Reavaliação do Nome Armas de Sodré
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Reavaliação do Nome Armas de Sodré
REAVALIAÇÃO DO NOME E ARMAS DE SODRÉ
Por
Sérgio Sodré de Castro
Tradicionalmente, há cinco séculos que se consideram os Sodré uma família de origem inglesa cujas armas são: De azul, com chaveirão de prata, carregado de três estrelas de seis raios de vermelho, acompanhado de três albarradas de prata de duas asas. Timbre: uma das albarradas do escudo. Deste modo estão registadas no Livro da Nobreza e Perfeição das Armas, do bacharel António Godinho, feito entre 1521-28. Outro tanto, mas sem o timbre, está debuxado no mais antigo Livro do Armeiro-Mor, de João do Cró, passavante Santarém, feito entre 1506-09. Antes, no brasão da laje tumular de Duarte Sodré, falecido no ano de 1500, foram colocados gomis de uma asa ao invés das albarradas, e por isso talvez fossem aquelas as figuras primevas, que acabaram para sempre substituídas por estas por força da uniformização da estilização imposta pelos armoriais oficiais de Cró e de Godinho.
Através de armoriais medievais ingleses comprova-se que um tal William Boteler de Kirkland usava armas praticamente iguais às dos Sodrés, as quais estão desenhados no Ballard Book ou Ballard Roll (colectânea de antigos armoriais compilada entre 1465-90). Apenas as copas são tampadas e desprovidas de asas, e o metal é o ouro em vez da prata, o resto é igual. Todavia, em outros ramos de Boteler ou Butler, de diversas épocas, ocorrem albarradas e gomis de prata semelhantes aos dos Sodrés portugueses.
Esta similaridade heráldica, conjugada com genealogias manuscritas do séc. XVIII que afirmavam existir memórias antigas que derivavam os Sodré portugueses dos Sudley (ou Sudeley) ingleses; a alusão a grandes senhores do Reino de Inglaterra na campa de Duarte Sodré; o casamento entre uma Sudley e um Boteler na 1ª metade do séc. XIV; e ainda vários indícios menores pareciam sugerir que, efectivamente, Sodré era o aportuguesamento do apelido inglês Sudley, um topónimo, tendo cá entrado algures no contexto iniciado com o tratado anglo-luso de Tagilde assinado a 10 de Julho de 1372. Algum inglês passara a Portugal e mantivera o apelido Sudley, transformado em Sodré, mas ostentava as armas Boteler devido a descender do cruzamento das duas famílias.
Realmente, documentação inglesa de fiabilidade segura demonstra que William Boteler de Wemme casou com Joane Sudley após 1341 (ano da morte do pai de Joane) e os seus descendentes de apelido Boteler foram, por algumas décadas, Senhores de Sudley. Assim, Os dados disponíveis corroborariam a leitura proposta para a filiação em exame. Contudo, a 12 de Abril de 2009, numa consulta na internet à história do castelo de Sudeley, apercebi-me de que, à época em que os Boteler eram Senhores de Sudley, as armas que usavam eram tão-só as mais comuns dos de Wemme: de vermelho, uma faixa xadrezada de prata e negro, de 2 peças em pala e 6 em faixa, acompanhadas de seis cruzes potenteias de ouro, três em chefe e três em ponta. Outros Butler do ramo de Wemme ostentavam cruzes de outro tipo, ou do mesmo em maior número, e faixas xadrezadas com escaques também em quantidade variável, mas os escudos pouco mais variavam.
Destarte, tornou-se quase uma certeza que o William Boteler de Kirkland detentor de armas muito semelhantes às dos Sodrés, ou mesmo outra personagem do seu ramo, dificilmente teria conexão com os Boteler de Wemme que se ligaram aos Sudley. As consequências imediatas a tirar, julgo eu, são as de que, conquanto ainda seja admissível a hipótese do brasão dos Sodré emergir do de um ramo Boteler ou Butler ela perdeu muita força e, principalmente, a agregação Sodré-Sudley-Boteler num todo coeso, que permitisse explicar a origem do nome e armas de Sodré, perdeu a consistência que a Heráldica lhe aparentava conferir, a qual admiti como hipótese presumivelmente verdadeira até à sobredita consulta na internet de 2009 em que finalmente vi algo em que, noutras ocasiões, até poderei ter pousado os olhos sem ver…
Será agora de tentar perceber como surgiu a lenda Sodré-Sudley em genealogias manuscritas do séc. XVIII. Sabe-se de fonte segura que ela se iniciou no ramo dos Sodrés de Santarém, igualmente Senhores de Águas Belas, em Ferreira do Zêzere, herdeiros do morgado instituído pelo futuro Alcaide-mor de Tomar, Duarte Sodré, nos reguengos de Tojoza e Alviela, após mercê do Rei D. João II datada de 23 de Agosto de 1486. Esses descendentes estavam bem familiarizados com o testemunho no epitáfio da laje tumular do seu primeiro avô, na ermida de Nossa Senhora do Monte, asseverando “que descende e vem da linhagem da caza do Sodrea que he caza de grandes senhores do Reyno de Inglaterra”, porém, o mais provável é que desconhecessem que “grandes senhores” seriam esses. Com o incremento da produção de genealogias manuscritas nos séc. XVII e XVIII foram questionados sobre os seus ancestrais e buscaram respostas em livros ingleses chegando aos Sudley como a família que melhor se adequava a esse papel. Só não é possível perceber qual o grau de convicção com que o fizeram.
