João Afonso, o cavaleiro anacrónico da Távola Redonda, Nuno Álvares Pereira, revezaram-se nesse projecto que chegou a. tentativa, mas, ou porque o Andeiro, pressentindo o perigo, fugisse, ou porque viesse por caminho diferente do em que o esperavam, nunca foi possível chegar a vias de facto. Até que um dia Álvaro Pais, «homem honrado de boa-fazenda» – que afora chanceler-mor d'el-rei D. Pedro e depois d'el-rei D. Fernando, demoveu o Mestre d'Avis a esta empresa. Porém, quem indicara ao velho chanceler-mor o nome do Mestre d'Avis para o assassinato, fora nada mais nada menos do que João Afonso, o irmão de Leonor Teles: «falai com D. João, Mestre d'Avis que ha tamanha razão de se doer da desonra. d'el Rei como eu; e não vejo aqui homem mais azado para fazer isto, e gera travar em qualquer ardideza, que lhe a mão veer, com elle» (cap. V). Isto é, ou isto parece ser: sentindo-se incapaz para o fazer ele mesmo, o assassino fracassado indica quem o possa e deva, também, fazer. Chegado à fala com Álvaro Pais, o Mestre d'Avis hesita e esquiva-se: «todolos caminhos para o poer em obra eram a ele escuros com grandes empachos, especialmente dizendo o Mestre que quem se a tal feito houvesse de aventurar, mormente dentro da cidade, cumpria ter alguma ajuda do povo, por aso do cajom que se recrecer podia» (cap. VI). Álvaro Pais, que, ao que se me afigura, não pretendia fazer nenhuma revolução profunda, como a seguir mais documentadamente veremos, promete-lhe a ajuda do povo, que não esquecera o modo como fora reprimido pela Leonor Teles o movimento capitaneado por Fernão Vasques, povo pronto, por tudo quanto vimos anteriormente, a hastear de novo o pendão da revolta. Álvaro País, que não era um burguês, no sentido económico-social do termo, mas um funcionário, oriundo das classes populares, a quem D. Fernando, em paga dos seus bons serviços, dera «honra e acrecentamento», não promete, ao que parece, nem o auxílio económico, nem o apoio moral da burguesia de Lisboa, mas sim, claramente, o apoio da arraia-miúda. (Fixemos o facto e passemos adiante).

Depois de novas hesitações, o assassínio fica definitivamente aprazado. Enquanto o Mestre d'Avis espadeiraria o Andeiro, no Paço, Álvaro Pais amotinaria o povo de Lisboa, levando-o ali, para defender a vida do Mestre, se fosse necessário.

No dia 6 de Dezembro de 1383, tudo se faz como combinado ficara. O Andeiro é assassinado e a arraia-miúda dos mesteres acorre, armada com o que pode, ao Paço, e pretende, num impulso de cólera colectiva, pegar-lhe fogo. Mas, sabendo que quem morrera fora o amante da rainha, e não o Mestre d'Avis, desvia daí o pensamento. O Mestre, feita a tarefa, recebe, à entrada do «Rossio», as felicitações calorosas do «Conde João Afonso, de Afonso Eanes Nogueira, Martim Afonso Valente, Estêvão Vasques Filipe, Álvaro do Rego e outros fidalgos» (cap. XI) - e, feliz pelo bom sucesso do seu feito, «foi logo comerei. A sua missão parecia estar terminada: a da arraia-miúda, porém, mal começava.

Julgando-se liberto de todas as grilhetas económico-sociais que lhe peavam os movimentos, o povo miúdo de Lisboa (só o de Lisboa, por ora), dá-se a todos os exageros: mata o pobre bispo da Sé, que, por excessiva prudência, não mandara tocar a rebate, os sinos dá igreja chamando o povo; mata o inocente prior de Guimarães, que, por acaso, se encontrava com o bispo e, nem o «coitado do tabalião» de Silves, que nesse dia chegara para «recadar com ele» escapou à morte ignominiosa. «Passado aquele grande arruido com que as gentes da cidade chegaram ao Paço da Rainha, e que o bispo foi morto, gerou-se entre eles uma união de mortal ódio, contra quaisquer que sua intenção hão tinham, em tanto que nenhum lugar era seguro aqueles que não seguiam sua opinião. Cada um dava folgança a seu ofício e toda sua ocupação era juntar-se em magotes a falar na morte do Conde e cousas que haviam acontecido» (cap. XIV). E então, o projecto surge: roubar os judeus e os mouros. Porém, os judeus e mouros, avisados a tempo, pedem o auxílio do Mestre. Resposta deste: «fôssem à Rainha que ele não tinha com aquilo que fazer». Esta era, parece, a plena verdade: ele não era nem queria ser o chefe da arraia-miúda de Lisboa, amotinada. E, de tal modo assim é, que, no próprio dia do assassinato, o Mestre, depois de bem ter jantado, dirige-se à Rainha, e, cordatamente, pede-lhe perdão de lhe ter morto o. amante quase à sua vista. e justifica-se: «fizeo por segurança de minha vida». A Rainha habilmente evita pronunciar-se. As tentativas do Mestre para congraçar a Rainha não ficarão por aqui. Por ora; temendo a vingança de Leonor Teles, projecta a fuga para Inglaterra. Entretanto a Rainha abandona Lisboa, e de Alenquer pede auxílio – ao genro, alicia gentes, prepara as suas forças para o combate. Que combate? Sim, uma luta estava iminente, mas não a queriam, nem o Mestre, nem Álvaro Pais, o suposto representante da burguesia; não a queria, talvez, o povo miúdo que, passada a hora de efervescência, pensava agora no modo de evitar o castigo que viria: no entanto, por um lado, à roda do Mestre, por outro à roda da Rainha, o decorrer dos acontecimentos vai formando partidos, agrupando forças que interesses dispares opunham. Para resolver a situação, Álvaro Pais tenta a todo o modo a paz com a Rainha, e não me repugna acreditar que, se ela quisesse ou pudesse tomar atitude diferente da que veio a revelar, a revolução se não tivesse dado, pelo menos naquela altura, com aquele carácter. Tenta-se a última e grande solução: o casamento de D. Leonor com o Mestre de Avis. E isto significa que, para a paz nacional, seria necessário conciliar os interesses que, ao toque de alarme, se juntaram em torno dum e doutro: a rainha, aceitando-os de boa mente; o Mestre, compelido pelos cidadãos de Lisboa a tomar uma chefia, a que pretendia, de todo o modo, esquivar-se. A Rainha, como era de esperar, recusa-se a tão disparatada solução. E, não contente com isso, incita a que lhe levem a cabeça calva do, afinal, bem moderado Álvaro Pais, que, quando disto soube, se «trabalhou de se partir mais a pressa» de junto da rainha onde se encontrava no cumprimento da sua missão (Imagine-se !).

A recusa da rainha a pactuar com os amotinadores e amotinados de Lisboa vai dar origem à revolução que, só então de facto, se deflagra. Para grandes males grandes remédios: a Rainha não quer esquecer o que se passou, nomeie-se alguém que nos defenda dela. «Entonce o Comum poboo livre e não sujeito a alguns que o contrário disto sentissem lhe pediram (ao Mestre), por mercê se chamasse Regedor e Defensor dos Reinos» (cap. XXVI). Do outro lado, o nosso já conhecido João Afonso, que felicitara o Mestre depois do assassínio do Andeiro, exprimia o ponto de vista da sua classe: «bem via como Castela era contra Portugal e Portugal contra si mesmo; e que bem devia entender (o escudeiro de Lisboa a quem falava) que tal sandice qual levantavam dous sapateiros e dous alfaiates, querendo tomar o Mestre por senhor, que não era cousa para ir por diante; e que por tanto ao menos por segurança de seus bens que leixasse a cidade e se fosse por eles» (cap. XXV).

A guerra estava aberta. E até este deflagrar de luta, onde está, António Sérgio, «o impulso, a direcção, o financiamento da burguesia?»

