Escravos ou com tratamento de Dom?

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Escravos ou com tratamento de Dom?

#94146 | DiogoA | 23 jun 2005 03:04

Pelo que me foi dado a perceber (embora acredite que não seja assim tão linear como isso) um bebé (rapaz ou rapariga) tinha direito ao tratamento de Dom (ou Dona) se o pai tivesse esse direito hereditável. Mesmo que esse bebé fosse bastardo!!

Qual era o destino dos filhos bastardos de um nobre com Dom tidos com uma escrava? Se o pai não os reconhecesse provavelmente continuariam escravos ou seriam simplesmente alforriados.
Mas e se o pai os reconhecesse?? Tinham tratamento de Dom? Direito a brasão de armas? Enfim... seriam nobres?

Obrigado,
Diogo Alenquer

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RE: Escravos ou com tratamento de Dom?

#94227 | feraguiar98 | 24 jun 2005 00:03 | Em resposta a: #94146

Caro Diogo Alenquer,

O título de Dom transmitia-se a todos os filhos e filhas legítimos. A excepção que conheço eram os bastardos reais, que usavam o Dom mas já não o transmitiam aos filhos ainda que tivessem casados com senhora nobre.
Poderão ter havido excepções por mercê régia mas não creio que tenha ocorrido fora de mercê de legitimação e estas, se eram vulgares em casos de filhos naturais seriam muito menos no de bastardos.
Mas não sou especialista nem especialmente conhecedor pelo que também gostaria de ver alguma intervenção de alguém que o seja.

Quanto ao brasão é sempre uma mercê pessoal e o simples uso de armas da família paterna poderia ser punido pois a falta da indicação de bastardia seria notória. Na alta idade média não me parece que ser filho de escrava fosse impeditivo de obter armas por feitos militares. Depois de finais de XV já seria mais complicado por ser evidente a impureza de sangue.
Mas também desconheço casos concretos que possam confirmar ou prejudicar esta opinião.

Para a nobreza hereditária, seguiria o que disse para a possibilidade de obter armas mas para a nobreza de serviços, se por exemplo chegasse a Desem-bargador, não creio que a ascendência retirasse algum direito ou privilégio.

Cumprimentos
Fernando Aguiar

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RE: Escravos ou com tratamento de Dom?

#94237 | DiogoA | 24 jun 2005 01:27 | Em resposta a: #94227

Caro Fernando Aguiar,

Confesso-lhe que induzi que a bastardia não era impeditiva da herança do tratamento de Dom pela imensa recorrência de filhos bastardos Dons na base de dados do GP. Quase que não encontro uma excepção à regra! Suponho que uns tenham obtido mercês pessoalmente e outros tenham sido simplesmente uma simplificação da base de dados.

"Depois de finais de XV já seria mais complicado por ser evidente a impureza de sangue.
Mas também desconheço casos concretos que possam confirmar ou prejudicar esta opinião. "

No século XIX reconheço o barão de Água-Izé (estarei a enganar-me no título?) como um nobre mestiço. Mas o meu interesse queda-se mais para antes do constitucionalismo. Porquê? Porque os historiadores publicitam muito que as bases do antigo império português assentavam numa população mesclada cristã e leal à coroa. Fiquei com curiosidade para saber até onde esta sociedade tolerante a nível de misturas raciais - o que não se pode confundir com uma utopia livre de preconceitos raciais - deixava não-brancos integrarem-se na hierarquia nobiliárquica!

Claro que parti de um exemplo mau porque assumi erradamente que os tratamentos de Dom se transmitiam de uma maneira mais livre mesmo entre brancos.

Muito obrigado pelos seus esclarecimentos,
Diogo Alenquer

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RE: Escravos ou com tratamento de Dom?

#94251 | feraguiar98 | 24 jun 2005 10:39 | Em resposta a: #94237

Caro Diogo Alenquer,

Por favor não esqueça que não estudei esse assunto, por isso aceite as minhas observações com alguma cautela.

O impedimento baseado na impureza de sangue teve a duração da inquisição. No séc. XIX já não existia e antes creio que também não.

Creio também ter existido um visconde de (Malanzas ?) mestiço escuro.
Salvo erro os barões de Água-Izé eram da família dos príncipes de Cabinda. O título de príncipe nunca terá sido formalmente reconhecido mas foi referido pelo menos a Dom João, que veio a Portugal prestar vassalagem a Dom João II. Este era negro e sempre foi tratado de Dom, antes da inquisição portanto.

Lateralmente, refiro ainda que a soberania de Portugal sobre Cabinda foi reafirmada pelo tratado de Simulambuco, celebrado entre Cabinda e Portugal. Mais tarde, Salazar, quanto a mim em prepotência ilegítima e sobretudo injusta, reduziu Cabinga a um Distrito de Angola, situação de que os Cabindas ainda não se livraram nem sei se algum dia o poderão conseguir.
É um exemplo típico do mau colonialismo europeu, ignorando circunstâncias étnicas (os Cabindas são distintos e mais evoluídos do que qualquer etnia angolana) e direitos históricos (quando os portugueses lá chegaram, Cabinda era independente do reino do Congo que dominava parte significativa do que hoje é Angola) para traçar fronteiras administrativamente convenientes.