O facto é que o genealogista Monterroio, em 1743, escreve que “Frederico Sudley estabeleceu-se em Portugal onde casou e foi progenitor da família que escrevemos, como asseguram as memórias que vimos dos Sodrés de Santarém” e a isso junta “e depois os livros dos Reys de Armas de Inglaterra e de tudo formamos este Tratado”. Algumas décadas antes, sem que se conheça o ano certo, já o genealogista Peixoto escrevera “Federico Sudley que passou a Portugal com o Conde de Cambridge… Estabeleceu-se em Portugal onde casou e foi progenitor desta família de Sodrés, de que escrevemos como alegaram as memórias que vimos dos Sodrés de Santarém”. Temos uma frase idêntica que parece indicar que Monterroio se limitou a copiar Peixoto e talvez nem tenha consultado as referidas memórias familiares. Posteriormente, Manso de Lima tudo sintetizou no vasto trabalho “Famílias de Portugal”.
Decerto, a obra de Sir William Dugdale, Rei de Armas Norroy, “The Baronage of England”, publicada em 1675, era já bem conhecida dos nossos genealogistas que apenas tiveram que criar um único elo de ligação. Para tanto recorreram a um dos Sodré mais antigos, indubitavelmente documentado, Fernão Sodré, dando-lhe como pai um inexistente Frederico Sudley (o nome próprio até é estranho à Inglaterra do séc. XIV) e dizendo que Fernão começou por ser designado por Mossem Fernão Sudley e “foi chamado em português com pequena corrupção Fernão Sodré”.
Outrossim, e em hipótese alternativa, é bem possível que esse elo de ligação (Frederico) tenha sido criado pelos próprios Sodré de Santarém e de Águas Belas, como antes se aventou, na transição do séc. XVII para o XVIII, quando já estava bem interiorizada a crença na sua suposta ascendência de uma relevante família inglesa e eles mesmos já usufruíam de elevado estatuto social em Portugal. Então, viveram figuras como José Sodré Pereira, Senhor de Águas Belas, Capitão-mor de Águas Belas, Ferreira do Zêzere e Vila de Rei (1658) membro do Conselho do Rei D. Pedro II, Governador e Capitão-mor da Ilha de São Miguel (1677), Governador e Capitão-General das ilhas de São Tomé (1694), e o seu filho Duarte Sodré Pereira, membro do Conselho do Rei D. Pedro II (1704), Senhor de Águas Belas (1727), Governador e Capitão-General da Ilha da Madeira (1703) e mais tarde de Pernambuco (1727), Governador e Capitão de Mazagão (1719), ou ainda António Sodré Pereira, Capitão de Goa, Damão e Diu (1750), entre outras personagens aparentadas…, que dificilmente duvidavam das raízes ilustres dos antepassados do avoengo fundador do seu ramo de Sodré, o Alcaide-mor e Comendador Duarte Sodré, ainda para mais cinzeladas na sua pedra secular da laje tumular, onde apenas faltava identificar a família inglesa, porquanto não se encontrava nenhuma “caza do Sodrea” em livros ingleses.