( 4 )

«Quando o Mestre – narra o cronista – outorgou de ter cuidado e regimento do reino, toda tristeza foi fora das gentes, e seus corações não deram lugar a nenhum trespassado temor; mas todos ledos sob boa esperança, fundada em bem aventurado fim, se esforçaram de levar seu feito adiante, tendo grande fé em Deus que os havia de ajudar.» Mas uma sombra negra toldava o horizonte: «na cidade havia muitos honrados cidadãos que ali não estavam presentes; que fossem chamados à Câmara do Conselho, e que lhe fosse tudo razoado e proposto quanto ali fora dito, de guisa que outorgassem todos o que eles disseram e queriam fazer.» Ao outro dia, «sendo assim juntos em aquela Câmara da cidade, foi razoado por parte do Mestre como todo o povo miudo o recebia por seu regedor e defensor; e que ora era a eles requerido se lhes prazia outorgar aquilo que todo aquele povo tinha outorgado». Ora, «nenhum não respondia calando-se todos; outros falavam mui manso à orelha com os que siiam acerca deles; assim que nenhum não dava resposta, que mostrasse que consentia em cousa que os outros dissessem; não por lhe a eles não prazer de a cidade e o reino ser defeso dos inimigos; mas porque todos aqueles duvidavam multo de tal coisa poder ir adiante nem haver depois bom fim; mas a intenção do povo miudo era muito per contrario. Desi haviam grande receio da Rainha de lhes acoimar isto com grandes tormentos, como fôra feito no tempo dei Rei D. Fernando quando lhe contradisseram o casamento da Rainha com ele.

E duvidando estes que eram chamados e não respondendo ao que lhe diziam, era aí muito povo junto; entre os quais estava um tanoeiro que chamavam Afonso Anes . Penedo, que fora presente com todolos outros, quando se juntaram em S.,Domingos outorgando de receber o mestre por senhor; e vendo que nenhum não falava dos mais honrados da cidade que eram presentes, começou de se passear andando; e pôs a mão em uma espada que tinha cinta 'e disse:

«Que estais vós outros assim cuidando e que não outorgais o que outorgaram quantos aqui estão? E como ! Ainda vós duvidais de tomar o Mestre por regedor destes reinos, e que tome carrego de defender esta cidade e nós outros todos ? Parece que irão sois vós outros verdadeiros portugueses. Digo-vos que quanto por essa guisa buscai-nos vos todos cedo em poder dos castelãos.»

Apesar de tão inflamado discurso, os cordatos burgueses não se demoviam: «Entonce aquele tanoeiro pôs a mão na espada outra vez e disse Vós outros que estais assim fazendo? Quereis vós outorgar o que vos dizem ? ou dizei que não que reis, ca eu em esta coisa não tenho mais aventurada que esta garganta; e quem isto não quiser outorgar, logo há mester que o pague pela sua, antes que daqui sala.» E acrescenta o cronista: «e todoIos que ai estavam do povo miudo aquela mesma razão disseram» (cap. XXVI) (1).

Perante o dilema, nada agradável, a burguesia não teve outro remédio senão aceitar a revolução do messias de Lisboa. Aceitando-a, pôs em perigo a sua garganta: mas, a partir deste momento, ela fez tudo, quanto humanamente era possível, para a salvar, ajudando o Mestre. Desenha-se agora e só agora, o carácter burguês da revolução, que se iria acentuando cada vez mais nas vicissitudes da luta que se vai travar, enquanto que o povo miúdo, continuando a lutar, como até ali, passa, no entanto. pouco a pouco, para segundo plano A burguesia compreendeu, a tempo, de que lado soprava o vento dos seus interesses e, quando compreendeu, deu então todo o seu apoio ao Mestre d'Avis.

A hesitação da burguesia em alçar voz pelo Defensor e Regedor do reino, não se verifica somente em Lisboa, onde aliás o carácter predominante, da revolução é ainda retintamente popular, como o atesta o facto da criação da «Casa dos vinte e quatro» «homens, dous de cada mester» para que «tivessem carrego de estar na Câmara, para toda cousa que se houvesse de ordenar por bom regimento e serviço do Mestre fosse com seu acordo deles» (capa XXVII): essa hesitação verifica-se, outrossim, no outro grande centro urbano português – o Porto. « Especialmente o povo miudo » -como narra o cronista - aceitou alvoroçado a nova da revolução de Lisboa e obrigou à força, «um homem bom do lugar», Afonso Anes Pateiro, a conduzir o pendão da revolta, se não quisesse lhe acontecesse o mesmo ao que na véspera a isso se recusara: morrer às mãos dos «pequenos».

A revolução, porém, não afecta somente os centros urbanos: propaga-se com rapidez fulminante pelos centros rurais. Beja, Portalegre, Estremoz, Évora são teatro de violentíssimas lutas sociais: aí, os dois campos opostos (fidalgos e homens bons dum lado, ventres ao sol do outro) travam lutas de morte. Em Évora, por exemplo; para não citar o que, com o mesmo carácter, se deu ,nas cidades ou vilas que alçaram voz pelo Mestre, tomado o castelo pela arraia-miúda, «logo foi roubado de quanto ai acharam», mas não satisfeita com isto, e chefiada por um cabreiro e um alfaiate, «traziam por apelido: abite! abate! Aqui dos dabite! Como alguns deles diziam: Vamos a fuão, matá-lo e roubemo-lo; logo assi era feito, sem lhe valer nenhum dos grandes da cidade, posto que se por ele quisesse por» (cap. XLV). E neste ambiente de revolta foi chacinada, entre outras pessoas, a abadessa de S. Bento, a quem não livrou o ter-se abraçado à «copa em que vao Deus consagrado» (cap. XLV).

Por seu lado, os partidários da rainha, sempre que podiam, «saiam a fazer grandes roubos e cavalgadas nos termos dos que tinham a parte do Mestre, prendendo e roubando e matando em eles, como se lhe devessem por contrários merecimentos».

E era isto tudo, afinal, a explicitação do conflito a que a lei das sesmarias procurara, em vão, pôr cobro: a um lado, os mesteirais, os pequenos agricultores, todo o povo miúdo; a outro, os «homens bons» e a fidalguia. Deste choque de interesses e ideias surge a guerra civil, dividindo a Nação no partido pro-Mestre d'Avis e no pro-Castela. A dada altura, a burguesia comercial-marítima dos grandes centros urbanos vê-se obrigada a pronunciar-se por um dos partidos em luta – e mercê da sua ajuda financeira, a que a empurravam os seus interesses postos em causa; mercê do desenrolar favorável da guerra luso-castelhana, devido ao génio militar de Nuno Álvares Pereira e à nova táctica militar a que as circunstâncias económico-sociais dos combatentes impeliam e obrigavam (a substituição do cavaleiro de pesada armadura pelo peão armado de arco) pode dizer-se ter sido a vitória final não do povo miúdo que combatera nas duras pelejas e vertera o seu sangue, cuja situação económica e modo de não melhorou, mas da burguesia, que consegue impor, ao cabo, como política nacional, a sua política, isto é, a expansão pára além do mar. Com a expansão portuguesa para o Norte de África e com a consequente empresa de exploração da costa ocidental da África e dos descobrimentos marítimos pelo interior do Oceano Atlântico, parece efectivamente, ter-se resolvido o problema económico-social da grei portuguesa. No entanto – ai de nós! - mais tarde, aquele João de Barros, épico historiador da actividade mercantilista da nação portuguesa, descrevendo as murmurações contra a obra do Infante, insinuava que «Terras e maninhos há no reino para romper e aproveitar sem perigos de Mar, nem despesas desordenadas.» e Sá de Miranda, desiludido, verificava um estado de coisas:


Não me temo de Castela
donde inda guerra não soa;
mas temo-me de Lisboa,
que, ao cheiro desta canela,
o reino nos despovoa !

Mas isto são contos largos: este é outro problema. Por agora, tudo aquilo que viemos dizendo, parece permitir-nos tirar algumas conclusões que importam:

É errado supor-se que a chamada revolução de 1383-85 teve desde o seu início até o seu termo, um mesmo carácter social: há nela não uma, mas duas. revoluções: a de 1383 feita pelo «povo miúdo», de nítido carácter de protesto contra as suas condições de vida, de então, e a de 1385, em que o burguês suplantou e dominou o «ventre ao sol» e que se poderá denominar revolução-organização. Na existência destas duas revoluções se devem radicar, ao que nos parece, as interpretações divergentes que, até à data, para elas têm sido formuladas. Uma, a primeira, tem como característica relevante a agitação das massas trabalhadoras afirmando-se em actos belicosos de assassínios, roubos, em suma, de protesto colectivo, contra o que está; a outra, a burguesa, posterior àquela, tomando a chefia, quando reconhece que os seus interesses também estão em causa, e vencendo, apagará ás reivindicações dos pobres, por dezenas de anos, pela. miragem do ouro das especiarias e dos escra vos, que estão para além do Mar Tenebroso, e onde é preciso ir buscá-los (2).


