Profissão de Barbeiro no séc. XVI
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Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Poder-me-iam dizer quaisquer eram as funções de um Barbeiro no séc. XVI, além de cortar cabelo?
Desde já grato pela atenção
Marco Santiago
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caro Senhor,
O séc. XVI é um bocadinho recuado para me sentir à vontade mas creio que não erro muito se disser que barbeiro, surgião (forma popular de cirurgião) e sangrador eram a mesma profissão. Cortar o cabelo seria uma das suas menores funções, pois os ricos tinham criados domésticos os escravos que executavam essa função e os pobres não podiam pagar.
Pequenas cirurgias, como forma de resolver infecções, cortar ou mais frequentemente aplicar sanguessugas, arrancar unhas encravadas e, se para isso tinham gabarito, arrancar dentes (acarretando o perigo de hemorragias incontroladas) ou "endireitar" ossos e articulações, eram algumas das suas funções.
De resto havia de tudo, desde o contratado para assistir a um ou uns doentes ricos, por vezes com direito a habitção e mesa, a outros que tinham outra profissão acumulando para sobreviver.
Não lhe sei dizer desde quando, mas precisavam de uma autorização para o exercício da profissão e creio que tiveram um ou mais regimentos (regulamentações); tendencialmente - mas muito depois do séc. XVI- foram perdendo o "exercício" do acto médico, que apenas executavam sob direcção ou prescrição médicas e, primeiro nas cidades, depois nos lugares mais pequenos, passam então a ser mais cabeleireiros e barbeiros do que "paramédicos e enfermeiros"; no entanto a profissão durante muito tempo foi mais barbeiro do que cabeleireiro pois os clientes iam fazer a barba muito mais vezes do que cortar o cabelo.
Curiosamente, ou porque arrastassem um prestígio anterior ou pela própria ordem das coisas, a "gestão" do conhecimento transmitido em conversas dos clientes, conferiu aos barbeiros uma certa importância local que, por si, não se justificaria. E, ainda hoje, se nenhum barbeiro enriqueceu a cortar cabelos, conheço alguns que, no ramo da intermediação imobiliária irregular, se orientaram muitíssimo bem.
Cumprimentos.
Fernando Aguiar
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caro Fernando Aguiar:
Muito boa esta síntese que fez da profissão de barbeiro (ou "surgião") e respectiva evolução histórica, sem esquecer, obviamente, a nota final que efectivamente corresponde à verdade.
Já agora, gostava de lhe colocar estas questões:
A partir de que época surge a profissão de físico em Portugal, devidamente regulamentada e que seria a designação dos actuais médicos até determinada época.
Qual a formação académica que lhes era exigida, por oposição, p.ex., aos barbeiros?
O exercício dessa profissão conferia, por si só, nobreza? Estou-me agora a lembrar dos muitos físicos judeus que exerceram a partir do século XV em diante e que, segundo creio, nunca foram nobilitados...
Cumprimentos,
João Pombo
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caro Fernando Aguiar
Apreciei com muito interesse a sua explicação, se me permite, acrescentarei que no séc. XVII havia "surgiões" que levavam dois anos de prática no Hospital de Todos os Santos (por exemplo) e tinham de possuir um alvará para exercer a profissão que só era passado depois de provas prestadas junto dos físicos do hospital e com favorável informação do Físico-Mór do Reino.
Com cumprimentos.
A. de Sepúlveda
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caro João Pombo,
Não creio poder esclarecê-lo pois apenas possuo conhecimentos de cultura geral, aquilo que fica quando já nos esquecemos do que aprendemos.
Não sei quando passou a ser regulamentada a profissão de físico mas presumo que essa regulamentação, só tenha surgido na sequência do ensino universitário e muito depois deste que, no início estava limitado a cânones e humanidades.
Também ignoro se na época que cita, judeus poderiam frequentar a universidade e posteriormente exercerem como físicos, p.ex., no Hospital de Todos os Santos como muito bem referiu o sr. A.Sepúlveda, a quem agradeço. Por paralelismo com o que acontecia nas leis - os bacharéis cristão-novos podiam ser advogados da Côrte mas apenas na Casa da Suplicação, sem acesso aos Desembargos do Cível ou do Paço - talvez pudessem exercer mas, sei lá, não poderem chefiar hospitais ou exercer o cargo de físico-mor.
Agora não creio que nalgum tempo essa profissão conferisse nobilitação. A cultura portuguesa, renegando as suas origens islâmicas e judaicas, seguiu a tradição greco-romana, privilegiando a filosofia (em sentido lato, teologia incluída) e o direito e, por influência dos bárbaros (também em sentido lato, incluindo os da Borgonha) a arte da guerra. Assim, nobres eram os militares (após anos de serviço em praças de África houve nobilitados que nem oficiais eram) e os doutores. As profissões mecânicas - tão desprezadas na Grécia que na democracia Ateniense apenas podiam ser desempenhadas por escravos - retiravam a nobreza, enquanto outras profissões, como a de lavrador independentemente da dimensão, não retiravam nem conferiam nobreza. Creio que também seria o caso dos físicos mas, como disse, não afianço.
De resto, originalmente todo o conhecimento da medicina era judaico-islâmico - Averroes, como expoente máximo - e desde o terceiro casamento de D. Manuel, essas gentes de infecto sangue dificilmente passavam o crivo da nobilitação.
Em épocas anteriores - 1ª dinastia - os físicos tinham um lugar privilegiado na Côrte e a um deles foi mesmo dado um título mas, mesmo então creio que se tratou de uma distinção pessoal mais do que funcional.
Cumprimentos,
Fernando Aguiar
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caro Fernando Aguiar:
Abençoados conhecimentos de cultura geral os seus!...
Fiquei bem esclarecido e agora ainda mais convencido de que o actual estado do País também radica no tal desprezo pelas ciências ditas de exactas (por oposição às especulativas) e às actividades ou profissões mecânicas.
Basta pensar nos exemplos que cita, dos muitos militares que nos nossos dias seriam simples soldados rasos e que pelos vistos acabaram nobilitados, ainda que pouco tenham feito pelo progresso e evolução do País.
É, aliás, muito interessante fazer um paralelismo entre a Nobreza anterior ao período liberal com a função pública actual: Trata-se em suma de uma grande quantidade de pessoas que é sustentada vitaliciamente pelo pp. Estado e que no fundo acaba por impedir qualquer transformação social ou económico-financeira digna desse nome, porque para além de serem muitos, têm os seus direitos e interesses mais do que protegidos.
Pode-se desta forma concluir que o Estado Português sempre sustentou muita gente: Desde os C.H.C., C.O.C., F.S.O., F.C.R., M.F.C.R., etc..., até aos funcionários públicos dos nossos dias, e nestes englobo todas as hierarquias, desde Chefes de Repartição e Directores de Empresas Públicas, passando por jardineiros de Câmaras e Presidentes de Comissões e Institutos Públicos.
Seria interessante abordar esta questão noutra sede, porque são muitas as ilações que deste facto poderiamos retirar.
Cumprimentos,
João Pombo
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Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caros confrades,
nem tudo o que tem estado a ser dito aqui é correcto. Devido ao estudo genealógico que estou a fazer de uma família que teve na transição do século XVIII para o XIX dois cirurgiões e um médico, vi-me forçado a ler o que havia publicado sobre o assunto.
Os barbeiros e os sagradores não podem ser confundidos com os cirurgiões. Eram, sim, auxiliares dos cirurgiões e dos médicos. Por vezes arvoravam-se o direito de exercer a cirurgia, mas contra a lei.
Assim, a medicina e a cirurgia foram disciplinas independentes até à criação das faculdades de medicina de Lisboa e Porto, no primeiro quartel do século XX. Só a partir dessa altura o cirurgião passou a ter, como formação de base, uma licenciatura em medicina.
Até 1825, os cirurgiões estudavam anatomia e praticavam no Hospital de Todos os Santos em Lisboa ou em certos hospitais da provincia (2 a 4 anos) e só podiam exercer após exame feito pelo CIRURGIÃO-MOR DO REINO ou um delegado seu.
Os médicos estudavam na Universidade de Coimbra (onde havia estudos médicos desde a idade média). A qualidade do exercício da profissão de médico era regulada pelo FÍSICO-MOR DO REINO.
A base cientifica da formação de médicos e cirurgiões melhorou bastante a partir do século XVIII graças aos avanços gerais da química, botânica, etc. O controlo da qualidade em Portugal também melhorou bastante ao longo desse século.
Em traços largos, é que me parece adequado dizer-se.