Deste modo, é de aceitar que a ideia de que o primeiro Sodré era um Sudley inglês fixado em Portugal na segunda metade do séc. XIV somente surgiu nos finais do séc. XVII, porventura só com o acesso à sobredita obra de William Dugdale de 1675. A tradição da raiz inglesa já passara por outras explicações, mormente por transmissão oral dos descendentes de Vasco Gil Sodré, um dos primeiros povoadores de Ilha Graciosa nos Açores (talvez entre 1465 e 1480), a Gaspar Frutuoso que, por isso, nas “Saudades da Terra”, nos finais do séc. XVI, atribui a naturalidade inglesa à mulher daquele povoador, alegadamente uma Breatis Gonçalves (note-se o patronímico português) nascida no castelo de Bectaforte, que mais tarde outros autores mudam em Brasefortes e em Bedford. Frutuoso refere ainda que um filho de Vasco, Diogo Vaz Sodré, veio ao continente buscar testemunho da sua ascendência inglesa ligada ao suposto castelo de Bectaforte, no intuito de provar como era grande fidalgo, e terá mesmo obtido uma carta de brasão de armas de Sodré, a 21 de Março de 1503, hoje perdida, mas cuja existência é testemunhada, em 1569, pelo tabelião André Furtado de Mendonça que a viu. Este atestou ainda que Diogo declarava requerer as armas de seus avós que por direito lhe pertenciam da Casa dos Sodrés de Inglaterra, ou seja, recorreu aos mesmos termos do epitáfio de Duarte Sodré em Santarém, excepto na alusão a estes serem “grandes senhores” e a usar o plural “Casa dos Sodrés” ao invés de “Casa do Sodré”.
Conquanto a pretensa ligação a Bectaforte aparente uma falta de solidez semelhante à suposta ligação a Sudley e configure uma história diferente e alternativa para a dita origem inglesa dos Sodré, os genealogistas posteriores a Frutuoso não resistiram a entrelaçar Sudley e Bectaforte mediante casamentos. Todavia, fica-se com a ideia de que nem Vasco Gil Sodré nem os seus filhos alguma vez terão pensado nos Sudley como seus ascendentes, senão isso dificilmente deixaria de ser registado por Frutuoso no séc. XVI. O silêncio reforça a hipótese de essa ser uma interpretação do último quartel do séc. XVII.
Outra questão é a de tentar perceber por que motivo Diogo Vaz Sodré teria reivindicado descender da Casa dos Sodrés de Inglaterra, tal como acontece com os descendentes imediatos de Duarte Sodré que outro tanto mandaram esculpir na laje sepulcral deste. Julgo que só haverá duas hipóteses: ou se aceita como verdadeira a história relativa a Diogo Vaz Sodré, tal como ela é contada pelo tabelião Mendonça uma décadas mais tarde, ou se recusa dar-lhe crédito na ausência de provas mais concretas.
No primeiro caso, dada a proximidade entre a data da carta de armas de Diogo, a data da morte de Duarte Sodré e a presumível feitura da laje, fica-se com uma forte impressão de que pelo menos alguns Sodrés, ainda na segunda metade do séc. XV, estavam convictos da proveniência inglesa da sua família e das suas armas, inclusive partilhando essa crença em conversas entre si. No segundo caso, reconhecemos que o único testemunho confirmado, por enquanto, da alegada Casa dos Sodrés de Inglaterra é o gravado na laje e podemos especular no sentido de que isso apenas terá sido inventado depois da morte de Duarte Sodré, decerto na primeira metade do séc. XVI, para engrandecer e dar antiguidade às raízes da linhagem por ele iniciada, ao ser o fundador do morgado que impunha para todo o sempre o uso das armas e do apelido Sodré ao seu titular. Este, assim, evitava reconhecer a eventual génese modesta da família e da respectiva alcunha (como veremos que Duarte parece assumir) e facilitava a inserção e a promoção social dos novos fidalgos empenhados na missão que Duarte lhes confiara no seu testamento “folguem d’acrescentar neste morguado algua cousa pera compensação e acrescentamento desta linhagem e memorya della qua nesta esperança lhe dey este começo tam pequeno qua lho nom pude dar nem leyxar outro mayor”.
Contudo, de fora desta leitura, e por explicar, fica o facto do brasão dos Sodré evidenciar uma manifesta influência da heráldica inglesa. Eu diria mesmo que é o típico brasão inglês no seu melhor, com o chaveirão carregado de três figuras a acompanhado por outras três, composição estranha ao costume português de então. Conforme já alegámos, é muito similar ao de um ramo dos Boteler ou Butler e é possível, caso fossem realmente de origem inglesa, que o primeiro em Portugal fosse um Butler que cá ficou conhecido por uma alcunha que se perpetuou na descendência. Outra possibilidade é a do primeiro ser um português que copiou ou se inspirou nos escudos e bandeiras dos nossos aliados presentes nas guerras do séc. XIV contra Castela, assumindo armas novas para si, ou, em alternativa, terem-lhe as armas sido ordenadas daquele modo por acção de um oficial de armas inglês então em funções no nosso país (e alguns conhecem-se), e isso pode indiciar uma sua relação com o cargo de copeiro.