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(1) Há-de perdoar-se-me tão longa citação, mas este passo é; na verdade, tão importante que me pareceu necessário transcrevê-lo inteiramente.

(2) Esta é a razão por que este ensaio se intitula «O carácter social da revolução de 1383» e não da revolução de 1383-85. O modo como se fez a revolução-organização da burguesia é tema que, agora, nos não propomos estudar.


Fonte:
Joel Serrão,
O carácter social da revolução de 1383,
Lisboa, Cadernos da «Seara Nova», 1946,
páginas 30 a 43."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#117705 | artur41 | 30 abr 2006 20:41 | Em resposta a: #117704

Caros Confrades,

Do «Portal»:


"A Revolução de 1383 - 1385 segundo Maria José Pimenta Ferro Tavares.

Para Maria José Pimenta Ferro Tavares a cisão política, em 1383 - 1385, deu-se verticalmente, «abarcando elementos das três condições sociais, e não na horizontalidade.»
É que «as solidariedades davam-se, nesta altura, na vertical, e é assim que devemos compreender toda esta movimentação de nobres.»



A NOBREZA NO REINADO DE D. FERNANDO E A SUA ACTUAÇÃO EM 1383-1385 *



Ao estudarmos o período medieval chocamos sempre com a escassez das fontes, uma vez que a maioria dos livros de chancelaria que chegaram até nós são cópias posteriores e a documentação concelhia, e até das casas religiosas, não é abundante. Por outro lado, grande parte dos documentos régios apresenta-se-nos em ementa, o que nos tira qualquer possibilidade de apreendermos o seu conteúdo completo, sobretudo o espírito que presidiu à sua feitura. Os reinados de D. Fernando e de D. João I enfermam disto.

Infelizmente, a documentação que possuímos não nos ajuda a responder a muitas das questões colocadas, pelo que, algumas vezes, não poderemos sair do mero campo das hipóteses. As crónicas de Fernão Lopes, as únicas portuguesas que chegaram até nós, mas não as únicas na época, a crer no cronista, dão-nos uma leitura dos acontecimentos, que certamente não seria a única existente, para um período tão complexo como este sobre o qual nos debruçamos. Por outro lado, se Fernão Lopes segue de perto as fontes e conhece-as, a verdade é que também comete erros cronológicos e sequenciais, além de por vezes ignorar certa documentação que hoje conhecemos. Seria curioso sabermos o porquê da não referência às «uniões» populares do reinado de D. Fernando, se exceptuarmos as que tratam dos protestos contra o casamento real e do realce dado na Crónica de D. João I aos vitoriosos levantamentos do povo miúdo, em 1383‑1384. São estes que merecem a força da sua pena sobrelevando tudo o resto, inclusive deixando para um plano bastante diluído a acção dos restantes corpos sociais.

Além disso, as crónicas apresentam certos lapsos e não nos permitem completar as lacunas documentais, como nos casos das tão difíceis políticas monetárias fernandina e joanina. Assinalemos, como exemplo, alguns desses erros facilmente detectáveis na Crónica de D. João I.

- A morte do Andeiro aparece-nos no capítulo 9 a 6 de Dezembro e no capítulo 27 a 1 do mesmo mês;

- Guarda surge-nos como cedência do alcaide ao rei de Castela (capítulo 68), quando foi o bispo que a entregou. No mesmo capítulo, Almada e Montemor-o-Velho são mencionados como tendo tomado voz por Castela, o que não sucedeu, apesar de aquela ter sido forçada a render-se ao invasor;

- Álvaro Gonçalves de Azevedo veio para Lisboa na frota do Porto e fugiu com Gonçalo Rodrigues de Sousa para os castelhanos, segundo o capítulo 155. Como é possível, se Gonçalo Rodrigues deserta no Porto, provavelmente em Junho, pelo teor da narrativa, e a frota chegou em Julho a Lisboa? Por outro lado, ele e seu pai são-nos dados como tendo optado por Castela em Setembro, aquando da partida do soberano do reino;

- Lopo Gomes de Lira aparece-nos na crónica de D. João como fidalgo português e na de D. Fernando como um dos fidalgos galegos e castelhanos que tomaram voz por D. Fernando;

- O juramento de menagem, feito entre Outubro e Dezembro de 1384, dá a D. João o título de regedor, governador e defensor do reino, e não o de regedor e defensor, como nos diz Fernão Lopes. Não teria o cronista conhecido o teor do juramento? Por outro lado, as cartas enviadas, a crermos na de Évora, nada referem sobre as cortes de Coimbra, que teriam sido programadas por esta altura, segundo o cronista;

- Fernão Lopes apressa-se a indicar os traidores da causa do Mestre de origem nobre, mas nada nos diz dos homens do povo e do clero que também o fizeram.

Ante estas observações e outras que se poderiam acrescentar, cotejando a pouca documentação existente e a crónica, pensamos que se torna urgente a publicação de uma edição crítica da mesma e que Fernão Lopes deve ser lido com o espírito crítico de qualquer outra fonte e não como se fosse uma «bíblia». Sem pretendermos pôr em causa o seu valor, pois não é disso que se trata, não nos podemos esquecer que ele foi o único cronista que teve como objecto da sua narrativa movimentos populares vitoriosos e um rei, iniciador de uma nova dinastia, mas de origem bastarda e cabecilha desses revoltosos.

(...)

* * *

A 22 de Outubro de 1383 morria D. Fernando, deixando a filha única casada com o rei de Castela. Tal como estava previsto no testamento e nos tratados de casamento, D. Leonor assumiu a regência do reino. Em Lisboa, recebeu os homens bons do concelho e acedeu às suas exigências, algumas das quais iam contra os desejos expressos do falecido rei, uma vez que este dispusera que D. Martinho, bispo de Lisboa e natural de Castela, fizesse parte do conselho que com a rainha regia o reino. Este devia ser constituído por prelados naturais do reino, e não por galegos ou castelhanos. Também propuseram que dois homens bons por cada comarca estivessem aqui representados. O concelho de Lisboa, nesta audiência, afirmava-se com um sentido de política nacionalista e segundo os interesses de uma burguesia, certamente mais urbana que rural e marítima do que interior.

Igualmente a má vontade contra a rainha, por parte dos habitantes de Lisboa, devia ser ainda grande, pois os seus emissários propunham-lhe Santarém ou Coimbra, ou ambas, para fixar residência.

Em Lisboa concederia doações a homens seus, entre 18 de Novembro e 9 de Dezembro, pelo menos, pois as outras cartas que conhecemos da regente são datadas de Alenquer, a 25 de Dezembro, e de Santarém, a 2 de Janeiro, esta última a favor de D. Pedro de Castro.

No entanto, a sua saída de Lisboa seria forçada. O arraial por D. Beatriz tinha erguido sentimentos hostis a esta e favoráveis ao infante D. João, como em Lisboa e Santarém e, ou simplesmente por Portugal, como em Elvas. Segundo Fernão Lopes, após a morte de D. Fernando o infante fora contactado por alguns portugueses para «que visse por sua homrra o que lhe compria fazer sobrello».

A oposição aos castelhanos não seria exclusivamente popular, mas também de parte da nobreza. E esta última iria agir impulsionada por Álvaro Pais. De uma conjura de nobres contra o poder e acção do Andeiro, junto de Leonor Teles, a pretexto da infidelidade desta, sairia o assassinato daquele e o levantamento popular de Lisboa, que serviria para apoiar e dar força aos conjurados contra uma possível reacção da rainha.

A acção da nobreza despoletara um movimento popular que a ultrapassaria. O povo miúdo revoltava-se em Lisboa e noutras partes do reino. Era a luta dos pequenos contra os grandes, dos oprimidos contra os poderosos, dos pobres contra os ricos. A estes associava-se o ódio a Leonor Teles, a rejeição de Castela e do papa de Avinhão.

Entretanto, começava a assomar uma nova força, e esta saída da vontade do povo miúdo: a do Mestre de Avis. O crescer da sua figura dava-se à margem da sua vontade, pois, inicialmente, o Mestre mantinha-se fiei à rainha, tal como os restantes conjurados, principiando por Álvaro Pais, e num segundo momento a sua luta seria a favor de seu irmão D. João. Era ainda nestes termos que, próximo das cortes de Coimbra, Fernão Lopes no-lo apresentaria.