Cumprimentos,
Luís S. Lopes
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caro Santiago
Sobre o assunto em epígrafe, apesar do mesmo se reportar ao Brasil no séc. XIX, aqui deixo um artigo de:
Betânia Gonçalves Figueiredo
Professora de História da Ciência e da Técnica
Departamento de História/FAFICH/UFMG
Publicado em História, Ciências, Saúde - Manguinhos, VI(2):277-91, Jul-Out 1999.
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a atuação de práticos, especificamente barbeiros e cirurgiões, ao longo do século XIX em Minas Gerais. A partir do momento que cursos de cirurgia e medicina iniciam suas atividades no Brasil o confronto com práticos da cura ganha maior repercussão, o que não impedia a presença de barbeiros e cirurgiões, sem formação acadêmica, de atuar na área da saúde.
Palavras-chaves: barbeiro, cirurgião, história da medicina, Brasil
"As nojentas sanguessugas ficavam expostas em vidros, na vitrine da barbearia do Sr. Moura. Os médicos pediam-nas e o Sr. Moura enviava. Eram colocadas nos doentes, na parte onde deveria ser tirado o sangue. Agarravam-se à pele, geralmente do braço, pernas, nádegas, ou costas. Chupavam o sangue e se entumeciam. Quando fartas do repasto hemofágico, soltavam-se. Se fosse necessário, punham-se outras no mesmo local, para tirar mais sangue. (...) As sanguessugas já cheias eram depositadas em água e soltavam o sangue. E estavam prontinhas para novas aplicações. Uns médicos preferiam sanguessugas, outros, ventosas sarjadas." (Andrade, 1982, p.233)
Aqueles que possam estar imaginando que o trecho descrito acima data de séculos passados enganam-se. A referência é Belo Horizonte no início deste século. O Sr Moura foi um barbeiro conhecido no início do século em Belo Horizonte e descrito como "muito simpático, de cavanhaque e cartolinha, que criava as sanguessugas e as aplicava para sangria. Tinha isso anunciado nos jornais."(Andrade, 1982, p.233). Além de ocupar-se em fazer as barbas e cortar os cabelos de seus clientes, prestava o serviço de alugar as sanguessugas para os médicos e clientes em geral. O Sr Moura era um dos barbeiros que atuavam na cidade, em 1900, e provavelmente não estava sozinho no modo como desenvolvia seus serviços e sua atividade comercial.
Se acompanharmos a explicação dada para o verbete barbeiro, nos dicionários que circulavam nos século XIX, encontraremos:
Barbeiro:
"Homem que faz as barbas e as raspa, corta, ou apara. Há barbeiros de lanceta, ou sangradores. Outros dantes consertavam as espadas, limpando-as, aliás alfagemes."
(Dicionário Morais e Silva, 1813)
No Grande Dicionário Português ou Thesouro da Língua Portuguesa do Frei Domingos Vieira, com edição de 1871, as atividades do barbeiro continuavam divididas em três áreas, como no dicionário de Morais e Silva: o fazer as barbas e cortar os cabelos; o barbeiro de lanceta, sangrador e o barbeiro de espadas. Hoje não temos dúvidas em entender o barbeiro como aquele que faz as barbas e corta os cabelos, e o sentido do barbeiro de lanceta e barbeiro de espadas já ficou lá pelas "calendas gregas". Mas, ao que tudo indica, a atividade do barbeiro de lanceta ou sangrador perdurou até o início deste século.
No que se refere às sanguessugas, o Sr. Moura responsabilizava-se apenas por atender às solicitações dos médicos e clientes, criando e alugando as "bichas" para fins de sangria. Representava uma figura intermediária entre o barbeiro de lanceta, que fazia as vezes de cirurgião e médico, e o barbeiro como conhecemos hoje em dia.
Se considerarmos a atualização do Guia Prático de Saúde de Chernoviz - uma das publicações populares sobre medicina no Brasil do século XIX, na sua 17º edição, datada de 1904, verificamos que há descrição detalhada de como proceder a uma boa sangria utilizando-se de sanguessugas . O Guia Prático indicava quais os melhores lugares do corpo, associando-os ao incômodo, para "deitar as bichas" - para utilizarmos uma expressão que pode ser lida na gravura de Debret (1978, p.211) que retrata uma Loja de barbeiros: "sobre o peito na pleuris, atrás dos ouvidos nas congestões cerebrais, ao redor dos olhos em algumas ophtalmias, e todos as vezes que for indicado o tratamento antiphogistico pouco enérgico"(Chernoviz, 1904, p.995).
O Guia segue relatando que, por volta de 1832, abusou-se muito desse método terapêutico (ou seja, aproximadamente no período em que Debret retrata os barbeiros no Rio de Janeiro) mas que "atualmente" (podemos supor, pela data da edição, 1904, que o "atualmente" referia-se aos primeiros anos do século XX) "usa-se das bichas menos freqüentemente e em menor quantidade do que se costumava fazer antes". Contudo, não havia dúvidas de que a prática ainda era utilizada. Considerando que as atualizações do Guia Chernoviz ocorressem em toda nova edição e que cada nova edição fornecia detalhes com relação às características da "bicha", sua conservação, maneira de aplicá-las e modos de "desengurgitar" as bichas do sangue que chuparam, é possível concluir que a prática de utilizar sanguessugas continuava, no final do século XIX e início do século XX.
O Guia Prático de Saúde circulou pelo Brasil no século XIX e início do XX, junto com outras publicações do gênero. Estas publicações representavam, muitas vezes, a tábua de salvação de fazendeiros, práticos e também de muitos médicos e farmacêuticos. Era comum as farmácias terem entre os seus livros os guias de medicina popular. Um prático da medicina e cirurgia que circulava por Curvelo e vizinhanças era sempre descrito com "o Chernoviz" debaixo do braço (Cruz, 1965, p.33). Diante da dúvida consultava-se um desses guias . As publicações do Chernoviz (Guia e Dicionário) encontravam-se entre as mais populares . Esse fato permite-nos concluir que as informações contidas no Guias Prático de Saúde de Chernoviz eram realmente lidas e muitas vezes aplicadas à população doente.
A "arte" de manipular e aplicar as "bichas" não se restringia aos barbeiros, mas durante boa parte do século XIX estes foram os principais responsáveis pela sua conservação. Os médicos locais não tinham as sanguessugas, de acordo com Andrade, memorialista que nos conta um pouco sobre a medicina no início do século em Belo Horizonte, mas utilizavam-nas mandando buscá-las com o Sr. Moura, conforme a descrição com a qual iniciamos o artigo.
A utilização de ventosas também é considerada corriqueira em torno do século XIX, estendendo-se pelo século XX. O mesmo Andrade, em Belo Horizonte, nos dá notícias de ventosas sendo aplicadas em 1913, ressaltando que a utilização delas não dependia da indicação e/ou autorização médica (Andrade, 1982, p. 233). Para ele, como para muitos na nova Capital de Minas, as ventosas eram familiares. A preferência recaía sobre as ventosas sarjadas e os próprios pacientes usavam-nas para alívio da dor, sem a necessidade da indicação médica. O sarjador era um aparelhinho francês com vários fios de navalha que apareciam e sumiam quando acionado um botão, e neste movimento os fios cortavam a pele (Andrade, 1982). A seguir aplicava-se a ventosa e o sangue surgia dos cortes abertos pelas navalhas. Mas na ausência do aparelhinho francês o método utilizado era o dos copinhos vendidos em farmácias, esquentando-os com chama de álcool e aplicando-os sobre a pele, fazendo vácuo, nos locais doloridos.
Os barbeiros foram considerados os antecedentes dos cirurgiões. Detinham a habilidade de intervir - com os seus instrumentos - no corpo: corpo ulcerado, corpo com pústulas. Além de aplicarem ventosas e deitarem as chamadas bichas - sanguessugas - ocupavam-se com a estética dos cabelos e das barbas, cortando e aparando. O trabalho desses homens - não encontramos nenhuma referência à presença de mulheres nesse ofício - era considerado como basicamente manual. E talvez o que aproximasse as três idéias apresentadas pelos dicionários no início do século passado seja exatamente a habilidade de desempenhar trabalhos a partir da utilização das navalhas: tanto o barbeiro das barbas e cortes de cabelo, como o barbeiro sangrador e o barbeiro de espadas dominavam o mesmo instrumental de trabalho: as navalhas, as lâminas, todos instrumentos cortantes e afiados.