Não se sabe, porém é de lembrar que se viveram tempos de anarquia heráldica. Escreve Fernão Lopes que na batalha de Aljubarrota participaram cerca de duzentos ingleses, entre frecheiros e homens de armas “E assim tanto a vanguarda quanto as alas estavam semeadas de bandeiras e pendões a gosto de cada um, que não havia então rei de armas, nem outro arauto que impedisse ninguém de usar bandeiras à sua vontade”. E quem diz bandeiras diz brasões livremente adoptados que, alguns, perduraram nos seus descendentes.
O que é de dar como praticamente certo é que Duarte Sodré herdou a armas pelo avô materno, pai da sua mãe Inês Sodré, sendo estas, no mínimo, da segunda metade do séc. XIV, e não foi ele o primeiro a tomá-las nem as recebeu por carta de armas. Senão, estariam registadas em seu nome no Livro de Armeiro-mor, debuxado entre 1506-09, pelo passavante Santarém, João do Cró, que o terá conhecido muito bem, além de que Duarte não deixaria de assinalar esta mercê no seu testamento, como faz com outras, se ela tivesse ocorrido…
Especificamente para a denominação de Sodré, sabe-se que a origem das alcunhas é muito remota em Portugal, pelo menos desde a génese da nacionalidade, e que, quando começam a ser fixados e transmitidos os autênticos apelidos, e não meros patronímicos, pelo séc. XIII, muitas delas passaram a sê-lo e outras até substituíram, em algumas pessoas, os apelidos originais. Assim, houve famílias do mesmo sangue em que o mesmo apelido não era partilhado por todos os membros, enquanto noutras as alcunhas eram transmitidas aos seus membros sem que se transformassem em apelidos. Ainda hoje, no nosso mundo rural, há indivíduos aparentados que, por isso mesmo, são todos conhecidos localmente pela mesma alcunha embora tenham apelidos diferentes na sua documentação.
Ora, Duarte Sodré, no seu testamento, de 29 de Fevereiro de 1496, feito em Montemor-o-Novo, por Rui de Pina, expressamente declara “de mynha alcunha e apelydoo que he Sodre” e logo depois “se chame sempre da dyta alcunha de Sodre”, ao mandar que os seus sucessores mantenham o uso do seu sobrenome Sodré para a posteridade, pelo menos os que forem cabeça da linhagem do morgado por ele fundado. Claro que Duarte Sodré sabia que o seu sobrenome já lhe vinha, pelo menos, desde o seu bisavô, pois ainda hoje se conhecem indivíduos de duas gerações anteriores (a da sua mãe, Inês; e a de João e Fernão; o que implica uma terceira, a do bisavô desconhecido, possivelmente de nome João). Todavia, é perfeitamente de admitir que ainda soubesse que Sodré era um apelido derivado de uma alcunha e por isso utilizou esta expressão no testamento. Mas é evidente que também não se pode descartar liminarmente que Duarte tão-só estivesse a ser redundante, empregando o termo alcunha como mero sinónimo de apelido…
Voltando ao Fernão Sodré mencionado pelos genealogistas dos séc. XVII e XVII como Sudley e filho de um Sudley, há documentação comprovativa de que era escudeiro de D. João I, em 1414, com 200 libras de moradia, e foi escrivão da alfândega de Lisboa pelo menos desde 1426 até uma data situada entre 1434-37, quando foi afastado do cargo e, momentaneamente, preso e privado de todos os bens, tendo sido libertado e recuperado a maior parte do seu património por mercê do Rei D. Duarte. A documentação deste caso está amplamente publicada, mas falta imprimir textos que permitem seguir o trajecto de Fernão, nomeadamente na forma como vai manter e transmitir os seus bens e, uma década depois do seu infortúnio, guindar-se a funções que lhe restituíram a honra maculada pelos abusos cometidos na gestão alfandegária.