O primeiro passo para a projecção da pessoa do Mestre foi feito por Álvaro Pais e pelos seus homens quando, ao pretenderem levantar a força popular de apoio ao assassino do Andeiro, gritam: «Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre, ca filho he delRei dom Pedro.» Ele era filho de rei, tal como o soberano defunto e os infantes exilados em Castela. Por este facto, a sua acção seria legitimada.

A comprovar que esta ideia não tinha sido lançada em vão, temos o murmurar das gentes após a morte do bispo de Lisboa. O povo encontrava-se ainda dividido entre o infante D. João e o Mestre, mas «compria mais lffamte no rregno [...] e que este tomassem por seu rrei e senhora.

O segundo tempo pertenceria à tentativa de assalto à judiaria grande de Lisboa e ao pregão, proibindo qualquer dano aos judeus. O nome do Mestre substituiria o da regente na ordem dada. Este tornava-se, assim, o herói popular, o chefe necessário na luta contra a rainha e contra Castela.

O movimento popular alastrava-se. Beja, Estremoz, Évora e outros lugares do reino prolongavam o levantamento do povo miúdo de Lisboa. O Mestre era o chefe eleito por este e a nobreza que se encontrava com Leonor Teles, em Alenquer, tinha disso consciência: «[...] que bem viia [D. João Afonso Telo] como Castella era contra Portugall, e Portugall contra ssi meesmo; e que bem devia emtemder, que tall samdiçe quall levamtavom dous çapateiros, e dous alfayates, querendo tomar o Meestre por senhor, que nom era cousa pera hir adeamte».

Em meados de Dezembro, o povo de Lisboa, incluindo os honrados, apoiantes forçados do Mestre, elegiam este em São Domingos regedor e defensor do reino, título que manteria, como veremos, até Outubro de 1384.

* * *

A nobreza portuguesa, inicialmente unida contra o Andeiro e contra uma política feita por castelhanos a favor de Castela e antinacional, logo se afastou do Mestre de Avis, ante o levantamento popular de consequências imprevisíveis, pois cedo começara a contestar a legitimidade da rainha regente e de D. Beatriz.

Mas a posição da nobreza – e não cremos poder distinguir os grandes senhores terratenentes da restante nobreza – não seria sempre a mesma. Ela ir-se-ia alterar em função das opções políticas de Leonor Teles e da atitude do rei de Castela.

Do lado da rainha estiveram inicialmente os condes, ricos-homens, cavaleiros e escudeiros, mestres das ordens militares e membros do clero. Acompanharam-na a Alenquer, entre outros, seu irmão, D. João Afonso Telo, e seu tio, Gonçalo Mendes de Vasconcelos, D. Fernando Afonso, mestre de Santiago, Martim Gonçalves de Ataíde, Pêro Lourenço de Távora, João Afonso Pimentel, Vasco Peres de Camões, Aires Vasques de Alvalade, João Gonçalves, anadel-mor, Lourenço Eanes Fogaça, chanceler-mor, os membros do desembargo do paço, etc. Seguiram-na Vasco Porcalho, comendador-mor da Ordem de Avis, Martim Eanes da Barbuda, comendador da mesma, etc.

Pouco depois, quando o Mestre foi eleito regedor e defensor, «muitos que eram criados da Rainha e feitos por alia e seus familiares, sse forom logo da cidade para ella, e assi pera outros logares».

Na ida para Santarém, a seguir ao Natal, entre 28 e 31 de Dezembro, depois da tomada do castelo de Lisboa, já poucos a acompanhavam, e outros partiram depois para as suas terras, como sucedeu com o próprio tio da rainha, que, «sabemdo como eiRei de Castella viinha e nom seemdo çerto como sse os feitos aviam de seguir, a poucos dias se partio dhi, e se foi para Coimbra.»

A nobreza começava a estar dividida nas suas opiniões e indecisa. Ainda em Dezembro, o rei de Castela iniciara os preparativos para entrar em Portugal. Este facto iria lançar a primeira brecha na presumível unidade da nobreza. Aliás, a conversa entre Nuno Alvares e seu irmão, o prior do Hospital, espelhava já a divisão das opiniões: «0 Prior tornou a dizer que tall cousa nom era pera faltar em alia que Portugal) nom estava em ponto de sse deffender delRei de Castella, que era huü tam poderoso Rei; demais cõ a moor parte de Portugal que com alie teeria, polias menageés que lhe aviam feitas seguindo nos trautos era comtheudo. NunAllvarez respomdeo dizendo, que taaes menageés nom eram de guardar, pois que elRei quebrava os trautos; e que todollos fidallgos podiam seer em ajuda do Meestre sem nenhuü prasmo.»

Idêntica posição foi a de Beatriz Gonçalves, ao aconselhar prudência a seu filho, Gonçalo Vasques Coutinho, alcaide de Trancoso e de Lamego, na atitude que tomasse em relação ao rei de Castela que se encontrava na Guarda: «EIRei de Castella entra em este rreino, quebrando os trautos seguindo bem veemos; e posto que alguüs se venham para alie e fiquem por seus, nom praz a muitos porem com sua viimda, ante pesa a todollos poboos teemdo que faz o que nom deve [...] quebrando as aveemças que amtre [alie e] eiRei dó Fernando forom firmadas.»

A indecisão da nobreza perante a invasão era bem visível quando da chegada do monarca à Guarda, em Janeiro de 1384: «Alvoro Gill nora sahiu a elle, mas esteve quedo em seu Castello, ssem mostrar por qual) parte tiinha. [...]. E martim Affonsso, rricomem, seu irmaão [de Vasco Martins de Melo] que tiinha Çellorico e Linhares, foi o primeiro que sse veo para eiRei de Castella; e ficou por seu alli na Guarda, da qual) cousa desprougue muito a seu irmaão Vaasco Marti iz, porque ell começara de sse viinr para elle ante que nehuu outro. [...]. Em outro dia Vaasco Martiiz mandou faltar a Alvoro Gill per Martim Affomsso seu filho, dizendo que fezera gram bem de sse nora viinr para e1Rei de Castella, nem sse lhe desse, que lhe fazia çerto que eiRei nora jarra sobrelle, senom que passava per hi e h iasse seu caminho; e que sse tal cousa avehesse que o eiRei quisesse fazer, que lhe prometia de sse lançar com alie com sseus filhos, e com os que tiinha e lhe ajudaria a deffemder o castello.»

Era a guerra justa que Nuno Alvares defenderia no repto do conde de Maiorgas ao Mestre: «[...] e que eiRei de Castella, mall e como nom deve, entrou em este rreino ante do tempo que devera, britando os trautos que teudo era de guardar; por a quall rrazom perdeo todo quanto dereito em ali avia; e que poremde o reino perteemçe ao Meestre, meu Senhor, que aqui esta, como filho delRei dom Pedro que he».

Inicialmente, os primeiros partidários nobres do Mestre de Avis provinham da média e pequena nobreza, oriundos quer de famílias de linhagem quer da nobreza urbana. Aderiram à sua causa cavaleiros, como Rui Pereira, escudeiros fidalgos, como Alvaro Vasques de Góis, Nuno Álvares Pereira e seu irmão, Ferrão Pereira, escudeiros de João Afonso Talo, cavaleiros e escudeiros de Lisboa, após a tomada do castelo, escudeiros de Évora, Estremoz, Beja, etc. Vieram para o seu lado homens como Alvaro Gonçalves Camelo, comendador de Poiares, e preterido por D. Fernando no priorado da Ordem do Hospital a favor de D. Frei Pedro Alvares Pereira, filho primogénito do anterior prior, o arcebispo de Braga, acérrimo partidário do papa de Roma contra o de Avinhão, o mestre de Santiago, o mestre de Cristo. Encheram as suas hostes escudeiros e criados do infante D. João, João Lourenço da Cunha e seu filho e Diogo Lopes Pacheco e seus filhos.

A 13 de Janeiro, a rainha regente renunciava nas mãos do genro e da filha ao regimento do reino, contra o conselho de alguns que com ela estavam. É provável que date deste momento a segunda cisão da nobreza que apoiava Leonor Teles. Abandonaram-na Lourenço Eanes Fogaça, chanceler-mor, confirmado pelo rei de Castela no cargo, os escudeiros de Gonçalo Vasques de Azevedo e o próprio filho, Alvaro Gonçalves, que em Buarcos tomara já voz pelo Mestre. É provável que partisse desta altura a deserção do partido da rainha de D. Fernando Afonso de Albuquerque, mestre de Santiago, que «estando na villa de Pallmella, se veo com todas suas gentes a Lixboa para o Meestre, e o rreçebeo por senhor, e ficou por seu vassallo para o servira. Meses mais tarde, este e o chanceler-mor seriam enviados como embaixadores a Inglaterra.