Os pontos marcantes das atividades dos barbeiros relacionavam-se com o trabalho manual e com o vínculo com a carne e o sangue. Numa sociedade marcada pela presença do trabalho escravo o prestígio do barbeiro não era elevado. Soma-se a isto o desprestígio - datado do período medieval - daqueles que lidavam com o sangue. Os barbeiros estavam, de certo modo, vinculados aos cirurgiões: ambos exerciam atividades vinculadas ao corpo: pernas quebradas, pústulas, doenças de pele, aplicação de sanguessugas. Se seguirmos a sequência de pranchas de Debret, retratando o Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX, encontraremos, no mesmo quadro do cirurgião negro, a representação do açougue de carne de porco. O texto que acompanha cada gravura não estabelece nenhum vínculo direto entre as duas representações, mas o fato de estarem as gravuras representadas na mesma prancha não nos deixa dúvida de que o vínculo das atividades do cirurgião-barbeiro e do açougueiro provinham do estigma do sangue. De acordo com Debret, somente os pobres recorriam aos cirurgiões negros, que além de aplicar ventosas, indicavam remédios e vendiam talismãs: "pois as pessoas mais abastadas mandam tratar seus negros pelo cirurgião da casa" (Debret, 1978, p. 360). Neste relato observamos sinais de distinção entre o status do barbeiro e o do cirurgião. O primeiro, barbeiro que faz as vezes de cirurgião, estava muito mais próximo da população escrava, enquanto o segundo, o cirurgião sem a complementação barbeiro, referia-se a um trabalho mais sofisticado, destinado aos homens livres e com recursos.
O século XIX é marcado por um movimento que podemos denominar de civilizatório. regras de como proceder, não apenas no que se referia ao dia-a-dia da corte, mas ao conjunto de posturas perpassando diversos aspectos da vida social, entre estes, a definição mais precisa sobre as profissões. A distinção entre o barbeiro e o cirurgião processou-se ao longo do século XIX, marcada pela formação acadêmica do cirurgião em contraponto com a informalidade das atividades do barbeiro. Ao preparar-se formalmente para exercer a atividade de cirurgia o trabalho manual eleva-se pela presença de uma formação intelectual, distanciando-se da prática do barbeiro. Neste movimento as atividades do cirurgião acadêmico enquadram-se no rol das profissões liberais, enquanto os barbeiros permanecem junto às atividades manuais mecânicas .
Na elaboração de uma escala social das profissões podemos localizar os médicos encabeçando a lista e, à distância, por exercerem atividades consideradas de outra natureza, seguiam os cirurgiões, e por último os barbeiros. Para os cirurgiões a aproximação com os barbeiros era lastimável, almejavam aproximar-se dos médicos. Para os barbeiros a aproximação dos cirurgiões era sinal de prestígio e elevação social . Esta hierarquia pode ser localizada no século XVII, no texto de Moliére, "O doente imaginário" (1673), no momento solene de argüição do candidato a médico: o primeiro a adentrar no recinto é o enfermeiro, seguido pelo boticário que, por sua vez, é seguido pelo cirurgião e, finalmente, o médico. Neste ponto interessa-nos ressaltar as posições diferenciadas que ocupavam o cirurgião e o médico no século XVII, na França, e que sofrerão mudanças no decorrer do século XVIII.
Nos estatutos franceses o ofício de cirurgia era classificado no mesmo patamar que o dos barbeiros. As mudanças ocorreram ao longo do século XVIII, quando os cirurgiões se desvinculam dos barbeiros, para desagrado dos médicos, que não viam com bons olhos o ingresso de uma categoria profissional considerada de menor importância, qualificação e valor, junto ao grupo dos médicos. Obviamente havia uma preocupação com o mercado, por parte dos médicos, mas principalmente com relação à posição social que se desejava preservar e que é ameaçada com a entrada de profissionais, antes localizados nas artes mecânicas, para o grupo das artes liberais.
É interessante acompanhar a declaração real francesa de 1730 estabelecendo os novos "estatutos e regulamentos gerais para os cirurgiões das províncias do reino":
"(...) ordenamos que aos mestres na arte e ciência cirúrgica das cidades e lugares onde exercem exclusivamente a cirurgia, sem a misturarem com nenhuma outra profissão mecânica, e sem fazerem qualquer comércio e tráfico, eles ou as suas mulheres, seja reconhecido o exercício de uma arte liberal e científica, gozando nesta qualidade das honras, distinções e privilégios de que gozam os que exercem as artes liberais (...)." (Lebrun, 1985, p.303/304)
O documento francês citado acima, do século XVIII, deixa clara a existência das duas artes profissionais com posições hierárquicas diferenciadas entre as artes mecânicas e as artes liberais. Os cirurgiões, elevados às artes liberais, têm muito o que comemorar, apesar dos preconceitos contra os quais terão de lutar. Afinal a mudança significava ascensão social, significava gozar das honras, distinções e privilégios característicos das artes liberais, ao passo que o mundo das artes mecânicas era apresentado como socialmente desprestigiado e considerado como atividade pouco honrosa.
De uma certa forma a hierarquia apresentada por Moliére em "O doente imaginário" manteve-se nas Minas Gerais do século passado. Ao longo do século XIX constatamos movimentos em direção a uma definição mais precisa das profissões relacionadas ao cuidado do corpo doente. As pessoas que passaram por uma formação acadêmica deveriam ocupar-se, preferencialmente, de cuidar do corpo. Na impossibilidade de difundir este padrão por todas as regiões, há uma série de intermediações viabilizando a atuação daqueles que intervinham no corpo doente. No que se refere às profissões é bastante clara a delimitação das atividades do barbeiro, visando restringi-la, cada vez mais, aos cuidados estéticos com cabelos e barbas.
Mesmo assim, com relação ao barbeiro e ao cirurgião, percebemos que não havia, na prática, uma delimitação bem estabelecida indicando onde começava o trabalho de um e o do outro. Há relatos em que o cirurgião atuava como médico, diagnosticando e receitando, e há outros em que o barbeiro atuava como médico e como cirurgião, transparecendo uma delimitação muito pouco precisa entre as atividades de cada um. Saint-Hilaire, na sua Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e São Paulo, relata-nos o trabalho de um cirurgião, que teve a oportunidade de observar quando atendia ao chamado de um homem que sofria de "não sei que doença de pele":
"O honrado cirurgião disse-lhe que lhe ia dar um remédio. No dia seguinte estaria são. Com semelhante droga esfregou as partes enfermas a que benzeu depois, mandando o paciente deitar-se, e assegurou-se o êxito de sua medicação"(Saint Hilaire, 1974, p.29)
Saint-Hilaire estranhou a ação do cirurgião. A desconfiança aumentava à medida que ele divulgava seus títulos a Saint-Hilaire, e este questionava-se sobre a veracidade de toda aquela propaganda. A riqueza do relato permite-nos muitas observações. A atuação do cirurgião é a atuação de um médico, indicando a dificuldade em restringir-se às artes cirúrgicas numa terra com pouquíssimos médicos. Por outro lado, a sua forma de atuar desafia os conhecimentos acadêmicos: além da droga que espalha pelas partes do corpo doente há o reforço da reza. Para Saint-Hilaire era muito difícil acreditar na eficiência desse procedimento: "não posso conceber que um homem que se intitula cirurgião e, por conseguinte, deve ter sido diplomado, sancione com o exemplo as práticas supersticiosas"(Saint Hilaire, 1974, p.29). O relato do viajante, que representa o mundo civilizado, é esclarecedor. Realmente não é possível admitir que um homem que se diz cirurgião lance mão de práticas supersticiosas no momento da intervenção. Ao que tudo indica, a razão para Saint Hilaire, deveria estar dissociada da superstição, da crença, e o tom do seu relato indica desconfiança quanto à formação daquele que se intitulava cirurgião. Há o confronto entre dois modos de relacionar-se com o mundo. Um, representado pelo estrangeiro europeu, que coloca o mundo racional em contraposição ao mundo da superstição. Esta concepção busca divulgar um modelo de civilização, pautado na razão. Outro, que pode ser lido nas entrelinhas desse relato, indica uma maneira mais tradicional de relacionar-se com o mundo, quando não há necessidade premente de dissociar razão e fé. O cirurgião atua de forma natural, não há conflito na sua prática ao unir remédio específico com benzeção.