Desta sorte, sobre este Fernão Sodré, D. Flamínio de Sousa transcreve a carta de dote seguinte “Dote de Fernão Sodré, criado de El-Rei D. João I e Reposteiro-mor da Rainha de Castela, a Isabel Serrã donzela da Infanta D. Beatriz e filha de Afonso Lopes e de Tareja Anes amos da dita Rainha, para casar com seu filho João Sodré escudeiro e escrivão de El-Rei de todos os seus bens e da dita ama Tareja Anes, sua segunda mulher e mãe da noiva, sitos em Álcacer, Montemor, Almada e Mafra, menos as legítimas das outras filhas que tinha da dita ama…. Lisboa, 9 de Junho de 1447.” e, noutro documento, “Doacção de João Serrão, menor de quinze anos, e de Inês Serrã de suas legítimas à dita Isabel Serrã sua irmã…. Confirmado tudo 1457”.
Da chancelaria de D. Afonso V, livro 2 de místicos, fl. 152v, transcrevo o seguinte “A João Sodré e Isabel Serrã sua irmã confirmação de doacção que lhe fez João Serrão e Inês Serrã de todas as terras e herdades, vinhas e outros bens que lhe pertenciam haver e herdar por morte de seu pai e mãe em a vila de Montemor-o-Novo e em Alcácer e em Almada e em esta cidade de Lisboa e em Mafra e seus termos…” e “João Serrão escudeiro da casa de D. Isabel Rainha de Castela, sua irmã Inês Serrã, donzela da dita senhora, por grande dívida de irmandade que haviam com Isabel Serrã sua irmã, donzela da senhora infanta D. Beatriz, por quanto ora casava com João Sodré escudeiro e criado de El-Rei…”.
D. Isabel foi Rainha de Castela por casamento com o Rei D. João II de Castela, então viúvo, em 1447. Era filha do Infante D. João (1400-1442), Condestável do Reino e Administrador da Ordem de Santiago, e irmã da Infanta D. Beatriz atrás referida. Sendo Tareja Eanes ama de D. Isabel isso terá concorrido para que o seu segundo marido, Fernão Sodré, viesse a ascender à honra de ser nomeado para o cargo palatino de Reposteiro-mor real. O casal deve ter partido para Castela e por lá ficado o resto da vida, porquanto deixa todos os bens aos respectivos filhos dos seus primeiros casamentos, que aliás também casaram um com o outro (João e Isabel). Por sua vez, dois outros filhos de Tareja e de Fernão vão abdicar da sua parte da herança em prol do dito casal.
Na época em que Fernão seria ainda um jovem escudeiro, Gomes Eanes de Zurara (1410-74), Cronista-mor de Portugal e Guarda-mor da Torre do Tombo, na Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, no capítulo LX, intitulado “Como alguns Fidalgos de Ceuta, contra a vontade do Conde, foram ao Vale de Negrão”, refere um João Sodré num contexto em que ele integra uma força montada em vias de encetar uma correria espontânea em terras mouras, à qual um escudeiro do Conde, de apelido Vaz, dirige a palavra dizendo “se vós que sois os principais Fidalgos, que aqui estais, quiserdes fazer começo na desobediência…”. Ou seja, tudo aponta para que fosse um homem de armas, talvez mesmo alguém já armado cavaleiro, até porque o capítulo em apreço nomeia os que apenas eram escudeiros. Destarte, é de pressupor que João e os demais fossem cavaleiros a quem o escudeiro Vaz (ou melhor, o próprio autor Zurara) chama “principais fidalgos”…
Posto que o cerco mouro de 1418-19 apenas se inicia no capítulo LXII, a incursão teve lugar entre 1415 e 1418, e a presença de João Sodré em Ceuta nesse período indicia que terá participado na conquista da praça, a 22 de Agosto de 1415, e terá passado a fazer parte da guarnição. Não se conhecendo documentação que mencione um Sodré em data anterior, excepto Fernão Sodré, escudeiro em 1414, não há razão para aventar que os primeiros Sodrés fossem outra coisa que não combatentes ou homens de armas. Décadas depois, em tempos de paz, aparecem, então sim, em cargos associados a oficiais régios e aquele Fernão Sodré será escrivão da alfândega de Lisboa e, mais tarde, o seu filho João ascenderá a almoxarife do armazém igualmente de Lisboa.
Por uma qualquer razão, alguns autores focaram as ligações burocráticas tardias à alfândega de Lisboa e praticamente olvidaram o mais antigo reporte militar a Ceuta, quando procuraram as origens sociais dos primeiros Sodré. E, nessa demanda, é de aceitar que, pelo menos, se deve recuar uma geração para trás de João Sodré. Aí talvez esteja o primeiro a usar o apelido (especialmente se fosse uma alcunha) e, na verdade, desconhece-se se o encontraríamos num funcionário civil, num combatente profissional, ou noutra função. Apenas se pode especular.