(...)

* * *

Em conclusão, podemos dizer que nobreza, povo e clero estiveram ao lado do Mestre. A cisão deu-se na verticalidade, abarcando elementos das três condições sociais, e não na horizontalidade. A nobreza da dinastia de Avis não foi só uma nobreza de «homens novos», tal como não é verdade que a nobreza de linhagem tivesse servido exclusivamente a causa de Castela.

As solidariedades davam-se, nesta altura, na vertical, e é assim que devemos compreender toda esta movimentação de nobres. É um facto que os primeiros apoiantes do Mestre pertenceram à média e pequena nobreza. Eles eram cavaleiros, como Rui Pereira, e escudeiros de uma nobreza de linhagem, embora de linha bastarda, como Nuno Alvares, ou filhos segundos, como Mem Rodrigues e Rui Mendes de Vasconcelos, os filhos de Vasco Martins da Cunha, de um Gonçalo Gomes da Silva, etc. Entre os seus aderentes temos os «juvenes», na acepção de Georges Duby, como, por exemplo, os Cunha e os Vasconcelos, quer pela idade, quer pelo estado, quer pela sequência na filiação, pois eram secundogénitos. Segui-]os-iam, em alguns casos, os primogénitos e os pais, como os Cunha, os Melo, mas não o primogénito de Gonçalo Mendes de Vasconcelos, que, como alcaide de Estremoz, seguiria o partido de Castela. Os «seniores», salvo raras excepções, que, normalmente, não tocavam os primogénitos (conde D. Gonçalo, Gonçalo Mendes de Vasconcelos), ou como um Vasco Martins da Cunha, o velho, um Vasco Martins de Melo, um Vasco Martins de Sousa, só mais tarde passariam a apoiar o Mestre. Fá-lo-iam, após a saída do rei de Castela ou próximo dela, o Melo, ou em Coimbra, como o Cunha, o velho, e o Sousa.

Mas ainda aqui nesta nobreza de linhagem devemos integrar os dois partidos: o partido legitimista do infante D. João, encabeçado pelos Cunha, e o partido do Mestre.

Além da nobreza de linhagem não podemos esquecer a pequena nobreza, constituída pelos vassalos destes nobres e a média e pequena nobreza urbana de escudeiros e cavaleiros que apoiaria o Mestre, como a de Lisboa, onde a lei da solidariedade vertical não seria respeitada nos vassalos do conde de Barcelos, a de Évora, Beja, Estremoz, Elvas, etc.

Seguiram a rainha e Castela os primogénitos da nobreza de linhagem, como um D. João Afonso Talo, conde de Barcelos, um D. João Afonso, conde de Viana, e talvez o único filho vivo do conde velho e que viria a ser morto em Panela 336, o conde de Saia, D. Frei Pedro Alvares Pereira, prior do Hospital, um João Mendes de Vasconcelos, filho primogénito de Gonçalo Mendes, Martim Afonso de Melo e seu filho, Aires Gomes da Silva, o velho e seus filhos, etc. Acompanharam-na os seus vassalos, escudeiros e criados.

Igualmente serviram a causa castelhana a nobreza afecta a Leonor Teles e ao Andeiro e que esta fizera sua por casamentos e doações. E o caso de João Afonso Pimentel, seu cunhado e senhor de Bragança, Martim Gonçalves de Ataíde, senhor de Chaves, Martim Eanes da Barbuda, João Rodrigues Porto Carreiro, etc. O mesmo sucedeu com os fidalgos galegos e castelhanos que em 1369 vieram para o reino, como um Lopo Afonso de Lira, fronteiro de Entre Douro e Minho, e seus familiares, um Fernão Afonso de Samora, senhor de Valença, e João Afonso de Beça, que, ao serviço do Mestre, o viria a trair.

Para terminar, podemos dizer com Fernão Lopes: «E porque em começo de seus bõos feitos, o Meestre ouve fidallgos [...] que o bem e leallmente servirom, poemdo os corpos e vidas por homrra do rreino [...j.»


* Este trabalho foi escrito para a lição apresentada nas provas de agregação que tiveram lugar em Junho de 1983 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. No entanto. a sua investigação arquivística não é recente. Fizemo-la ao mesmo tempo que preparávamos a nossa tese de doutoramento e alguns estudos de história monetária da mesma época. Tema que sempre nos interessou, a «crise de 1383‑1385» fez-nos orientar um seminário, durante o ano lectivo de 1974/1975, na Faculdade de Letras de Lisboa, no qual apenas foram abordadas as fontes impressas pelos alunos.

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Optei por não apresentar as notas de rodapé deste artigo. São 337 notas que remetem para as fontes consultadas, para bibliografia especializada e onde se discute mais pormenorizadamente problemas teóricos, que não interessa aqui apresentar.


Fonte:
Maria José Pimenta Ferro Tavares,
«A Nobreza no reinado de D. Fernando e a sua actuação em 1383-1385»,
Revista de História Económica e Social, n.º 12, Julho-Dezembro de 1983,
páginas 45 a 89."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#117708 | artur41 | 30 abr 2006 21:18 | Em resposta a: #116815

Caros Confrades,

Ainda do «Portal»:


"O Prof. José Mattoso destrói a teoria da crise social, ou da luta de classes na sua vertente marxista, mas também não deixa de pé a teoria, incongruente, da crise fundadora do sentimento nacional português.
Para José Mattoso, a crise só é explicável com base na compreensão das opções tomadas pelas diferentes camadas da nobreza portuguesa. Sobretudo dos filhos segundos, dos bastardos, dos cavaleiros das ordens religiosas e de alguns membros da pequena nobreza, que vão ser o braço armado da revolução. É que, devido à grande disparidade de estatuto no interior das famílias - entre primogénitos e filhos segundos -, e às modificações da arte da guerra - sobretudo o aparecimento de guerreiros profissionais - , estes cavaleiros vão apoiar a solução que punha em causa o statu quo, e que lhes permitiu evoluir até à nobilitação, pelos seus feitos militares ou por meio da apropriação dos bens dos seus parentes.

Como diz ao terminar, «Não sei se esta conclusão é muito 'patriótica' ou muito 'revolucionária', mas é certamente a mais realista».

A Nobreza e a Revolução de 1383

Como sabem todos os que me ouvem, tornou-se um lugar comum da historiografia vulgar nos nossos dias afirmar que, durante a Crise ou a Revolução de 1383, a nobreza senhorial tomou o partido de Castela, ao passo que a burguesia e o povo tomaram o do Mestre de Avis. Deixemos o que esta formulação tão grosseira e tão primária tem de enganador, na maneira como reduz a uma caricatura as posições de todo um sector da historiografia portuguesa desde os anos vinte e trinta deste século, cujo denominador comum é a oposição dos seus autores ao regime salazarista 1.

Como se sabe, também, esta armação começa ultimamente a ser posta em causa, mesmo por autores que nada têm que ver com a Ideologia nacionalista. Não podia deixar de ser assim, depois de uma década de regime democrático, em que já não é necessário utilizar a via da interpretação do passado para marcar posições políticas, e em que se pode examiná-lo com trais objectividade, aplicando-lhe, finalmente, métodos de análise e de interpretação que têm dado as suas provas sob qualquer regime político. Tendo eu estudado desde há bastantes anos a nobreza portuguesa, não me podia eximir facilmente a tentar contribuir também para esclarecer o problema, na verdade difícil e complicado, da atitude da nobreza durante a Revolução de 1383. (Abro aqui um breve parêntesis para declarar que uso o termo Revolução para designar o conjunto de acontecimentos socio-políticos do período de 1383/85 sem pretender atribuir-lhe o sentido pleno que teve durante a época moderna e sobretudo a contemporânea. Reconheço que 1383 não alterou radicalmente as estruturas da sociedade portuguesa. Parece-me, em todo o caso, que trouxe suficientes mudanças e perturbações para se poder usar a palavra sem demasiado anacronismo. Ao adoptá-la não pretendo entrar na polémica gerada à sua volta) 2.