Investigando os almanaques mineiros (Almanaques do Comércio, Indústrias e Profissões ) é possível perceber duas categorias de barbeiros: simplesmente barbeiros e barbeiros e cabelereiros. A informação nos diz muito pouco sobre quais eram realmente as funções desempenhadas por cada um deles, mas só o fato de haver a distinção é indicativo de que existia mais de uma forma de desempenhar essas atividades. Em outras palavras, indicativo da mobilidade e redefinição de o que significava atuar como barbeiro. Este cortava cabelo, fazia barba e aproveitava os seus instrumentos para realizar pequenas cirurgias que incluíam sangrar, escarificar, aplicar ventosas e sanguessugas, clisteres e extrair dentes (Camargo, 1976, p. 5). Entre os ditados populares encontramos "quem lhe dói o dente vai à casa do barbeiro" . Ao longo do século XIX observamos transformações significativas na atuação dos barbeiros. A atividade desempenhada por eles tende, cada vez mais, a restringir-se a cortar os cabelos e aparar as barbas. O barbeiro vai abandonando aos poucos a multiplicidade das suas atividades, enquanto as outras, especificamente relacionadas ao corpo doente, vão-se tornando especialidade dos boticários, médicos e práticos. Consolida-se, assim, a distinção entre a figura do médico, do cirurgião e do dentista, ocupando espaços antes divididos com os barbeiros.
Já nas listas nominativas de 1831 e 1832, censo realizado na Província de Minas Gerais, há a indicação apenas da ocupação do barbeiro. Também pouco se pode retirar dessa informação. Essas listas foram elaboradas a partir de uma estimativa de 708.000 habitantes para a Província de Minas Gerais, sendo que a população por elas reconstituída está na casa dos 400.000. Havia ainda o problema da valorização de algumas profissões em detrimento de outras, sendo que o critério de valorização variava de acordo com quem julgava, ou seja, o recenseador considerava, de acordo com os seus critérios, a validade ou não da profissão. Não havia um critério unificando a atuação de todos que trabalhavam no levantamento das informações. Ao que tudo indica, um número significativo de escravos não informavam, ou suas informações não foram coletadas e ou consideradas. Assim como os escravos, um série de outras ocupações eram consideradas desprezíveis e ou de menor importância para serem coletadas (Paiva et al, 1990).
O conhecimento necessário para desempenhar a atividade de barbeiro era pouco e limitava-se ao campo prático. A valorização daqueles que lidam com o corpo em chagas é pequena, desprestigiado mesmo. É bastante reveladora, nos levantamentos censitários - especialmente 1832 e 1871 - a associação dos dados gerais com as profissões. Praticamente todos os barbeiros são homens pardos ou negros. Alguns, homens livres, outros escravos, mas todos pardos ou negros, reforçando a idéia de desqualificação do trabalho dos barbeiros .
Se alguns autores consideravam os barbeiros como antecedentes dos cirurgiões, é importante observar que estes conviveram com os barbeiros. A hierarquia entre os ofícios investiria de maior importância os cirurgiões. O conhecimento demandado para tornar-se cirurgião era, com certeza, maior do que o necessário para exercício da atividade de barbeiro sangrador. No século XIX encontramos várias referências na legislação mineira sobre a necessidade de submeter-se a exames para obter licença como cirurgiões, o que não acontecia tratando-se dos barbeiros, quando as licenças era concedidas mediante apenas o pagamento das taxas . Como forma de acompanhar minimamente estas atividades, a legislação irá definir as regras e condições para o exercício da atividade profissional: exigência de diplomas ou exigência de exames, vistorias nos estabelecimentos, taxas para licenças das atividades e funcionamento comercial, regras, sanções e multas para os que não se dispunham a obedecer à legislação .
Não encontramos nenhuma formação institucional para o desempenho das atividades dos barbeiros sangradores e/ou barbeiros de lanceta. As técnicas eram passadas pela aproximação com os mais velhos, a transmissão de conhecimentos dava-se através da prática e da oralidade.
O barbeiro ocupava posição pouco privilegiada entre os ofícios, situando-se abaixo do cirurgião. Joaquim Manuel Macedo, num passeio pela cidade do Rio de Janeiro, descrevia o quanto era (pare ele) desagradável ver um "preto" sentado num banquinho no meio da rua "com a cara entregue às mãos do outro que o ensaboa e barbeia como se estivesse na sua loja" . De acordo com Debret os barbeiros ambulantes eram relegados ao último degrau da hierarquia dos barbeiros (1978, p.209). O viajante também retratou alguns barbeiros ambulantes.
É provável que numa cidade como o Rio de Janeiro houvesse barbeiros para os ricos e para os pobres, sendo que entre estes havia ainda a separação entre homens livres e escravos, mas o mesmo dificilmente ocorreria em cidades do interior de Minas. Encontramos referências aos barbeiros das cidades, feitas pelos memorialistas, e na legislação que busca cobrar impostos e licenças para o exercício da atividade e manutenção do comércio (o barbeiro deveria pagar licença para exercer o ofício e manter aberta a barbearia ). A partir das informações recebidas pelos memorialistas podemos perceber que o número de barbeiros era pequeno.
O local da barbearia, com menos glamour que o espaço das farmácias, seria também ponto de encontro: troca de informações sobre o acontecido, sobre a vida alheia, circulação de notícias locais e das redondezas. As barbearias eram consideradas "ponto de encontro e novidades" de acordo com um memorialista de Caxambu (Sá Alexina, 1957, p.70) e por lá passavam os homens da cidade. Quando comparadas com as farmácias, as barbearias destacavam-se por serem ambientes predominantemente masculinos.
Havia também, circulando pelas cidades de Minas, os barbeiros ambulantes. Um deles tornou-se conhecido em Diamantina também por características de "detraquê". Bambães, que chamava a todos de "meu belo", é citado por dois memorialistas de Diamantina como sujeito simpático que circulava pelas ruas fazendo brincadeiras e exercendo seu ofício (Morley, 1966, p.218) (Arno, 1906, p.89). Neste exemplo o barbeiro exercia a sua atividade de forma ambulante, perambulando pelas ruas e oferecendo seus serviços.
Quando o barbeiro demonstrava habilidades outras além do trato com os cabelos era motivo de destaque, como aconteceu com um barbeiro na cidade de Poços de Caldas, considerado um barbeiro "histórico" na descrição fornecida por um memorialista médico. Um dos pontos em que se destacava Francisco Pereira era o fato de ser instruído, por saber ler e escrever, "coisa rara naquele tempo" (Mourão, 1952, p.501), não apenas entre os barbeiros.
Os cirurgiões
Cirurgia:
"Parte da Medicina que ensina a curar feridas, chagas, tumores, deslocações e as operações de abrir e cortar membros do corpo humano."
(Dicionário Morais e Silva", 1813)
No Brasil Colonial a divisão clássica dava-se entre o médico (ou físico), o cirurgião e o boticário. Cada qual com a sua função: aos médicos caberia medicar, aos cirurgiões intervir no corpo doente e aos boticários manipular os medicamentos. Havia, sem dúvida, posições intermediárias entre estes profissionais , como também troca em suas funções. A divisão oficial entre eles tinha como objetivo preservar a população da ação de "inescrupulosos" e "aventureiros", além de exercer controle fiscal (Machado, 1978, p.28). Com a institucionalização das escolas de medicina, que inicialmente eram escolas de cirurgia, esta divisão permanece, e o tempo de formação de cada profissional indica-nos uma certa hierarquia e níveis de formação específica. O curso de médico durava seis anos, o de farmacêutico e o de cirurgião três, e o curso de parto demandava de um a dois anos.
Se trabalharmos com a idéia de que uma das formas de valorizar a profissão relaciona-se com o tempo de formação, algumas conclusões podem ser desencadeadas. Há diferença no tempo exigido para o médico e o cirurgião: para o primeiro, inicialmente, era necessário o dobro de tempo do segundo. Havia sempre a possibilidade, para o cirurgião, de completar seus estudos, e também se tornar médico, indicando que a formação desse mais demorada, demandando maior tempo e estudo. Há referências a vários cirurgiões que completavam seus estudos para tornarem-se médicos, o mesmo acontecendo com relação aos farmacêuticos. Já o oposto (de médico para farmacêutico ou cirurgião) não ocorria.
Além disso observamos que todo o discurso médico do período está direcionado para distinguir os profissionais qualificados dos chamados aventureiros que, independentemente de apresentarem bons ou maus resultados na sua atividade , eram pessoas que não mereciam confiança, na opinião dos médicos. Neste momento retornamos ao movimento civilizatório que busca impor padrões de comportamento, considerados mais avançados, ao conjunto da população. O discurso médico é exemplar neste sentido.