O estudo que se propõe fazer parece-me profundamente interessante mas terá que recorrer à historiografia do Brasil e da Índia, além de África e talvez obtenha conclusões diversas em cada uma destas áreas geográficas.

Na Índia muitos indígenas foram nobilitados mas eram, creio que quase exclusivamente das duas castas dominantes e convertidos ao cristianismo.

Em Angola o grupo social mestiço mais proeminente, terá sido o que se chamou a burguesia crioula de Luanda, originada na época da reconquista por Salvador Correia de Sá, e formada a partir de holandeses católicos ou convertidos e alguns membros da esquadra que casaram e já não regressaram ao Brasil, e que ao longo do tempo se miscigenaram.
A sua importância era tal que quando Pombal proibiu o tráfico de escravos, a medida foi derrogada em Angola por cerca de 20 anos, para obstar a que esse importante grupo ficasse sem rendimentos. Recentemente, contituiram grande parte dos quadros do MPLA pelo que ainda constituirão importante parte do grupo socialmente dominante em Angola. O mais visível, será o antigo ministro do Petróleo, Van Dunen, com uma família estudada num livro publicado em Luanda há meia dúzia de anos.
Mas, neste grupo, não me lembro de nobilitações (poderão ter havido).

No Brasil parece-me mais difícil. Nunca houve assimilação indígena e quanto aos negros, foi a página mais lamentável da escravatura portuguesa, quer nos números envolvidos quer no tratamento dado aos escravos sobretudo nos engenhos de açúcar.
Não duvido que na nobreza do Império, muitos teriam ascendência negra, mas não era assumida, antes escondida. Aliás, não sei se também por influência da imigração alemã e italiana o Brasil tinha "coisas" estranhas. Por exemplo até há não muitos anos, não havia um único negro que fosse oficial da marinha de guerra (parece que nunca passavam nas provas de ingresso). E em vastíssimas áreas do Sul, por exemplo na cidade de Florianópolis, com bem mais de um milhão de habitantes não há um único negro. Os brasileiros dizem que é por razões climáticas (o sul é frio de inverno) mas eu sou um pouco céptico.

Creio que a propensão portuguesa para a miscigenação é única na sua dimensão e absolutamente admirável na Índia por se ter efectivado em grupos étnicos avessos a qualquer mistura e com tendência para a intolerância religiosa como ainda hoje se verifica. Acho espantoso que S. Francisco Xavier seja ainda hoje, festejado em Goa por cristãos, hindus e muçulmanos. (E ainda mais espantoso que isso não seja amplamente divulgado nem tenha merecido qualquer reportagem das nossas televisões).

Por último, receio que a óptica do acesso à nobreza, seja algo redutora, já que a população miscigenada teria importância na administração e mesmo no exército mas a nobilitação foi mais um fenómeno de Côrte, de Lisboa, com muito menor expressão no interior de Portugal ( a excepção será a Madeira de que já ouvi dizer que tem mais nobres do que habitantes :-) ) e, por maioria de razão, no império.

Com cumprimentos,
Fernando Aguiar

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RE: Escravos ou com tratamento de Dom?

#94264 | cyrne | 24 jun 2005 12:45 | Em resposta a: #94251

Caro Fernando Aguiar,

Interessa-me muito este tema, para melhor compreender a nossa posição face ao mundo por onde passamos e marcamos. Gostei bastante da sua intervenção, clara e sem preconceitos.

Cumprimentos,

Vasco Cyrne

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RE: Escravos ou com tratamento de Dom?

#94281 | MSá | 24 jun 2005 17:22 | Em resposta a: #94264

Prezados confrades, saúde.

O livro Ditos Portugueses, obra anônima publicada por José Hermano Saraiva pela ed. Europa-América, há repetidas referências (p.190 e segs.) a um negro, João de Sá, que não tinha tratamento de dom, mas circuloava na corte com desembaraço e privaria com os grandes do reino, inclusive com os reis D. João III e D. Henrique. O que parece reforçar a hipótese da desimportância relativa da cor da pessoa, comparando-se com épocas posteriores. Mas, seria apenas por influência da Inquisição?

Cumptos.

Luiz M Sá

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RE: Escravos ou com tratamento de Dom?