O papel da nobreza neste período foi estudado recentemente, em particular pela Prof.ª Maria José Pimenta Ferro, à qual devo algumas das observações que farei em seguida 3. Não pretendo contestá-la, até porque concordo em geral com as suas Informações e observações, mas apenas propor uma visão de conjunto em que se procurem as coerências em termos de história social. Usarei, para isso, um método multo simples, que consiste em registar todos os Indivíduos aparentemente nobres mencionados por Fernão Lopes nas suas crónicas, incluindo a de D. Fernando e a de D. Pedro4, e verificar a posição que vão tomando, segundo ele, nas várias fases da Revolução, até pouco depois de Aljubarrota. Em seguida, classificá-los por famílias com ajuda dos nomes Indicados pelo próprio Fernão Lopes. Finalmente tentar averiguar as razões das posições que o mesmo Fernão Lopes lhes atribuiu. Creio ter encontrado uma coerência interpretativa suficiente para poder propô-la como explicação mais rigorosa do que até aqui se tem feito, para definir a atitude da nobreza perante os graves acontecimentos desses anos. Mas esta hipótese, pois não passa disso, deverá um dia ser aferida com uma pesquisa sistemática acerca da nobreza durante toda a segunda metade do século XIV, a partir da documentação da época, particularmente as chancelarias, que para isto parecem fornecer material muito abundante. Ora uma pesquisa deste tipo começou já a ser feita pela Prof.ª Maria José Pimenta Ferro, que se interessou particularmente pelo problema da atribuição das alcaidarias durante o reinado de D. Fernando 5. Espero que ela continue em bom ritmo.

Começarei, portanto, por expor os resultados a que cheguei, para em seguida procurar a explicação dos fenómenos observados.

I

Examinemos, em primeiro lugar a composição e o comportamento dos que estão desde o primeiro momento com Leonor Teles e depois passam sem dificuldade ao partido de Castela.

(...)

Assim, encontramos em Portugal uma alta nobreza extremamente reduzida, por comparação com um número muito considerável de fidalgos de famílias antigas, que, pelos vistos, tinham a maior dificuldade em sair da mediania. O quase monopólio que os Teles exerciam na corte de D. Fernando, a maneira como parecem dispor dos mecanismos das mercês e da distribuição de recompensas, tantas vezes movidas em favor de estrangeiros, permite falar numa profunda contradição que creio se pode exprimir em termos de luta da pequena e média nobreza contra a alta nobreza de corte. A política de favores seguida pelos Teles não podia ter deixado de levantar contra eles surdas invejas que indubitavelmente prepararam as repartições da aristocracia de sangue durante a Revolução.

A crise que ia minando as bases do poder material da fidalguia desde o princípio do século XIV tornava estas contradições especialmente graves. De facto, apesar de alguns ensaios que datam já da época de Afonso lII, ou mesmo de antes, a maioria dos nobres não se tinha adaptado à economia de mercado que alastrava constantemente a partir das cidades. Os rendimentos da terra nobre, mal administrada, não chegavam para o consumo. Os seus ingressos em moeda, que provinham sobretudo do exercício de poderes senhoriais, desvalorizavam-se constantemente. Ora as transformações dos costumes e a concentração das classes dominantes nas cidades, impunham aos nobres, para manterem o seu prestígio, usarem os sinais distintivos da sua superioridade social, isto é os caros panos ingleses ou flamengos que tinham de comprar aos mercadores, as armas e armaduras também importadas, os cavalos que não se criavam nas suas terras. De resto os poderes senhoriais mal tinham podido aumentar desde a época de Afonso III: os reis vigiavam atentamente as honras e declaravam devassas todas as apropriações ilegítimas.

Assim, não eram apenas bastardos e filhos segundos que procuravam a corte para aí servirem como vassalos, por vezes em condições bastante miseráveis, eram também os próprios chefes de linhagens que esperavam do rei a solução dos seus problemas financeiros. Por isso D. Pedro e D. Fernando parecem ter aumentado as contias dos seus vassalos, como sugere Fernão Lopes 24. A tradicional vigilância do rei para evitar a senhorialização das terras reguengas e concelhias abrandou, com estes mesmos reis. Conhecem-se muitas dezenas de concessões de rendimentos e mesmo de direitos concelhios feitos a fidalgos durante o reinado de D. Fernando. É obviamente contra estes últimos que os concelhos protestam em cortes e fora delas, o que provocou algumas tergiversações da parte do rei e as famosas revocações a que se refere Gama Barros 25.

Alguns nobres tentam resolver os seus problemas procurando entrar nos circuitos da economia de mercado, mas estes devem ser uma minoria. Contra eles protestam também os procuradores dos concelhos. De qualquer maneira a situação é clara: durante a segunda metade do século XIV verifica-se o assalto da nobreza às fontes da economia monetária de origem não senhorial e uma maior procura dos benefícios régios. O poder de distribuir tais fontes que a alta nobreza de corte exerce com o apoio total ou parcial de D. Fernando, agudiza, portanto, as contradições em torno dela própria. Como é evidente os beneficiários da sua política são poucos e bem escolhidos. Foram os que mencionámos até aqui.

No entanto seria demasiado simplista dizer que a alta nobreza se alia a Castela e a baixa e média ao Mestre de Avis. A atitude daquela compreende-se facilmente, não tanto em virtude das suas características sociais, mas porque, na conjuntura criada pelas pazes de Elvas, o casamento de D. Beatriz e a morte de D. Fernando, constituía a melhor garantia para preservar as posições por ela adquiridas. Táctica facilitada, de resto, pela forte influência que no grupo têm os nobres de origem castelhana e galega. Mas a atitude da baixa e média nobreza não se explica apenas pelos factores que mencionei, mas também por outros que tornam a situação complexa e mutável, como se mostra pelo evoluir dos acontecimentos. É o que tentaremos agora averiguar.

II

Os factores a que me refiro creio se podem reduzir a dois: um intimamente relacionado com o que disse atrás: a estrutura própria das famílias nobres que cria grandes disparidades entre os filhos primogénitos e os restantes, quanto aos direitos sucessórios; outro praticamente independente: as alterações da táctica e da estratégia militar durante a segunda metade do século XIV e a sua influência sobre a trajectória de muitos nobres. Ambas as coisas têm a maior influência sobre a escolha do partido que os nobres de categorias média e inferior adoptam durante a Revolução.

O primeiro destes factores, que até há pouco tempo se ignorava, foi apontado por mim num programa da Rádio Comercial há dois anos 26 e depois referido e confirmado com argumentos objectivos pela Prof.ª Maria José Pimenta Ferro num artigo do «Jornal de Letras» 27, nas suas provas de agregação e no texto que delas publicou na Revista de História Económica e Social 28. A demonstração completa do seu âmbito e modalidades requereria investigações demasiado complicadas e morosas a que obviamente não pude proceder. Verifica-se a sua Influência pelo menos em algumas famílias da nobreza superior, cujas genealogias foram já estudadas, sobretudo por Anselmo Braancamp Freire. Os esquemas genealógicos publicados pela Prof.ª Maria José Ferro no fim do seu artigo, para as famílias dos Silvas, Pereiras, Meios e Telos demonstram-no sem sombra de dúvida 29. Os bastardos e filhos segundos destas famílias tendem a aliar-se ao Mestre, e os chefes de linhagem a D. Beatriz.

(...)

A agressividade com que os bastardos e filhos segundos, e mesmo os membros da nobreza inferior. tomaram partido compreende-se bem em virtude das alterações da arte militar a que me referi. Este factor não explica propriamente as opções tomadas. mas o vigor e a segurança com que o fazem muitos dos nobres que se aliam ao Mestre de Avis, particularmente creio os membros das ordens religiosas militares.