Outro aspecto a ser considerado referia-se ao estudo e às práticas cirúrgicas, não só no Brasil como no mundo. A anestesia, através da inalação de éter, e posteriormente clorofórmio, foi utilizada pela primeira vez no Brasil em 1847 e 1848 respectivamente . Todas as intervenções cirúrgicas, até então, e muitas outras, posteriormente, realizavam-se sem anestesia, transformando o ato cirúrgico, sem dúvida, em ato de barbárie . Todos sofriam com a prática, tanto aqueles que se submetiam ao procedimento, como aquele que executava e os que o assessoravam e ou assistiam. Aos olhos do homem atual, imaginar uma cirurgia nessas condições aproxima-se muito mais de brutal tortura do que de uma intervenção cirúrgica. As qualidades de um bom cirurgião, na época da inexistência da anestesia incluíam a frieza e, principalmente, a destreza com que realizava seu trabalho. Quanto mais rápido o ato, menor o tempo para se ouvirem os gritos de dor e as manifestações daquele que sofria além do suportável. Todos aqueles que se dirigiam para o ato cirúrgico sabiam do suplício que os aguardava. O campo de atuação do cirurgião é limitado pela dor suportável/insuportável do paciente.
Mas não só aos homens do século XX a descrição das cirurgias sem anestesia causam pavor. No século XVII, circulava na Europa o nanual de Richard Wiseman "Severall Chirurgicall Treatises" mais popularmente conhecido como "Livro dos Mártires de Wiseman" (Thomas, 1991, p.22).
Os avanços no emprego dos anestésicos consolidam-se na Europa nas últimas décadas do século (Gordon, 1995) (Foucault, 1974), abrindo a possibilidade, a partir daí, do desenvolvimento no campo das cirurgias e, conseqüentemente, da habilidade dos cirurgiões. Às dificuldades para realização das cirurgias, mesmo já com a presença da anestesia, acrescentavam-se os problemas relacionados com a falta de assepsia, por total desconhecimento da ação dos microorganismos. As mortes em decorrência de supuração das feridas operatórias encontravam-se na casa dos 80% a 90% (Santos Filho, 1967a). A assepsia, pela desinfecção das mãos dos operadores e do instrumental, em solução fenicada, é adotada pelo cirurgião inglês Lister em 1867. Sem assepsia e sem anestesia, o espaço de desenvolvimento das cirurgias estava limitado, transformando o cirurgião em um profissional para os casos extremos, com pouca margem de sucesso e pouca possibilidade de investigação do corpo aberto. Mesmo que o ato cirúrgico transcorresse conforme o previsto, a recuperação defrontava-se com as infeções e supurações pós-cirúrgicas, decorrentes da total falta de cuidados com o instrumental e higienização do processo intervencionista.
A cirurgia das amígdalas de Francelina, uma copeira e arrumadeira de aproximadamente 30 anos, na cidade de Diamantina em 1885, é descrita por uma memorialista - Eclésia Rabello (1996, p.62/64). A infecção agravara-se e a pobre mulher, além da febre alta, já mal conseguia abrir a boca. O médico foi chamado e deu sua opinião: "é preciso que se faça a operação amanhã mesmo, enquanto se consegue abrir-lhe a boca". No dia seguinte a cirurgia foi realizada no meio da sala de jantar, com todas as janelas abertas para garantir o luminosidade. A paciente assentou-se numa cadeira de braços aconchegada em travesseiros e a cirurgia foi presenciada por alguns moradores da casa. A seguir acompanharemos a descrição da memorialista Eclésia Rabello que, ainda jovem, foi uma das pessoas que presenciaram o transcorrer da intervenção cirúrgica (ela era uma das filhas do casal que empregava Francelina):
"Dr. Leite chegou, tirou o canivete da algibeira, trouxeram-lhe toalha, sabão e uma bacia de louça com água. Ele tirou o paletó, arregaçou as mangas da camisa, lavou as mãos e o canivete, enxugou-os" (Rabello, 1966, p.62).
Estes detalhes são reveladores: as mãos do médico e os instrumentos (canivete retirado da algibeira) passaram, minutos antes da intervenção, por uma solução de água e sabão. Para auxiliar a pobre Francelina a abrir a boca, o doutor utilizou do cabo de uma colher e, com este apoio, cortou com o canivete as amígdalas inflamadas. Depois de alguns dias de repouso Francelina recuperou-se totalmente. Morreu mais tarde, mas de tifo. Neste exemplo a cirurgia foi realizada por um médico, Dr. Carlos Leite, que não teve dúvidas quanto ao diagnóstico e a necessidade, urgente, de proceder à cirurgia. Provavelmente ele já tinha conhecimentos sobre a importância de algumas providências assépticas. Água e sabão continuam, ainda hoje, sendo usados como desinfetantes. A intervenção de retirada das amígdalas de Francelina foi coberta de êxito .
Os médicos cirurgiões, no final do século XIX, ainda tinham área de atuação dividida com pessoas sem formação acadêmica, que se apresentavam como curadores ou curandeiros. Entre estes encontramos Manoel Martins - vulgo Mané Martins - que andava pela região de Curvelo, norte de Minas, sempre acompanhado do seu canivete Roger, e era com ele, bem afiado, sem anestesia e sem assepsia, que demostrava toda a sua destreza e habilidade na prática de operações:
"para o canivete de Mané Martins os panarícios e outros tumores inflamatórios eram "café pequeno", casos insignificantes de sua vida de curador desabusado. E assim sua fama corria sertão...."(Rabello, 1966, p.33).
Mané Martins e o Dr. Carlos Leite tinham alguns pontos em comum: atuavam na mesma região (Curvelo e Diamantina, norte de Minas), ao que tudo indica, na mesma época - fins do século XIX - e utilizavam os canivetes nas pequenas intervenções. Mas havia também outros tantos pontos que os distanciavam. Os instrumentos do Mané Martins, especialmente o seu famoso canivete Roger, não passavam por água e sabão com a mesma freqüência que o instrumental do Dr. Carlos Leite. Além disso a formação de Mané Martins se processou de modo informal e sua atuação caracterizava-se pela itinerância. Provavelmente o público de Mané Martins distinguia-se dos clientes do Dr Carlos Leite.
Na intervenção do médico nas amígdalas da Francelina não obtivemos informações referentes aos honorários cobrados. Francelina era uma empregada da família Rabello e toda a cena - da chamada do médico, o diagnóstico e a intervenção cirúrgica - transcorrem nesse espaço. Não é possível afirmar que o mesmo procedimento seria adotado caso Francelina estivesse junto aos seus familiares, fora da residência da família que a empregava. Talvez nesta situação quem seria chamado a atuar fosse Mané Martins.
As cirurgias nestas condições, quando bem sucedidas, eram consideradas verdadeiros milagres. Um memorialista conta-nos um desses casos milagrosos: um escravo com a perna quebrada na altura da coxa tentou encaná-la três vezes, sem sucesso, até a intervenção cirúrgica. Nestes casos tudo indicava a amputação, mas o cirurgião optou por uma intervenção mais elaborada: cortou as extremidades do osso rompido, e o indivíduo recuperou-se. As informações do memorialista foram obtidas em uma incursão na Capelinha de Senhora Santana em Ouro Preto, nos fins do século passado .
Os vínculos estabelecidos entre o cirurgião e a sociedade, conseqüentemente, não eram muito tranquilizadores, pois associavam-se imediatamente às dores lancinantes da intervenção cirúrgica. Isso talvez justifique a posição inferior do cirurgião em relação ao médico, além da associação do cirurgião com a carne, aberta em chagas, coberta de sangue. No período medieval, entre as profissões consideradas desprezíveis encontramos o médico e principalmente o cirurgião(Le Goff, 1980, p.86). . De acordo com Jacques Le Goff a sociedade sanguinária do ocidente medieval oscilava ente o deleite e o horror pelo sangue derramado, não escapando do desprezo o cirurgião e até o médico.
O cirurgião no Brasil é "descendente" direto do barbeiro. Novamente utilizaremos de uma das gravuras de Debret (1978, p.211) sobre os barbeiros, em que encontramos os seguintes dizeres: "barbeiro, cabelereiro, sangrador, dentista e deitão de bixas". Há uma desqualificação inerente ao trabalho servil, e a sua aproximação com atividades consideradas pouco nobres se dá facilmente.
Por outro lado, confiar navalhas afiadas aos escravos não deixava de ser algo arriscado. Os que se sujeitavam aos seus serviços não deixavam de correr certos riscos pelo simples ato do barbear, em movimentos violentos. Corriam boatos em Diamantina, no final do século XIX, sobre um barbeiro excelente, mas meio amalucado ou detraquê, se utilizarmos a expressão da época. Entre as suas desventuras contava-se que saiu fugido de Ouro Preto, antes de se fixar em Diamantina, por ter pressionado, além da medida, a navalha no pescoço de um desafeto. O instrumental de trabalho do barbeiro transformava-se rapidamente em arma perigosa, e o ataque sempre colocava em posição de vantagem o barbeiro, lidando com a cabeça do cliente/inimigo.