O que é assaz provável é que o cavaleiro João Sodré de Ceuta fosse mais velho do que o escudeiro Fernão Sodré, até porque este era vivo e activo em 1447, embora João também devesse ser jovem e algo indisciplinado como se deduz da crónica que o mostra envolvido em cavalgadas aventureiras não autorizadas pelo Governador D. Pedro de Meneses. Assim, temos por bom que este João é o mais velho Sodré documentado, e não será por acaso que João é o nome próprio mais comum nesta família nos tempos mais recuados. Porventura, indiciando que um João Sodré (talvez pai dos anteriores) foi o progenitor da família…
Tentar reconstruir todas as ligações familiares entre os primeiros Sodrés com base na informação credível até ao presente descoberta apenas gera erros em tudo similares aos incorridos pelas antigas genealogias manuscritas, com encaixes forçados e datas de nascimento e óbito inventadas para se ajustarem. É um esforço inglório. Assente em documentação segura já publicada, pode-se afirmar que o Reposteiro-mor Fernão Sodré foi bisavô do navegador Vasco da Gama (que um documento denomina Vasco da Gama Sodré), por via do seu filho João Sodré e da sua neta Isabel Sodré. Quanto ao cavaleiro João Sodré, é bem mais difícil afiançar o que quer que seja, mas é possível que fosse avô de Duarte Sodré e pai da mãe deste, Inês Sodré, porque João vai ser o nome do filho primogénito de Duarte (não herdará porque se fez frade franciscano) e este não dá o nome de Fernão a nenhum outro dos três que teve (João, Francisco, Manuel, conforme frisa no seu testamento), o que é esclarecedor. Duarte Sodré fez o seu testamento na vila de Montemor-o-Novo e Fernão Sodré teve terras nos arredores, uns cinquenta anos antes, mas isso não configura ligação familiar estreita.
É um facto que, bem mais tarde, descendentes de Duarte Sodré terão o nome de Fernão, mas isso porque o seu neto e homónimo Duarte Sodré, filho de Francisco Sodré (que herdou o morgado) e de Violante Pereira, casou com D. Dionísia de Sande, filha do Comendador Fernão Lopes de Sande (que também foi padrasto de Duarte Sodré após morte de Francisco Sodré), de quem teve Fernão Sodré Pereira e Francisco Sodré Pereira. Este Fernão foi Senhor de Águas Belas e do morgado dos Sodré, e o nome próprio vem-lhe do avô materno.
Inês Sodré, seguramente mãe de Duarte Sodré, poderá ter sido filha do João Sodré de Ceuta, ou do primeiro casamento de Fernão Sodré (as datas não permitem ser uma das filhas do segundo casamento), ou doutro Sodré que possa ter vivido nesse tempo. Contudo, o mais adequado é terminar o estudo genealógico ascendente das linhas que vão dar ao Alcaide-mor de Tomar na figura da sua mãe Inês (o pai foi Gil Pires de Resende), talvez nascida por volta de 1414, enquanto Duarte Sodré poderá ter nascido em Santarém, onde os pais residiam, durante o reinado do Rei D. Duarte (1433-38) e daí o seu nome.
Frei Duarte Sodré foi indubitavelmente um dos maiores cavaleiros da Ordem de Cristo da segunda metade do séc. XV, chegando a Comendador do rico domínio rural da Cardiga e a Alcaide-mor da vila e castelo da sede da Ordem, Tomar, além do de Seia. Não é pois de estranhar a seguinte disposição testamentária “Item mamdo que me emterem no meu mamto bramco que eu sempre traguo comygo como a nosa regra hordena e mamda”. Todavia, revelou pouca aptidão para a acumulação de bens materiais e por sua morte deu instruções para que se realizassem diversos pagamentos e doações, que muito diminuíram o património familiar. Os seus dois filhos (descontando o João franciscano), Francisco e Manuel, partirão para a Índia em busca de melhor fortuna, na armada de Jorge de Aguiar do ano de 1508, e por lá ficaram. Foi a mulher de Francisco, Violante Pereira, quem, quando este era falecido, intentou uma acção judicial de reivindicação do morgado de Águas Belas, na condição de herdeira do seu irmão Rui Pereira, e só o seu já idoso filho, Duarte Sodré Pereira, recebeu o morgado patrimonial, tirada a jurisdição, por sentença da Casa da Suplicação de 22 de Novembro de 1574, juntando-o ao mais pequeno dos Sodré de Santarém.