Com efeito, a guerra tinha deixado de ser, na Europa Central e na Itália, já desde havia dezenas de anos, e na Península Ibérica desde as guerras civis de Pedro o Cruel, uma espécie de desporto cavalheiresco, uma variante mais séria dos duelos e dos torneios, limitada no tempo e no espaço e que desencadeava formas de violência relativamente pouco destruidoras. As guerras ganhavam-se ou perdiam-se, agora, com a ajuda de companhias de profissionais, pagas a peso de ouro, bem armadas e com poucos escrúpulos. O protótipo pode ser, por exemplo, Werner von Urslingen que ostentava nas suas armas o lema «Inimigo de Deus, Inimigo da piedade, inimigo do perdão». Uma guerra destruidora, implacável, ganha por profissionais, com armas eficazes como os archeiros ingleses e os seus arcos, que podiam atirar setas com muito mais rapidez do que os besteiros. Uma guerra ganha por gente habituada a muitos campos de batalha, que sabia como fazer cair os cavaleiros, que conhecia as vantagens da mobilidade dos peões armados com adagas e estoques, contra os quais de nada valiam as melhores armaduras 32. As companhias inglesas que já colaboraram na última guerra fernandina e que brutalizaram os moradores de Lisboa 33, os grupos de gente do Béarn, da Gasconha e da Bretanha que vieram com os soldados de D. João I de Castela, que actuaram no cerco de Lisboa e depois na Invasão de 1385, e dos quais tanto fala Froissart 34, eram justamente desses mercenários e profissionais.

(...)

Nestas condições pode-se considerar verdadeiramente simbólico o protagonismo dos dois grandes heróis da Revolução e das guerras com Castela, o Mestre de Avis e Nun'Alvares Pereira. O segundo não professou na ordem do Crato, mas estava-lhe intimamente ligado pelos laços de família e pela sua própria carreira. Foi nas ordem militares, de resto, que encontrou muitos dos seus companheiros de armas, com os quais constituiu uma verdadeira companhia decerto organizada à semelhança das que combatiam profissionalmente, por essa altura, em toda a Europa.

Foi, provavelmente, o ambiente de guerra que reinava no país desde 1369 aquilo que permitiu a nobilitação de alguns indivíduos que decerto não pertenciam à nobreza de sangue, como faz suspeitar a novidade dos seus nomes, antes desconhecidos nos meios nobiliárquicos. Muitos participam na guerra só depois da Revolução. Mas outros vêm já do tempo de D. Fernando, como têm acentuado alguns autores recentes e particularmente a Prof.ª Maria José Pimenta Ferro 37. De facto, nomes como Almada, Arca, Borges, Cabral, Charneca, Corte Real, Façanha, Faria, Filipe, Fogaça, Lobato, Lobo, Malafaia, Morais, etc. são desconhecidos dos meios nobiliárquicos no princípio do século XIV. Mas alguns deles surgem já no tempo de D. Fernando, como Almada, Cabral, Filipe ou Fogaça. O que vem, de novo, explicar a adesão de muitos deste indivíduos em ascensão ao mestre de Avis. Não era a adesão a um partido que se apresentava como orientado para manter o statu quo o que podia atrair estes indivíduos desejosos de encontrar na guerra o meio de entrarem na nobreza.

(...)

III

Resta-me mencionar um último factor, de ordem perfeitamente conjuntural. Explica, creio, as posições de alguns nobres dos quais não falei até aqui e sobretudo as oscilações de uma grande quantidade de famílias da nobreza tradicional ou mesmo o silêncio que cobre a atitude de outras das quais nunca se fala. Quero-me referir ao papel polarizador do Infante D. João, filho de D. Pedro e de Inês de Castro.

A importância dos seus direitos ao trono português, para quem rejeitava a sucessão de D. Beatriz, foi posta em relevo, com toda a razão, pelo Prof. Salvador Dias Arnaut 39, e recentemente sublinhada com novos argumentos pela Prof.ª Maria José Pimenta Ferro 40. Voluntariamente ocultada por Fernão Lopes, como seria de esperar da parte do historiador oficial da casa de Avis, nem por isso deixa de transparecer do seu relato. Ela perfilava-se, de resto, desde o tempo de D. Fernando e constituiu um dos pontos nodais das intrigas palacianas. A impossibilidade de identificar o seu partido com o do rei de Castela manifesta-se bem pelo facto de ele o reter preso desde o momento em que se levantam algumas dificuldades ao reconhecimento da sua autoridade em Portugal. Além disso, por o próprio Mestre se apresentar, de início, como defensor do reino em nome do infante, e de provavelmente, com a sua astúcia habitual, não ter querido resolver esta ambiguidade até às cortes de Coimbra. Questão controversa, mas cuja importância é fundamental para esclarecer a repartição de forças sociais em presença, pelo menos no seio da nobreza. Difícil de esclarecer, porém, pois é provável que o triunfo da causa do Mestre tivesse levado a alterar não só o relato de Fernão Lopes mas também a própria cópia dos documentos por ele outorgados antes de ser proclamado rei em Coimbra.

De facto, penso que era ele o verdadeiro candidato da nobreza tradicional portuguesa, isto é dos chefes de linhagem que não se aliaram a Castela e que descendiam das famílias mais antigas, com excepção daqueles que, pelas razões que expliquei ao princípio, se haviam comprometido com os Teles. O momento crucial em que esta posição se revela como antagónica do Mestre é nas cortes de Coimbra. Fernão Lopes diz expressamente que Martim Vasques da Cunha e seus filhos sustentavam com outros fidalgos a candidatura do infante D. João (CDJ, I, c. 182, 188). Não diz quem eram os outros. Mas o seu peso e convicções eram tais que não bastou a astuta argumentação de João das Regras para convencer os restantes membros das cortes. O que verdadeiramente fez decidi-los a cederem à proposta de elegerem o Mestre, foi a ameaça de emprego da força por parte de Nun'Alvares e dos seus homens 41.

Ora isto explica não poucas coisas obscuras e em particular as mudanças de campo, as hesitações, a resistência de vários nobres até Aljubarrota e mesmo a defecção de alguns já depois de 1385. Não admira, portanto, a posição dos Castros e aquilo a que Fernão Lopes chama «traição» e «conjura» em Coimbra e em Torres Vedras, a maneira pouco entusiasta com que o cronista fala na colaboração dos Pachecos, a defecção de Alvaro Gonçalves Camelo depois de Aljubarrota, a adesão de João Fernandes Pacheco à tentativa feita pelo infante D. Dinis de reorganizar a oposição portuguesa a D. João I, em 1387 e em 1398. Assim, embora não faltem entre os adeptos do Mestre bastantes membros da nobreza tradicional, como Alcoforados, Alvarengas, Avelares, Barretos, Brandões, Casais, Coutinhos, Góis, Homens, Outizes, Resendes, Sequeiras, Tavares, Távoras, Vales e Veigas, é lícito perguntar se eram chefes de linhagem ou filhos segundos. Ou então perguntar que posição teriam tomado famílias como as de Barbosa, Briteiros, Fafes, Gatos, Guedões, Limas, Novais, Redondos, Sandes, Valadares, Vinhais, e tantas outras das quais não se encontra referência alguma nos textos de Fernão Lopes, mas creio existirem ainda. A posição de Martim Afonso de Sousa, completamente fora de cena durante o fim do reinado de D. Fernando e durante a Revolução, mas que aparece nas cortes de Coimbra, deve ser verdadeiramente sintomática. Não é provável que aí tivesse vindo para apoiar o Mestre de Avis, mas o infante D. João.

Além disso, é também sintomática a maneira como o Mestre orienta a sua táctica no sentido de captar sobretudo gente deste grupo. A eles faz mercês, entrega terras e bens confiscados, nomeia para o seu conselho, designa para dignitários da corte 42. O Mestre estava certamente convencido que a sua adesão arrastaria hesitantes Adesão difícil, como mostra o facto de a maioria das terras de Entre Douro e Minho, onde dominava a nobreza tradicional, terem de ser conquistadas pelas armas, e de Nun'Álvares Pereira ter aconselhado o Mestre a exigir a homenagem dos fidalgos de Entre Douro e Minho (CDJ I, c. 153) coisa que não parece ter acontecido noutros pontos do país.