Podemos observar também uma nítida divisão de tarefas entre o médico e o cirurgião, indicando o desprestígio (atividade menos qualificada) do segundo com relação ao primeiro.
Em terras sem médicos e sem cirurgiões formados, as intervenções eram realizadas por curiosos ou por aqueles que, por proximidade de ofício, aventuravam-se a cuidar da saúde alheia. Há notícias de que os farmacêuticos realizavam pequenas intervenções cirúrgicas, colocavam os braços e pernas quebrados no lugar e até realizavam algumas amputações, quando tudo indicava esse procedimento. Dois conhecidos farmacêuticos de Montes Claros, na virada do século, ficaram conhecidos não apenas pela eficiência em receitar, mas também pelas pequenas intervenções cirúrgicas que realizavam:
"Eusébio Sarmento e Cristiano de O', marcaram época em Montes Claros; quase ninguém procurava o médico sem ter ouvido primeiro a opinião de um destes dois" (Paula, 1979, p.160).
De acordo com Dr. Mourão havia em 1903 quatro médicos na cidade de Poços de Caldas (Mourão, 1952, p. 395) . Computada a população da cidade na época, concluímos que a média de paciente por médico permanecia muito baixa. Estas informações - ao que tudo indica - não diferem significativamente de outras cidades. Em Pitangui temos notícias de dois médicos no final do século XIX (Patrício, 1964, p17).
O espaço para atuação de outros que não médicos e cirurgiões formados continuou aberto até fins do século XIX. Se por um lado podemos levar em conta a existência de poucos médicos formados, falta de hábito da população de recorrer aos serviços médicos, e crença nas práticas tradicionais, como alguns dos pontos a serem considerados neste longo caminho de implementação, junto à sociedade, do conhecimento médico acadêmico, por outro lado havia todo um movimento visando definir com maior clareza a atuação de cada um desses profissionais. A marca definidora desse movimento referia-se à formação acadêmica e valorização da formação intelectual, institucionalizada para desempenho destas funções, em contrapartida a práticas caseiras, apelos à fé e superstições. Nessa trajetória a definição das atividades do barbeiro limitadas ao corte de cabelos e barbas obteve sucesso.
Bibliografia
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FOUCAUT, Michel. Origens da Medicina Social e O nascimento do Hospital, conferências pronunciadas entre outubro e novembro de 1974 no Instituto de Medicina Social da UERJ, (mimeo)
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PATRÍCIO, Joaquim. Figuras e fatos do meu tempo. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1964.
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RABELLO, Eclésia Correia. Lá em casa era assim. Belo Horizonte: Siderosiana, 1966.
Sá Alexina. Caxambu de ontem e de hoje. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti editores, 1957, p. 70.
SAINT HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974, p. 29.
SANTOS FILHO, Lycurgo. (a) Medicina no Período Imperial. In: Holanda, Sérgio Buarque de (Org). História Geral da Civilização Brasileira. 6ª edição. São Paulo: Hucitec/ Edusp, vol III, Tomo 2, 1987. pp 467-489
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SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada: História da medicina na literatura. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
THOMAS, Keith. Religião e declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
THORWALD, Jurgen. O século dos cirurgiões. São Paulo: Hemus, s/d.
-Espero que o mesmo faça luz sobre o assunto em causa e que os nossos confrades tirem as devidas ilações.
Cumprimentos
Zé Maria
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
É de facto uma óptima análise da profissão. Desde já lhe agradeço.
Cumprimentos
Marco Santiago
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caros confrades
Não sei se haverá interesse na informação que segue, sobre um descendente dos Abranches da Vide, tratado como barbeiro nos assentos paroquiais mas cuja informação retirada da Chancelaria de D. João V, Liv. 29, fª 335, dá ao barbeiro/cirurgião conhecimentos superiores a simples sangradores ou lançadores de sanguessugas (samessugas no palrar popular). O tirar o sangue às pessoas foi um método curativo muito utilizado até pelos médicos da Corte. Ainda na 2ª década do séc. passado, altura da pneumónica, houve um tio meu que faleceu não da doença, mas talvez da "cura" da sangria. Segue a informação retirada da Chancelaria de D. João V:
COSME PINTO DE ABRANTES (20-09-1674/16-11-1727 ) Filho de António Pinto e Maria Antunes,. Viveu em Aldeia Nova do Cabo, onde exerceu os cargos de Juiz e Tesoureiro da Igreja, e o ofício de Cirurgião, por carta passada em Lisboa a 23-02-1709, precedida de exame perante o Dr. Manuel de Pina Coutinho, Cirurgião mor do Reino. Cosme Pinto aprendera seu ofício “ com seu mestre Manoel da Silva de Macedo cyrurgião aprovado por tempo de quatro annos com muita aplicação e cuidado ”.
Cumprimentos
Gabriel Santos
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro Luís S. Lopes
O tema "cirurgiões tambem me interessa, porque estudo um antepassado "praticante/cirurgião" em 1793 no Real Ospital de Chaves,onde existia uma Aula de Anatomia. Ali os estudos seriam de quatro anos e em português enquanto o médico faria os estudos na UC e em latim.
Quanto aos estudos da A.A. em Chaves o aproveitamento era muito baixo e ainda não consegui saber se o meu antepassado acabou o curso e se exerceu posteriormente a profissão, lá ou noutra cidade. Tem conhecimento da existência de diploma ou registos desta pofissão naquela época?
Cumprimentos
Vasco Briteiros
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caros Confrades,
No Concelho de Ferreira do Zêzere existiram ainda no século XX pelo menos 2 Barbeiros-Dentistas. Também nos paroquiais deste Concelho surge a referência a um cirurgião-barbeiro, no século XVIII.
Atendendo às interessantíssimas explicações já aqui deixadas gostava de perguntar se alguém me pode informar acerca dos requisitos para se ser boticário no século XVIII.
Cumprimentos,
Paulo
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Meu caro Vasco
Também gostei de ler a intervenção do co-listeiro Luís Lopes que muito bem esclareceu algumas imprecisões e confusões anteriormente expostas. Pena foi não ter referido as Reais Escolas Médicas, ou simplesmente Escolas Médicas, que em Lisboa e Porto antecederam as actuais Faculdades de Medicina. Como muito bem dizes, Coimbra foi sempre diferente…uma mais rigorosa admissão, a obrigatoriedade do Latim e uma maior duração do curso, ocasionava a que os nossos bisavós, e mesmo avós só tratassem por “Doutor” o médico-cirurgião que ali tivesse cursado, como te lembrarás por certo!
Tratamento ou “chamadoiro” esse que provocava, naturalmente, muita fricção na classe médica cursada em Lisboa e Porto.
Mas essa diferença de tratamento nada tinha com a fricção que também existiu entre boticários e pharmaceuticos. Aí, os boticários tinham como grande base da sua ciência o segredo das mezinhas, tizanas e unguentos, transmitidos de geração em geração, desde tempos imemoriais, algumas vezes adaptados a um novo conhecimento, enquanto os pharmaceuticos se deixavam já conduzir pela Chimica, teórica e experimental, pelas análises qualitativas e quantitativas, com o cientismo possível.
Mas, não raro o paciente, e ou os seus familiares, desejosos dum resultado rápido para a cura das maleitas, recorriam simultaneamente (com recato, claro…), ao médico e ao bruxo, ao boticário e ao phamarceutico, acabando por terem de chamar “em pressas” o tabelião, depois o abade e por fim o cangalheiro!
Ainda hoje acontece… e com gente evoluída, em desespero de causa, por certo.
Sobre o ensino da Anatomia noutros sítios para além de Lisboa, Coimbra e Porto tenho uma muito vaga informação. Já li qualquer coisa sobre isso do Camilo, creio que referindo o Hospital de Vila Real. Penso que essa habilitação (dissecavam porcos e estabeleciam as respectivas analogias com a anatomia do corpo humano, não era?), para ter comprovação oficial teria de ter o aval do Cirurgião Mor do Reino, ou seu delegado, mediante difícil e moroso exame. Das muitas dificuldades desses mesmos exames, quer de físicos quer de cirurgiões, tenho notícia.
Tenho também, e posso facultar-te por esta via (ou por e-mail), pelo menos uma “Carta de Cirurgia”, passada na época que referes, no reinado de D. Maria I, em Lisboa, com data de 25.1.1780. Assinada pelo Coronel Soares Brandão, “Meu Cirurgião Mor do Reino”, referindo que o outorgado – “…foi examinado na presença do seu Commissario Luiz Vaz Pereira pelos examinadores João dos Santos Madail e Manoel Nunes da Cruz e Figueiredo que o deram por aprovado para exercitar a dita arte…”
Abraços, Bom Ano e boas entradas!