Então sim, a linhagem iniciada por Duarte Sodré ganha real relevo social, advindo Sodrés Pereiras, Senhores de Águas Belas, descendentes, por via feminina, do primeiro morgado (confirmado a 20 de Maio de 1361 pelo Rei D. Pedro), Rodrigo Álvares Pereira, irmão mais velho do Santo Condestável e participante pelo lado português nas guerras de D. Fernando e de D. João I contra os castelhanos, como aparece nas crónicas de Fernão Lopes, recebendo pelo seus feitos Vila Nova de Cerveira (doação de 09 de Março de 1386), até que, por razões desconhecidas, emigrou para Castela algures entre 1389-90. O senhorio de Águas Belas seguiria para o seu filho, Álvaro Pereira, que participou na tomada de Ceuta (como João Sodré), em 1415, e obteve significativas mercês do Rei D. João I e do seu tio, o grande D. Nuno Álvares Pereira.
Explicada a ascensão destes Sodré, é de regressar à demanda da origem deste apelido e apresentar uma nova proposta de possível solução, alicerçada na conjuntura em que ele surge aparentemente do nada e como alcunha. Talvez seja de começar com o Rei D. Fernando, subscritor do já mencionado tratado anglo-luso de Tagilde, a 10 de Julho de 1372, e que, no quadro das suas guerras com Castela, recebe o apoio do exército inglês do Conde de Cambridge (filho do Rei Eduardo III), o qual permaneceu em Portugal de 19 de Julho de 1381 a 01 de Setembro de 1382, cujos capitães influenciaram a instrução militar do futuro Condestável D. Nuno Álvares Pereira e a forma de dar batalha adoptada em 1384-85 nos Atoleiros e em Aljubarrota. Homens de armas e archeiros ingleses participaram na épica vitória de 14 de Agosto, e muitos mais passaram pelo nosso país durante os anos de guerra.
É conhecido que, a partir do Rei Eduardo I (1272-1307), a coroa inglesa recorreu progressivamente aos serviços de mercenários recrutados por contrato liderados por um capitão profissional da guerra. O verdadeiro sistema feudal já não vigorava em Inglaterra e a alta nobreza era incapaz de fornecer as mesnadas necessárias de combatentes. A formação de um novo exército de guerreiros a soldo permitiu a homens de armas aventureiros, sem terra e de obscura proveniência, conquistar para si um lugar ao sol. Deste modo, quando eclode a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), os nobres ingleses estavam habituados a combater lado a lado com os peões, entre os quais o escol era formado pelos archeiros equipados com um arco longo de 1,5 a 2m, de origem galesa, adoptado pelos ingleses. Atrás deles seguiam os cutileiros, quase todos galeses, armados com uma longa faca de aço, excelente para eliminar os cavaleiros derrubados e com dificuldade em se erguer.
Segundo Ricardo Schutz, na “História da Língua Inglesa”, Robert de Gloucester refere o inglês, em 1300, como uma língua ainda falada apenas pela arraia-miúda, “low people”, e este só será usado na abertura do parlamento de 1362 em diante. No período a que nos reportamos, a terminologia militar seria basicamente francesa. Ora, desde o séc. XII que soudoyer significa contratar gente de guerra a soldo, e o substantivo sodoier (mercenário) deu o inglês soldier (soldado). Actualmente existem em Inglaterra os apelidos Sodoyer (do francês antigo) e Souder (do inglês médio 1066-1475) que remetem para o antedito.
Será esta a origem da alcunha tornada apelido Sodré? Seria o primeiro Sodré um capitão ou um mero homem de armas inglês dos que ajudam os reis portugueses nas lutas contra Castela a partir do tempo de D. Fernando? Um sodoyer ou souder? Se assim foi, era possível que ele tivesse uma qualquer ligação aos Boteler ou Butler, ou a alegasse, o que explicaria o escudo de armas depois indigenizado e oficializado em Portugal.
Outrossim, se esta congeminação se aproximasse da verdade, os dizeres na campa de Duarte Sodré “que descende e vem da linhagem da caza do Sodrea que he caza de grandes senhores do Reyno de Inglaterra” encaixariam minimamente na ordem que dá no seu testamento “Item mamdo que sobre mym lamcem hua campanam com mynhas armas e nella se ponha letra que faça memorya de mym…”, porquanto somente haveria que descontar o natural exagero, empolado pelo tempo decorrido, pois, com certeza, as origens de um qualquer, autêntico ou suposto, Butler da segunda metade do séc. XIV seriam agigantadas pelos Sodré da primeira metade do séc. XVI (a laje deverá ter sido cinzelada entre 1500-08). Outro tanto se pode afirmar para qualquer outro sodoyer-souder inglês, mesmo que não reivindicasse ser um Butler, que fosse o genearca da família. A construção de uma lenda de grandeza em torno dele seria altamente provável.