#94298 | Ricardo de Oliveira | 24 jun 2005 18:53 | Em resposta a: #94251

Caros Amigos

A questão das relações interétnicas no Império e no mundo lusófono já foi trabalhada por clássicos como o Gilberto Freyre e estrangeiros como o Boxer, para citar apenas os antigos. O fato é que a formação do Império Português foi a mais profunda experiência de mestiçagem política já conhecida, mesmo com as considerações sobre a desigualdade racial facilmente comprováveis. O Império Português por excelência foi o Brasil. Dos mais de 200 milhões de falantes da nossa língua, mais de 180 milhões estão no Brasil, ou quase 90 %, nove em cada dez ! O Brasil produziu a sua própria nobreza com o seu próprio processo de conquista e colonização. O povo português formou o Brasil nas contínuas emigrações vindas de maneira concentrada de dois grandes pólos povoadores : O Norte de Portugal e os Açores. A primeira "nobreza da terra brasileira" foi fundamentalmente miscigenada. Os troncos primeiros do Tibiriçá-João Ramalho em São Paulo, do Caramurú na Bahia e dos Albuquerque em Pernambuco. As três genealogias clássicas do Brasil apontam este marco fundador. Os bandeirantes que rasgaram o Tratado de Tordesilhas e conquistaram terras castelhanas, os membros da Casa da Torre nos sertões nordestinos e os Albuquerque Maranhão revelam o processo de aliança com grupos indígens e a conquista do território brasileiro contra os espanhóis, franceses, ingleses e holndeses. As primeiras famílias brasileiras têm raízes mestiças e promoveram a continuidade dos grupos indígenas com o projeto português. A mestiçagem africana também foi bastante presente. Uma rigorosa malha de pesquisa tridentina pode captar os pontos em uma árvore genealógica brasileira em que a presença africana ou escrava aparece. Eu já encontrei antepassadas escravas e creio poder encontrar mais se tivesse como pesquisar com maior rigor. A presença africana teve mais intensidade em algumas regiões do que em outras. A alta nobreza portuguesa só se veio para ficar no Brasil e se estabeleceu com a vinda família real em 1808. Antes não deitaram raízes na genealogia brasileira. Era um vice-rei que passava e ia embora sem contribuir muito. A média nobreza e muitas família da pequena nobreza portuguesa efetivamente tiveram filhos com escravas ou ex-escravas. Sempre o padrão do homem português com a mulher indígena ou africana. A questão do Dom no Brasil é complicada porque o seu uso sempre foi restrito. O nosso amigo Doria já discutiu várias vezes este assunto. Já a "nobreza brasileira" vai ganhando força política, consistência e consciência com os séculos, até se tornar na sede e no centro do Império em 1808. esta nobreza da terra apresentou um padrão miscigenado bastante frequente. Esta nobreza brasileira seguiu uma evolução política e formou a república com um regime político oligárquico no século XX. Se perguntarmos se a nobreza brasileira foi miscigenada, a resposta é que sim. Como o tratamento ou o título de Dom foi relativamente restrito no Estado do Brasil, e o poder político efetivo pertencia à nobreza da terra brasileira, constantemente alimentada por novos ingressos do povo português (não da nobreza portuguesa), a reposta é que poderia haver um filho de um membro da alta nobreza com uma escrava a receber o Dom, mas só me lembro agora de uma figura notável no Rio de Janeiro, o Dom Obá, um negro folclórico, com supostas raízes nobres ou até mesmo reais, proveniente da África e que assim era conhecido e saudado ! Ex-escravas ricas e poderosas eram tratadas como "Donas" no século XVIII.
Geralmente a escrava reconhecida como gestante de alguém de condição "superior" era imediatamente alforriada para que a criança já nascesse livre. Escravas que eram acompanhantes de clérigos eram forras, porque senão a criança nasceria escrava. Situações como a da Escrava Isaura eram conhecidas. Alguns escravos ou escravas nasciam fenotipicamente muito "brancos" depois de algumas gerações, ainda mais que o povo português também é bastante moreno e a presença africana em Portugal também foi relevante. Uma última observação pertinente, uma vez que a minha família paterna é uma das mais antigas varonias no Estado brasileiro de Santa Catarina, é a de que desde que começou a povoação vicentina ( dos paulistas da antiga Capitania de São Vicente) para a Ilha de Santa Catarina, sempre houve presença negra na atual Florianóplis. Os negros conhecidos em tupi pelo nome de tapanhunos acompanhavam a expansão bandeirante e muitas vezes eram excelentes combatentes nas bandeiras, junto com os índios tupis. Apenas em distritos coloniais remotos de imigrantes alemães é que não havia presença negra ou mulata. Nas nossas áreas de colonização, como em Florianópolis, sempre houve negros. Há até escolas de samba em Floripa. O meu bisavô nasceu em Joinville, Santa Catarina e o pai dele possuiu escravos até a lei Áurea, em 1888. Em plena região de colonização alemã em Santa Catarina havia brasileiros e escravos africanos, por exemplo. Depois da campanha da nacionalização realizada na segunda Guerra Mundial, todos os nascidos no Brasil passaram a aprender a falar o português, o que facilitou a presença negra em quase todas as regiões de Santa Catarina. Mas existem alguns remotos distritos rurais em que quase não se encontra nenhum sobrenome de origem portuguesa, ou como se diz, sobrenome brasileiro.

Abraços

Ricardo

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