Manel
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro Senhor Manuel Maria de Magalhães,
Como sempre as suas intervenções, são interessantes, informativas e oportunas.
Apenas um pequeno reparo pois, quem não se sente, não é filho de boa gente.
Para usar a sua expressão, "o co-listeiro Luís Lopes" esclareceu, com dados dos sécs. XVIII, XIX e XX, uma intervenção que, no essencial, se referia ao séc. XVI. Claro que, no que à evolução acrescentei, extra-tópico inicial e sem qualquer pretensão de exactidão, qualquer informação e esclarecimentos adicionais foram e serão sempre muito bem-vindos. Mas, no que me toca e com o devido respeito, considero a expressão "imprecisões e confusões" manifestamente infeliz.
Aproveitando a época, queira aceitar os meus votos de Bom Ano Novo.
Com os melhores cumprimentos,
Fernando Aguiar
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro Manuel Maria Magalhães,
tem razão, para ficar completo, deveria ter referido as Reais Escolas Médico-Cirurgicas de Lisboa e Porto, criadas em 1825. Ao longo do século XIX, não eram verdadeiras faculdades de medicina. Dali não saim médicos, mas sim cirurgiões, distinção que se manteve até a criação das faculdades de medicina, como referi.
Cumprimentos,
Luis S. Lopes
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro Vasco Briteiros,
quanto aos cirurgiões, não sei se haverá registos de actos e graus. Talvez em arquivos das misericordias, mas não procurei ainda. Se vier a encontrar algo do género, agradeço que nos diga. O confrade magalp diz que tem uma carta de cirurgião, mas esqueci-me de lhe perguntar onde a encontrou.
Os dois cirurgiões que encontrei são referidos em documentação não especificamente relativa a essa profissão. Outro individuo da mesma familia era médico formado na Universidade de Coimbra em 1776. Para esse tive a felicidade de encontrar a prova tipográfica da carta de curso no Arquivo da Universidade de Coimbra.
Cumprimentos,
Luis
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Prezado Santiago,
Não sei se o barbeiro da ópera "O Barbeiro de Sevilha " também era cirurgião mas foi calcado num tipo que devia ser comum naquela época. Os barbeiros de muitas habilidades também arranjavam casamentos, como na ópera.
Cumprimentos,
Maria Alice Moraes
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caro Gabriel,
Saberia me informar de que forma estão disponíveis as informações da Chancelaria de D. João V ?
Antecipadamente grata,
Maria Alice Moraes
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Cara Maria Alice Morais
Os livros das Chancelarias estão à consulta na Torre do Tombo. O livro que citei foi consultado, já lá vão muitos anos, ainda a Torre do Tombo estava no palácio de S. Bento.
Cumprimentos
G. Santos
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Olá Manel.
Há muito que não tinha o prazer de ler os teus textos e eis que surges aqui e muito bem. Este tema dos médicoe e cirurgiões tem despertado a minha curiosidade e tenho lido bastante sobre o assunto bem como coleccionado uns livritos e artigos soltos. Recentemenrte encontrei : Os Antigos Hospitais do Porto" e " A Medicina Portuense no Século XV". Todavia o meu grande interesse vai para a Aula de Anatomia de Chaves , fundada em 1789, a terceira a ser criada dado já existirem a de Almeida (1773) e a de Elvas (17839. Todas elas tinham uma taxa de aproveitamento escolar deplorável! Onde é que já ouvi coisa semelhante?
Para já a investigação continua devagar e limitada aos cirurgiões do exército, esperando no próximo ano ter mais tempo disponível.
Tenho o maior intersse em conhecer os termos dessa "Carta de Cirurgia" pelo que te peço o favor de ma facultares para o meu e-mail , ou por cópia e nesse caso passaria por aí na minha nova trotinette para a levantar. Que tal um café no Scala na próxima semana? Amanhã parto de manhã para Ancede onde vou passar o fim do ano .
Continuarei com at~enção a este tópico.
Um grande abraço com votos de um Novo Ano muito bom para ti e todos os teus.
Vasco
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro Luís
Muito grato pela sua resposta. Estou a reunir dados e julgo dentro de semanas dizer-lhe algo sobre o que sei. Entretanto espero receber também as informações da "Carta" do confrade Magalp.
se pretender pode contactar-me directamente para o meu mail, bastando seguir o meu username do sinal de arroba e netcabo .
Votos de um Bom Ano Novo.
Vasco Briteiros
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro Vasco Briteiros
Essas aulas de antomia eram todas militares, não? Atendendo aos locais que sita, todos eles praças militares importantes da guerra peninsular, estarão relacionadas com a restuturação do e´xército peo Conde Lippe ou será apenas ideia minha?
Boas entradas em 2005
João Cordovil Cardoso
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caros confrades
Junto um texto que recolhi na NET sobre a situação, no sec. XVI, no Hospital Real de Todos os Santos:
"Há, no entanto, há alguns dados historiográficos avulsos que nos permitem fazer uma primeira aproximação ao problema do estatuto remuneratório dos médicos, desde 1504, pelo menos.
Com efeito, data desse ano primeiro regimento do Hospital Real de Todos os Santos (abreviadamente, HRTS), um notável documento que nos permite ter hoje uma visão global da organização e funcionamento dum grande hospital quinhentista bem como da diferenciação socioprofissional do pessoal que lá trabalhava.
(...)
De acordo com a estrutura da despesa do hospital europeu no Antigo Regime, os encargos com pessoal deveriam representar cerca de 15 por cento do total (Graça, 1996). De qualquer modo, no HRTS (que era originalmente sustentado pela fortuna pessoal do rei, distinta do erário público), havia dois tipos de remuneração em espécie:
A tença, anual, para os oficiais grandes e pequenos (pessoal dirigente, capelania, prestadores de cuidados, pessoal de apoio);
A soldada ou salário, para certas categorias do pessoal menor, afectas às actividades de apoio, como o atafoneiro, a amassadeira e a forneira, que eram pagos à jorna ou ao dia, não devendo por isso pertencer ao quadro de pessoal (como diríamos hoje) do HRTS.
O provedor (que já não era um cargo meramente honorífico) ganhava dez vezes mais (30$000 réis) do que o barbeiro-sangrador—o único, juntamente com um dos cirurgiões, que não tinha, de resto, direito a alojamento no hospital, sendo os seus serviços requisitados sempre que necessários (tal como os serviços do atafoneiro ou moleiro, da amassadeira e da forneira).
O físico, por sua vez, ganhava três vezes mais (18$000 réis) do que um enfermeiro-mor (responsável por uma enfermaria de homens), e o boticário 1,25 vezes mais (15$000 réis) do que o cirurgião residente. Este último, que também tinha funções de ensino, tinha uma tença seis vezes superior (12$000) ao do seu ajudante (o equivalente hoje a um interno de cirurgia).
Além do provedor, o restante pessoal dirigente era letrado, ou pelo menos tinha que saber ler e escrever, auferindo o dobro (12$000 réis, no caso do almoxarife, do escrivão e do hospitaleiro) da remuneração dos oficiais menores como o cozinheiro e o despenseiro, e o triplo ou até mesmo o quádruplo das demais categorias de pessoal subalterno (por ex., porteiro, lavadeira, costureira).
O almoxarife, o escrivão, o hospitaleiro e até mesmo o vedor (que auferia apenas 8$000 réis por ano, além de alojamento e alimentação, como os restantes oficiais) teriam hoje o estatuto remuneratório do director de serviços, do chefe de divisão ou do chefe de repartição na função pública.
No que respeita aos prestadores de cuidados directos, e pelo menos em termos de estatuto remuneratório, o físico estava, pois, acima do boticário, e este do cirurgião. Abaixo do meio da tabela, vinha o enfermeiro-mor que ganhava um pouco menos (6$000 réis) que o capelão (6$300 réis) e o dobro da cristaleira (que ministrava os clisteres ou purgas), da enfermeira (responsável por uma enfermaria de mulheres), do ajudante de boticário e do barbeiro-sangrador.
O regimento é omisso quanto ao montante da remuneração da hospitaleira. Em todo o caso, o estatuto remuneratório das mulheres era claramente inferior ao dos homens, se compararmos quatro ocupações femininas (enfermeira, cristaleira, costureira e lavadeira) com outras tantas ocupações masculinas de qualificação mais ou menos equivalente (enfermeiro, barbeiro-sangrador, despenseiro, cozinheiro).