No entanto, somente as circunstâncias históricas assinaladas e a sugestão de similitudes etimológicas não bastam para assumir a resolução do problema sem mais documentação.
Ao invés, caso o progenitor da família Sodré fosse um português de raiz, cujo apelido derivasse de uma alcunha indecifrável (até ao momento, o nome Sodré é documentalmente datável da segunda metade do séc. XIV), então a conjuntura da época em que brotou à luz do dia torna muito crível que se lhe aplicasse a famosa sentença de Fernão Lopes expressa no capítulo da Crónica de D. João I sobre a “sétima idade que se começou no tempo do Mestre..., na qual se levantou outro mundo novo e nova geração de gentes. Porque filhos de homens de tão baixa condição que não cumpre dizer, por seu bom serviço e trabalho foram neste tempo feitos cavaleiros, chamando-se logo de novas linhagens e apelidos...”.
A conjectura de que os Sodré foram sempre portugueses também se alicerça no facto de nenhuma fonte indiscutivelmente dos séc. XIV ou XV apontar nitidamente no sentido de não o serem (excepto o ordenamento do escudo de armas). Julgo também que uma elevação social recente (talvez do seu pai) por bons serviços em nada impediria que João Sodré fosse colocado por Zurara entre os fidalgos de Ceuta.
Entretanto, a publicação do material sobrevivente da chancelaria de D. João I (1384-1433) não forneceu qualquer nova pista. Desta sorte, sem o aparecimento de nova documentação, este é o meu presente ponto de situação do problema em análise, o qual fica devedor do vasto levantamento feito pelos investigadores Manuel Abranches Soveral e Manuel Lamas de Mendonça.
Bibliografia Sumária:
Artigos relativos a indivíduos da família Sodré, inclusive Vasco da Gama, publicados na revista “Armas e Troféus”, 1987-88, 1991, 2002-03, 2008; na revista “Raízes & Memórias”, 2004; no boletim da Academia Portuguesa de Ex-Líbris, 1992, 1995-99; e as diversas fontes neles transcritas ou citadas. Pesquisas na Internet e em obras de História e de Etimologia.
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RE: Reavaliação do Nome Armas de Sodré
Mais artigos e informação em http//:sodre.blogs.sapo.pt
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RE: Reavaliação do Nome Armas de Sodré
Caro confrade Sérgio Sodré,
Interessantíssimo blog. Meus parabéns pela pesquisa árdua que o senhor desenvolve.
Saudações,
Granada
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RE: Reavaliação do Nome Armas de Sodré
Este texto foi agora publicado (Abril de 2010) como artigo da revista nº 26, relativo ao ano de 2009, da Raízes & Memórias, boletim da Associação Portuguesa de Genealogia.
Na revista apenas consta uma gralha arreliante, que consiste na indicação do ano de 1385 para a batalha de Atoleiros ao invés do correcto 1384...
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RE: Reavaliação do Nome Armas de Sodré
Caro Sérgio Sodré:
Agradecia-lhe o favor de me contactar para o meu e-mail.
Cumprimentos,
José Caldeira
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RE: Reavaliação do Nome Armas de Sodré
Na obra "Corografia Portuguesa e Descrição Topográfica do Famoso Reino de Portugal", tomo terceiro, Lisboa, 1712, do Padre António Carvalho da Costa, na pg 211, lê-se o seguinte:
"...Francisco Sodré, filho de Duarte Sodré, que foi Alcaide-mor das vilas de Tomar e Seia, e Vedor da Casa de El-Rei D. Manuel, e no dito seu filho instituiu o morgado com obrigação do seu apelido, que hoje se conserva nesta descendência, e foi também Duarte Sodré Comendador da Ordem de Cristo, e foi neto de João Sodré, que teve moradia de Fidalgo na Casa de El-Rei D. Afonso V...".(actualizei a grafia)
Destaco este texto porque o autor defende que o avô de Duarte Sodré se chamava João Sodré, o que também eu julgo ser verdade.
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RE: Reavaliação do Nome Armas de Sodré
Errata: No texto, refere-se "o cerco mouro de 1418-19", mas devia, antes, referir "os cercos mouros de 1418-19", porquanto houve o de 1418 e o de 1419.
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