Assim, se a adesão a D. Beatriz da alta nobreza de corte, constituída em grande parte por exilados castelhanos e pelos seus protegidos, é perfeitamente lógica pelas razões que referi; se a preferência de um grande número de pequenos cavaleiros e escudeiros, entre eles filhos segundos e bastardos, membros das ordens militares e soldados adestrados por treze anos de guerra é também lógica, porque viam no Mestre a esperança de melhorarem a sua situação, compreendem-se também as hesitações ou a passividade da nobreza tradicional que nenhuma garantia tinha de lhe serem respeitadas as suas posições, mesmo modestas, pela onda de aventureiros comandados pelo Mestre. A pequena e média nobreza tradicional, se não desejavam certamente o triunfo dos Castelhanos, que consagraria a posição dos Teles e dos seus protegidos, também não se inclinariam facilmente para os ver substituídos pelos profissionais da guerra. O infante D. João, que convivera com a nobreza, que ousara enfrentar o ódio dos Teles assassinando a sua própria mulher, que era filho legítimo, ou considerado como tal pelo seu próprio pai, o rei D. Pedro, era, obviamente o seu verdadeiro candidato. E se muitos apoiaram o Mestre na primeira hora foi decerto por julgarem que ele seria o chefe militar que poria no trono o filho de Inês de Castro. O evoluir dos acontecimentos, que foi progressivamente consolidando a autoridade do Mestre, explica sem dificuldade as suas oscilações, sem que seja necessário admitir que eles revelassem assim as suas opções de classe, a sua falta de patriotismo ou a sua anti-burguesia. Muitos deles devem ter-se sentido simplesmente traídos pelo Mestre de Avis. É possível que, o evoluir dos acontecimentos houvesse sido diferente se não se desse a estrondosa vitória de Aljubarrota, com a morte de tantos portugueses que nessa altura ainda acompanhavam o rei de Castela. Muito diferente teria sido, também, o destino, se o infante D. João não estivesse preso em Castela.

Só uma palavra para terminar: cingi-me voluntariamente ao âmbito da nobreza. É, sem dúvida um artificialismo embora, creio, metodicamente necessário. Pareceu-me indispensável para tentar surpreender a coerência interna das repartições da classe aristocrática. Só a partir daqui conviria retomar as coisas, tentando verificar o que isto tem a ver com a posição das outras classes sociais. Creio, porém, que isso não alteraria em nada o que julgo poder concluir da minha análise. Pelo contrário, estou convencido que não faria senão reforçar com novos argumentos o que foi dito. O comportamento dos mercadores, homens bons dos concelhos, mesteirais, arraia miúda das cidades, clero urbano, bispos e abades que tomaram posição ou a evitaram, tudo Isso só pode ter reforçado, creio, o vigor e a coesão dos cavaleiros ou as hesitações e perplexidades das famílias tradicionais. O apoio de grandes massas de gente não nobre não fez mais do que reforçar a sua convicção de que eram o «braço armado da Revolução» e dar-lhes fundadas esperanças de alcançarem os seus objectivos, mesmo que, para muitos, estes objectivos fossem apenas apoderarem-se dos bens dos parentes que tinham aderido a Castela Não sei se esta conclusão é muito «patriótica» ou muito , revolucionária», mas é certamente a mais realista.


Fonte:
José Mattoso,
«A Nobreza e a Revolução de 1383», in
1383 / 1385 e a Crise Geral dos Séculos XIV / XV. Jornadas de História Medieval: Actas,
Lisboa, História & Crítica, 1985,
páginas 391 a 402."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#117950 | artur41 | 03 mai 2006 19:35 | Em resposta a: #117708

Caros Confrades,

Também do «Portal»:


"A Revolução de 1383 - 1385 segundo Damião Peres.


Damião Peres faz uma descrição com base na Crónica de D. João I, defendendo que a revolução é um momento de «afirmação da existência consciente de uma nacionalidade.»


Capítulo II: A Revolução

A legalização do movimento revolucionário


Sem dúvida, obedecendo ao plano anteriormente traçado e com o fim de transformar em golpe de Estado o assassinato do Andeiro, enquanto no Paço a tragédia se consumava, Álvaro Pais lançando mão do seu predomínio, levantava em massa o povo de Lisboa e levava-o sob as janelas da régia morada a reclamar são e salvo o Mestre de Avis, pois lhe fizera crer que a vida deste corria perigo.

Assim, o crime individual do Mestre ia ter o referendum popular, e o atentado transformava-se em primeiro elo de uma corrente revolucionária.

Já algum mais exaltado propusera que se lançasse fogo ao palácio e já a ideia se propagara, quando, em pessoa, apareceu a uma janela, sorridente, o Mestre de Avis. Que se fossem em paz, dizia; ele ali estava, perfeitamente incólume; quem morrera fora o Andeiro.

Romperam frenéticas as aclamações e, com elas, implícita, a afirmação de que o movimento insurreccional se iniciara.

Partindo de ali foram os revolucionários exigindo que em sinal de regozijo todos os sinos repicassem.

Silenciosa ficou, única, a torre da Sé. Era bispo D. Martinho, castelhano, e mais não foi preciso para que o silêncio ficasse explicado naqueles símplices cérebros populares. O silêncio era uma forma de protesto, nem mais, nem menos; como tal, devia ser castigado.

E foi-o, acto contínuo, com a mais radical das penas: a de morte. Subiram alguns à torre e dela abaixo não tardou muito que viessem o bispo e dois convidados que com ele estavam. Sobre o cadáver do bispo, só porque era castelhano, cevou a multidão a sua ira (6).

Os motins continuaram e foi necessária a intervenção do Mestre. Assim a sua autoridade se radicava, embora extra-oficialmente.

Mas agora surgia a dificuldade de legalizar o acto revolucionário, sem deixar de dar o governo ao Mestre de Avis. Por diploma legal era regente Leonor Teles; o povo queria D. João. Como resolver o problema, conciliando tudo?

Ora foi aqui que o senso burguesmente prático do incansável Álvaro Pais veio a revelar-se.

Saltando por cima de todas as considerações de ordem moral, como bom político que era, propôs pura e simplesmente o casamento do Mestre de Avis com a regente Leonor Teles.

Aceite o alvitre, partiram a caminho de Santarém, a fim de se avistarem com a viúva, Álvaro Pais e Álvaro Gonçalves Camelo, os quais foram afinal, como era de esperar, mal sucedidos na sua missão (7).

Com razões de ordem moral, tentou o Cardeal Saraiva (8) contradizer a insuspeita narração de Fernão Lopes, sem ver que considerações dessa ordem não podiam então ser levadas em linha de conta. Já lá diz o rifão popular: «em tempo de guerra não se limpam armas».

Mais razoável, pretendeu Soares da Silva (9) concluir do facto de ter sido comissionado para o empreendimento Álvaro Pais, odiado pela Rainha, que intimamente o Mestre não concordava com o alvitre adoptado. Tudo é possível; inclinamo-nos, porém, mais a supor que na questão moral ninguém, nem mesmo o Mestre, pensava.

Entraria para alguma coisa, nesta tentativa de matrimónio, uma paixão do Mestre por Leonor Teles que, hipoteticamente Sandoval (10) lembrou como causa provável do assassinato do Andeiro e de que mais tarde se fez eco Oliveira Martins? (11) Ignoramo-lo completamente.

Entretanto, enquanto Álvaro Gonçalves Camelo e Álvaro Pais iam a caminho de Alenquer para falar com a Rainha, o povo de Lisboa, reunido no átrio de S. Domingos resolvia eleger para Defensor e Regedor do reino o Mestre de Avis, oferecendo-lhe, caso aceitasse o encargo, corpo e bens até os últimos recursos.

D. João pensou e resolveu aceitar a proposta.

Os grandes da cidade chamados no dia seguinte para ratificarem a escolha do Mestre para regente, hesitaram a princípio. Não aceitavam cordialmente a Revolução. Demoveram-nos as ameaças do povo, expressas pela voz rudemente eloquente do tanoeiro Afonso Aires Penedo.

O movimento revolucionário assentava; surgia um princípio de ordem. A atitude do Mestre de Avis, a princípio dúbia e hesitante, ia definir-se personificando a Revolução. Um só caminho de ora avante lhe era lícito trilhar: o da emancipação definitiva da tutela castelhana, o da afirmação da existência consciente de uma nacionalidade, porque era esse o único que o povo, com a força da consciência resolvida ao sacrifício, lhe indicava e lhe impunha.

--------------------------------------------------------------------------------

(6) Lopes, Chron. de D. João I; I, cap. 12.
(7) Lopes, Chron. de D. João I; I, cap. 25.
(8) Obras completas; III, 232 e seg.
(9) Memórias de D. João I.
(10) Batalla de Aljubarrota; 292.
(11) Vida de Nun' Alvares, 73 e 88.


Fonte:
Damião Peres,
D. João I,
Porto, Vertente. 1983, (1.ª Ed., 1917),
páginas 21 a 24."

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RE: Crise de (1383-85)- Revolução

#170487 | artur41 | 20 out 2007 17:41 | Em resposta a: #117704

Caros Confrades,


Represtino este tópico, no sentido de conhecer outras opiniões.


Com os meus melhores cumprimentos,

Artur Camisão Soares

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