Estas diferenças de estatuto remuneratório reflectiam, antes de mais, a hierarquização social (e sexual) dos titulares de cargos e dos ofícios, com destaque para o provedor, que era recrutado de entre gente da corte ou do alto clero, e para o físico, que muito provavelmente seria o único a deter um título universitário (bacharel ou licenciado) e que, além disso, devia gozar, também ele, da protecção do próprio rei ou, pelo menos, do seu físico-mor.
E este propósito, compare-se a remuneração do físico-mor e do cirurgião-mor, que faziam parte da casa de D. Manuel I, em 1518 (Quadro 1, em anexo):
O primeiro auferia 2$500 réis por mês, mais 200 réis do que o segundo, que estava ao serviço da rainha;
Outros dois físicos da corte, ambos professores da Universidade, ganhavam bastante menos (2$000 e 1$500, respectivamente) (Sousa, 1947, cit. por Serrão, 1990, Vol. III, p. 356)."
- Luís Graça: Textos sobre saúde e trabalho -
dobliu dobliu dobliu ponto ensp.unl.pt/luis.graca/textos61 ponto aga te eme ele
Por aqui podemos concluir que o fisico seria o único a ter grau universitario e que o barbeiro-sangrador seria o último na cadeia dos prestadores de cuidados. Pelo mei ficavam o enfermeiro e o cirurgião.
Cumprimentos
João Cordovil Cardoso
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Penso que a resposta que coloquei abaixo, em
http://www.geneall.net/P/forum_msg.php?id=81022#lista
trará alguma luz à sua questão.
Cumprimentos
João Cordovil Cadoso
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro João Cordovil Cardoso,
dados interessantes que estavam à mão de semear e no entanto me tinham escapado.
O Quadro I que pode consultar-se na pagina donde extraiu esse texto, é bastante elucidativo sobre a diferenciação socioeconomica que se fazia entre os varios profissionais especializados que operavam na área da saúde desde o século XVI.
Confirma-se que o estatuto do cirurgião estava muito mais proximo do médico do que do barbeiro-sangrador.
Na nota (a) desse Quadro I, diz o autor: "Em 1601, o ordenado do físico e do cirurgião estão equiparados no HRTS (40$000). Um saco de carvão (uma fonte energética fundamental na época, a par da lenha) custaria em média $100 réis, um cântaro de azeite, $820, um alqueire de trigo, $230, e uma arroba de arroz, $920 réis."
Em 1775, no HRTS, o físico ganhava 150$000 réis, o cirurgião 100$000 réis, o enfermeiro 42$000 réis e o barbeiro-sangrador apenas 12$000 réis.
Cumprimentos,
Coelho
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro Coelho
E dados que, curiosamente, me vieram à mão quando estva a fazer uma pesquisa sobre um assunto totalmente diverso...
Procurava dados sobre o Largo de Arroios...
Cumprimentos
João Cordovil Cardoso
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Muito obrigado pelo esclarecimento
Marco Santiago
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro João Cordovil Cardoso
As minhas desculpas por não ter respondido atempadamente à sua intervenção.
Efectivamente refiro-me a Aulas de Anatomia integradas em Quarteis ainda anteriores à guerra peninsular. Parece que com o fim desta surge um período de desorganização e é dificil investigar o destino do pessoal até 1820.
Retribuo os votos de Bom 2005.
Vasco Briteiros
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RE: Barbeiros, sangradores, cirurgiões e médicos
Caro Vasdco Briteiros
Não tem nada que pedir desculpa. E, já agora, corrijo uma enorma gralha no meu texto. Claro que a palavra que deveria estar era "cita" e não "sita".
Cumprimentos
João Cordovil Cardoso
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
Caros confrades,
Transcrevo a seguir um texto que nada acrescenta ao que já foi escrito mas ilustra os embaraços de um meu recuado Avô por causa das palavras "barbeiro e cyrurgiaõ":
"Diz o Bacharel Francisco José Salgueiro Vaz natural da Villa de Sarzedas comarca de Castello Branco que requerendo a V. Mag.e fosse servido admitir o sup.te a Ler na Meza do Desembargo do Paço p.ª se habilitar p.ª o Real Serviço nos Lugares de Letras; succedeo q pella rusticidade e ignorancia das testemunhas que depuzeraõ na Sua inquiriçaõ de genere disseraõ que o Avô Paterno do Suplicante havia sido barbeiro, tendo elle sido notoriamente cyrurgiaõ e muito abastado com tratamento de nobre, de sorte que seu filho Pay do Sup.te foi Sargento mor da Ordenança da ditta villa; cargo que V. Mag.e pello seu concelho de guerra confere às pessoas nobres, e principais das terras: mas na (terra) do Sup.te como em muitas das Provincias he na frase do vulgo synonimo a palavra barbeiro e a de cyrurgiaõ: como constou da nova informaçaõ q V. Mag.e tornou a mandar tirar: Sobre a qual ordena V. Mag.e q o Suplicante ajunta-se a carta que o ditto seu Avô tivesse de cyrurgiaõ; porem como ha sem duvida mais de cem annos q elle vivia na ditta Villa de Sarzedas como vizinha à raya de Castella tem havido duas invazoens dos Hespanhoes depois disso, e na ultima do anno de 1762 esteve o General Castellano Conde de Aranda mais de vinte dias fazendo o seu quartel na propria casa do Sup.te; que se ausentou fugitivo; com o que se lhe perderaõ muitos papeis e documentos da sua caza; naõ pode apresentar a ditta carta; e na notoriedade da nobreza do Sup.te e seus Pays e Avós q bastantemente se collige das informaçoens parece q se fas o Suplicante digno de ser admitido visto o que expoem"
No segundo inquérito que se fêz, entre outras pessoas, chamou-se a depôr o cirurgião de Sarzedas que também se queixava amargamente de confundirem o seu superior mister de "cirurgiaõ e anatomico" com o de barbeiro...
Resta dizer que apesar destas peripécias o meu Avô acabou por ser admitido à Leitura de Bacharéis e foi juíz de fora em Sarzedas e Vila Velha de Rodão.
Fonte: ANTT - Leitura de Bacharéis, Maço 16, N.º 3
Cumprimentos
António Maria Fevereiro
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI
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RE: Profissão de Barbeiro no séc. XVI 28-12-2004, 12:47
Autor: feraguiar98 [responder para o fórum] Caro João Pombo,
Não creio poder esclarecê-lo pois apenas possuo conhecimentos de cultura geral, aquilo que fica quando já nos esquecemos do que aprendemos.
Não sei quando passou a ser regulamentada a profissão de físico mas presumo que essa regulamentação, só tenha surgido na sequência do ensino universitário e muito depois deste que, no início estava limitado a cânones e humanidades.
Também ignoro se na época que cita, judeus poderiam frequentar a universidade e posteriormente exercerem como físicos, p.ex., no Hospital de Todos os Santos como muito bem referiu o sr. A.Sepúlveda, a quem agradeço. Por paralelismo com o que acontecia nas leis - os bacharéis cristão-novos podiam ser advogados da Côrte mas apenas na Casa da Suplicação, sem acesso aos Desembargos do Cível ou do Paço - talvez pudessem exercer mas, sei lá, não poderem chefiar hospitais ou exercer o cargo de físico-mor.
Agora não creio que nalgum tempo essa profissão conferisse nobilitação. A cultura portuguesa, renegando as suas origens islâmicas e judaicas, seguiu a tradição greco-romana, privilegiando a filosofia (em sentido lato, teologia incluída) e o direito e, por influência dos bárbaros (também em sentido lato, incluindo os da Borgonha) a arte da guerra. Assim, nobres eram os militares (após anos de serviço em praças de África houve nobilitados que nem oficiais eram) e os doutores. As profissões mecânicas - tão desprezadas na Grécia que na democracia Ateniense apenas podiam ser desempenhadas por escravos - retiravam a nobreza, enquanto outras profissões, como a de lavrador independentemente da dimensão, não retiravam nem conferiam nobreza. Creio que também seria o caso dos físicos mas, como disse, não afianço.
De resto, originalmente todo o conhecimento da medicina era judaico-islâmico - Averroes, como expoente máximo - e desde o terceiro casamento de D. Manuel, essas gentes de infecto sangue dificilmente passavam o crivo da nobilitação.
Em épocas anteriores - 1ª dinastia - os físicos tinham um lugar privilegiado na Côrte e a um deles foi mesmo dado um título mas, mesmo então creio que se tratou de uma distinção pessoal mais do que funcional.
Cumprimentos,
Fernando Aguiar
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